Bloomsday 2020 Chez Nous

Feriado nacional na Irlanda, comemora-se hoje (16 dejunho) o Bloomsday, a maior festa literária do mundo, em homenagem ao romance Ulysses de James Joyce, publicado em 1922 em Paris

Por causa da pandemia, os festejos serão quase todos virtuais mundo afora. Em Brasília, também. Para isso a Embaixada da Irlanda produziu, em parceria com a Livraria Sebinho, um vídeo de 35 minutos, sob a direção da professora de literatura Michelle Alvarenga, que acaba de entrar no ar na Sebinho TV do YouTube e na conta da embaixada no Twitter. Antes, houve um esquenta que durou mais de duas semanas, com 18 videozinhos correspondentes a cada um dos episódios do romance.

O vídeo de hoje inclui uma conversa imaginária no além de Joyce com a jornalista Djuna Barnes, com roteiro de Jesse Wheeler; uma música cantada pela esposa do embaixador, Susan; três músicas executadas pela banda Tanaman Dùl; a leitura de um poema de Joseph O’Connor (Happy Birthbloom) pelo embaixador Seán Hoy; e um comentário deste repórter metido a besta sobre quais seriam as reações de Joyce frente à pandemia do coronavírus. (https://www.youtube.com/watch?v=jw0M-6BNNgY)

Ulysses é um livro enorme, mais de 800 páginas de difícil, mas sempre divertida leitura. Meu amigo Hamilton Pereira diz que é livro bom de ler na cadeia, quando a gente tem tempo de sobra! Ou durante o isolamento social da pandemia, digo eu. Inspirado (também) na Odisseia de Homero, a obra pretende resumir a saga da Humanidade na jornada de 19 horas ao longo do dia 16 de junho de 1904 de um homem ordinário (comum), meio judeu, Leopold Bloom, terrivelmente apaixonado pela mulher, Molly Bloom.

Abaixo, segue o texto da minha participação no vídeo deste Bloomsday Chez Nous:

Eu pergunto: quais seriam as reações de James Joyce frente à pandemia do novo coronavírus?

E respondo: Ninguém poderá saber nunca, mas aqui vão algumas pistas.

Segundo a sua editora, Sylvia Beach, Joyce tinha medo de trovões, alturas, do mar, de cachorros e de… infecção.

Martin Bock, da Universidade de Minnesota, escreveu um artigo vinculando Joyce à Teoria dos Germes. Diz que o medo de contágio não era incomum entre a população irlandesa nascida no século 19. Pelo menos 775 mil pessoas morreram no país nos anos da grande fome, 1846 e 1851. No fim do século houve quatro epidemias de gripe que se espalharam da Europa para a Inglaterra, Escócia e Irlanda.

A tuberculose matava na época um em cada dez europeus; e a mortalidade infantil era pior em Dublin do que em Calcutá, na Índia. Cinco irmãos de Joyce morreram ainda crianças. 

Uma geração depois, quando Joyce estava escrevendo Ulysses, a pandemia de gripe chamada espanhola (1918-1920) matou entre 50 e 100 milhões de pessoas.

No primeiro episódio de Ulysses, Telêmaco, Buck Mulligan toma uma xícara de leite e comenta com a velhinha leiteira:

Se pudéssemos viver de um alimento bom como esse, nós não teríamos um país cheio de dentes e tripas podres. A gente vive num lodaçal, comendo comida barata, com ruas cobertas de pó, de esterco de cavalo e de escarros de tuberculosos.

– O senhor é estudante de medicina? – perguntou a velha.

– Sou, mulher, respondeu Buck Mulligan.

– Ora, vejam só, disse a velhinha.

Mulligan, como Joyce, anota Bock, sabia que certas doenças se espalham através de germes. Joyce chegou a estudar medicina por um curto período em Paris a partir de 1902.

Carreira brilhante

No final de agosto de 1900, Joyce, com apenas 18 anos, encaminhou ao editor William Archer uma peça intitulada Uma Carreira Brilhante, destruída pelo próprio Joyce. É o que contou o jornalista Frank McNally na sua coluna de 9 de abril no Irish Times. 

Stanislaus, o irmão mais novo de Joyce, disse que a peça era um drama realista centrado em Paul, um jovem médico, que abandona a namorada e o seu idealismo juvenil para se casar com outra mulher e seguir carreira. Bem sucedido, ele acaba se tornando prefeito de uma cidade portuária.  Ironicamente, ele consegue conter um surto de peste na cidade, graças à ajuda de Ângela, sua ex-namorada. Daí Paul percebe que a sua brilhante carreira era apenas “poeira e cinzas”.

O envio da peça para o editor coincidiu com a confirmação de um surto de peste bubônica em Glasgow, Escócia, com 16 mortos. O surto era parte de uma pandemia. 100 pessoas morreram em San Francisco, nos Estados Unidos. O pânico tomou conta de Dublin, que decretou uma guerra aos ratos.

Em Dublinenses, Joyce retrata Dublin como uma cidade semideserta, e por isso a crítica Adaline Glasheen afirmou que Dublinenses é o Diário do Ano da Peste de Joyce.

Um Diário do Ano da Peste é o título de um livro do escritor inglês Daniel Defoe, publicado em 1722. O livro retrata a Grande Peste de Londres, que devastou a capital da Inglaterra entre 1665 e 1666.

Joyce tinha uma grande admiração por Defoe, tendo lido todas as suas obras, “cada uma de suas linhas”, e o considerava o pai do romance inglês, o primeiro escritor da Inglaterra que não teria tido modelos literários precedentes.

Se Um Diário do Ano da Peste ofereceu a Joyce um modelo para ficcionalizar criativamente fatos da realidade, Robinson Crusoé, a obra-prima de Defoe, parece ter lhe dado a ideia de, em Ulysses, concentrar num só homem, Leopold Bloom, a história de toda a Humanidade. 

Para Joyce, Robinson Crusoé é o Ulisses inglês, onde se concentra todo o espírito anglo-saxão independência de macho, crueldade inconsciente, persistência, inteligência lenta mas eficiente, apatia sexual etc. . 

Disse Joyce: “O verdadeiro símbolo do Império Britânico não é a caricatura de John Bull, mas Robinson Crusoé, que, abandonado numa ilha deserta, com uma faca e um cachimbo no bolso, torna-se arquiteto, carpinteiro, amolador de facas, astrônomo, padeiro, armador, oleiro, seleiro, agricultor, alfaiate, fabricante de guarda- chuvas e clérigo. Ele é o verdadeiro protótipo do colono britânico, assim como Sexta- Feira (o fiel selvagem que chega num dia de azar) é o símbolo das raças subjugadas. Todo o espírito anglo-saxão está em Crusoé: a independência viril; a crueldade inconsciente;  a persistência; a inteligência lenta porém eficiente; a apatia sexual; a religiosidade prática, bem equilibrada; o mutismo calculado. Quem relê esse livro simples e comovente à luz da história posterior não pode escapar de seu encanto profético”.

Robinson Crusoé é o protótipo do indivíduo da ficção sociológica do liberalismo segundo a qual a sociedade não existe. O que existe seria um ajuntamento de “homens e mulheres e famílias”, como repetiu a primeira-ministra Margaret Thatcher em 1987.

Senhor de escravos

Crusoé era um escravocrata. Aprendeu a falar português, adquiriu terras e um engenho de cana de açúcar na Bahia, e naufragou durante uma viagem que fazia em direção à costa da Guiné para comprar mais escravos. Quando foi resgatado da ilha deserta, era um homem rico. Seria hoje um desses milionários que podem ficar em isolamento social o tempo que quiserem, tendo à disposição uma máquina que não para de produzir lucros.

O Ulysses-Leopold Bloom de Joyce é bem diferente. Bloom é um homem comum, um joão-ninguém, um meio-judeu por parte de pai, um ser genérico que representa toda a Humanidade. 

Joyce revolucionou a literatura mas nunca foi um revolucionário político. Ainda assim, o seu principal personagem, Leopold Bloom, inspirou no cineasta soviético  Sierguêi Eisenstein a ideia de filmar O Capital de Karl Marx com base nas técnicas narrativas do Ulysses. O projeto nunca deslanchou.

No caso do Capital, a principal personagem do filme seria a mercadoria, a quintessência do sistema capitalista, a quem Leopold Bloom, no romance, serve na condição de agenciador de anúncios publicitários.

Bloom é um homem comum, sem propriedades. Ele não é aceito nem mesmo como um irlandês pleno, por ser judeu como Spinoza, Marx, Jesus Cristo e o próprio Deus dos cristãos, como joga na cara do Cidadão no episódio do Ciclope.

Mas no fim ele se sai muito bem. Mesmo não possuindo nada, ele tem o que muitos consideram como tudo, o amor. Ainda que seja o amor compartilhado, contagioso, de Molly, que lhe diz sim e sim e sim e sim!

Fonte: Brasiliários

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