EUA: Chances de derrotar Donald Trump nunca foram tão grandes

Principais novidades são o avanço de candidaturas de esquerda e o surgimento de uma constelação de novas – e interessantíssimas – organizações pós-capitalistas

O deslocamento das esperanças de revolução para as periferias do capitalismo deu-se apenas no século 20. Marx e seus primeiros seguidores estavam convencidos de que os proletários desafiariam o sistema em seu centro – onde ele era mais desenvolvido e pesavam menos, em consequência, as relações sociais pré-capitalistas, vistas como estorvo.

Não deve parecer espantoso que, um século e meio após a fundação da 1ª Internacional (em Londres…), os Estados Unidos sejam, além da óbvia terra de Trump, um dos pontos onde mais se desenvolve um novo pensamento pós-capitalista. Está ligado à emergência de uma nova classe, o precariado, e enseja tendências que podem surpreender a alguns desavisados. Por exemplo, uma identificação clara entre as causas LGBTI e a esquerda mais rebelde. Vale a pena conhecer o fenômeno, naturalmente negligenciado pela mídia brasileira.

Como introdução e contexto, vale reter dois dados cruciais. Primeiro: há muito chão pela frente (e a eleição é indireta), mas Trump nunca esteve tão próximo de perder a reeleição. Seu favoritismo, real até a pandemia, dissolveu-se diante de sua atitude negligente, de centenas de milhares de mortes e, agora, do recrudescimento da Covid-19. Agora, a maior parte das pesquisas dá nove pontos percentuais de vantagem a Joe Biden, do Partido Democrata (em 2016, Hillary Clinton venceu no voto popular por um terço desta margem).

Além disso, Biden está sendo capaz de atrair parte importante dos homens brancos sem curso superior, o eleitorado decisivo que deu vitória a Trump há quatro anos. Uma previsão estatística da revista Economist, que leva em conta a composição do Colégio Eleitoral, estima que a probabilidade de uma virada é, a esta altura, de cerca de 11%.

Segundo fato: Joe Biden abriu diálogo real com Bernie Sanders e a esquerda. Ao contrário de Hillary – que hostilizou seu oponente em 2016 –, Biden reconheceu explicitamente o papel do senador que tem coragem de se afirmar “socialista”. Reconheceu, em 8/4, que Sanders e seus apoiadores “mudaram o cenário político nos Estados Unidos”, ao “colocarem no centro do debate temas aos quais se dava pouca atenção, como a desigualdade, a Saúde Pública universal, a mudança climática e a gratuidade do ensino universitário”.

A fala abriu um canal de conversações entre ambos. Isso não implica, obviamente, garantia alguma de que Biden caminhará de fato à esquerda. Ele está sujeito a muitas outras pressões, inclusive as da oligarquia financeira e do chamado “complexo industrial-militar”. Mas o passo indica que, se houver mobilização social decisiva em favor de mudanças, um possível governo Biden será obrigado a negociar com ela.

E aqui entramos no terreno em que há mais novidades surpreendentes. O mal-estar contra o racismo e as desigualdades parece ir, agora, muito além dos gigantescos protestos contra o assassinato de George Floyd – segundo o New York Times, os “maiores da História dos Estados Unidos”, com participação total de 15 a 26 milhões de pessoas. A esta mobilização corresponde um movimento real de conquista da opinião pública por uma nova esquerda, e de organização política de longo prazo.

O efeito mais visível são os preparativos para as eleições parlamentares, que ocorrerão em 3/11, mesma data das presidenciais. Nas disputas prévias do Partido Democrata, já em curso, candidatos nitidamente à esquerda estão batendo seus rivais moderados em diversos distritos, muitos deles julgados, até há pouco, bastiões seguros da ala conservadora. Também este fato chamou a atenção da Economist. As vitórias mais recentes ocorreram em três distritos de Nova York (onde a cultura de crítica ao sistema é vigorosa), mas também em distritos muito mais conservadores dos estados de Illinois, Virginia e Novo México.

Há a perspectiva clara, diz a revista, de um forte crescimento da atual bancada mais à esquerda do Partido Democrata. Ela é hoje composta por quatro parlamentares muito combativas e proeminentes, apelidadas de The Squad, ou “O Pelotão”. Caso avance, com integrantes de igual intrepidez, conclui a revista, poderá exercer papel destacado, ao repercutir pautas sentidas pelas maiorias e quebrar a mesmice de um Congresso pouco sensível a estes temas.

Aqui vale um parêntesis provocador. Ao contrário do que ocorre no Brasil – onde as redes sociais enchem-se tantas vezes de polêmicas estridentes e vazias, entre esquerdas que se pretendem “classistas” ou “identitaristas” –, nos EUA há notável convergência. A nova esquerda defende posições claramente opostas à hegemonia neoliberal e à mercantilização da vida. Quer Saúde e Educação gratuitas, combate à oligarquia financeira, empregos dignos garantidos pelo Estado, Green New Deal (Virada Socioambiental, com investimentos públicos maciços em novas fontes de energia, despoluição e transporte coletivo).

Mas algumas das grandes figuras desta emergência são mulheres, negros e negras, latinos e latinas, e LGBTIs. As quatro componentes do The Squad atual são, todas, mulheres e não brancas. Dentre os candidatos que venceram as prévias democratas em Nova York estão o possível primeiro negro gay e o primeiro latino gay do Congresso dos EUA.

Mas os possíveis avanços no Parlamento são apenas o resultado superficial de um processo muito mais profundo e denso. Multiplicaram-se nos últimos anos, no país, organizações políticas que dão sentido e futuro a esta agenda política de transformações. Uma das mais antigas é o grupo DSA (Socialistas Democráticos dos EUA), que foi formado em 1982 mas cresceu exponencialmente a partir (e contra) a eleição de Trump.

A ele somou-se uma constelação diversa, e que é preciso estudar mais extensamente. Dela fazem parte, por exemplo, grupos que se dedicam à mobilização eleitoral, e reúnem milhares de ativistas, dispostos a disputar votos de casa em casa. Entre estes estão, por exemplo, o Democracy for America, o Justice Democrats e o Real Justice. O concerto é integrado também por grupos antirracistas (Black Lives Matter e Color of Change), entre outros; por um ambientalismo de caráter fortemente social (como o do Sunrise Movement); por thinktanks de formulação política e assessoramento (como o New Consensus); por institutos de pesquisa alternativos (como o Data for Progress).

Numa sociedade que se sente em desconforto, esta galáxia tem sido capaz de se sustentar por meio de doações do público. No início de junho, o ActBlue, uma plataforma que serve a um conjunto de causas e organizações progressistas foi capaz de levantar, em 24 horas, US$ 40 milhões.

Os próximos quatro meses podem ser decisivos. Uma derrota de Trump, em novembro, em meio a uma importante articulação de esquerda renovada nos EUA, pode alterar substancialmente o cenário político sombrio sob o qual vivemos. E num certo sentido, a expectativa de Marx cumpre-se temperada por mordaz ironia. Sim, no século 21 surgem também no coração do sistema movimentos rebeldes. Mas é notável que alguns de seus principais protagonistas já não sejam os velhos operários brancos, mas mulheres, negros, latinos e homossexuais do novo precariado.

Publicado originalmente no Outras Palavras

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