Uma fila da Caixa, a espera e a esperança do povo brasileiro

Por que poucos com tanto, por que muitos têm que pelejar tanto pelo mínimo? 600 reais, que eram 200. Mínimo, básico, muitas vezes insuficiente.

Hoje não consegui resolver um problema pelo app da Caixa e tive que ir ao banco. Minha internet não tava funcionando e isso me deu um tempo pra só observar, pensar e sentir enquanto aguardava na fila — um amontoado de gente (com distanciamento só quando algum funcionário chamava atenção) onde fiquei por cerca de três horas. E nesse tempo eu refleti sobre quantos obstáculos são colocados ao pobre nesse país.

A maioria ali buscava orientação sobre o auxílio emergencial, renegociação sobre financiamento estudantil ou outras coisas relacionadas à pandemia. Fila quilométrica, sol escaldante, muita gente nervosa. Agência no Centro, frequentemente passava uma Range Rover e outros carros que custam muito mais do que aquelas pessoas já tiveram na vida — num sistema que as joga pra escanteio e pras periferias, mais que as vidas delas. Um homem comenta com outro: “tem gente com tanto dinheiro, e a gente aqui nessa fila, né?”

Eu não sei o que ele quis dizer com essa reflexão, talvez nem ele mesmo saiba. E isso não é invenção, fanfic, até porque a realidade já nos dá elementos suficientes pra falar sobre desigualdade. Até me surpreendi, porque estava pensando a mesma coisa. Eu, com pouca altura mas do alto dos meus “privilégios” que deveriam ser encarados como direitos básicos: eu não precisava estar ali pelo auxílio emergencial. Cheguei a solicitar pois me enquadrava nos critérios e havia perdido minha renda como estagiária, mas tive outra oportunidade de emprego e daí retornei o benefício ao governo (que, pra quem não sabe, é burocrático até mesmo pra devolver!!!). E tenho visto muita gente tratar o fato de ter emprego, teto e comida neste momento como sorte, privilégio, mas mesmo reconhecendo os benefícios disso eu não vou chamar assim, pois quando a gente agradece por estar “menos pior” a gente legitima que não haja esforço por parte da administração pública pra que as coisas melhorem e sejam mais próximas do que é a dignidade, e não somente menos distantes do que é a miséria extrema.

Ainda na metade do percurso eu já estava dominada pela irritação, tinha coisas pra fazer em casa no computador, não queria estar ali, ninguém queria. Uma pessoa passa mal, chega a ambulância. E a minha raiva que era pelo sol, pela demora e pela burocratização sistemática contra a população menos favorecida se mesclou com a indignação por tudo isso sempre acontecer com uma parcela muito específica do nosso povo. Coincidência? Não. “Não é uma crise, é um projeto”, em vários aspectos. As Range Rover seguiam seus caminhos, provavelmente rumo a prédios luxuosos e pessoas engravatadas… aquela gente continuava ali, parada, esperando numa fila pra ser ajudada com o próprio auxílio assim como sempre espera por melhora mesmo que pra isso enfrente tanto, sofra tanto, assim como elege um presidente messiânico na esperança de que algo vai mudar. Em fisgadas, o chamado “ódio de classe”.

E a pergunta que serve pra várias situações de nossas vidas… pra quê tanto? Por que poucos com tanto, por que muitos têm que pelejar tanto pelo mínimo? 600 reais, que eram 200. Mínimo, básico, muitas vezes insuficiente.

O ódio pode ser de classe mas pode também o contrário, ele tem muitas nuances. Em grande parte dos momentos ali eu não pensava nessas ‘palavras bonitas’ que tô escrevendo, só em abominar a Caixa Econômica, no quanto eu precisava ir embora. Terreno fértil pra um discurso sobre privatização, por exemplo, né? Pois é. E pra muito mais coisa também. O estresse extremo ao qual nos submete tantas situações do cotidiano, em geral envolvendo questões de finanças/trabalho, é capaz de isolar qualquer traço de racionalidade. Nesse contexto, é natural que uma pessoa com raiva por ter tido o celular que parcelou em 12x roubado não reflita muito sobre a ineficácia de só simplesmente matar o ladrão. E isto levando em conta que ele não está só no “trombadinha” da rua, mas também nos saqueadores institucionais do povo, que ditam suas próprias leis e esfolam o Brasil desde 1500. Eu não queria pensar que o problema não é a Caixa, que não é o SUS, que não é a escola pública — mas sim o que más gestões, gestões de interesses que não são os nossos, fazem com eles. Eu só queria ir embora.

Em contrapartida, já dentro da agência, assisti com carinho e tristeza a um atendente gentil que tentava ensinar a uma senhora como acessar os serviços do banco pelo celular, enquanto os que aguardavam zombavam da falta de entendimento dela sobre tecnologia e criticavam a ‘demora’ dele em chamar o próximo. Traduzi em texto um pouco do que senti pra tentar expressar a minha angústia de ver tudo isso acontecendo em meio a uma crise sanitária, econômica, social, etc etc etc. Pra trazer algumas questões pra se pensar o quanto a raiva desumaniza, banaliza a violência, e o quanto ela é propositalmente projetada nas pessoas ditas “simples”. Pessoas na verdade muito complexas, naquilo que são e naquilo que os que se acham donos deste país tentam fazer com elas. Problemas técnicos existem em qualquer aplicativo, em qualquer programa governamental, mas falo aqui daquilo que é mais profundo, que provém do desprezo, do desdém, da humilhação contínua, da submissão que se faz necessária.

E o que temos como alternativa a isso? Na volta, ouvi do Uber que ele não acredita em nenhum político. E não sei se acredito em político, mas acredito em projeto político, em qual visão de mundo deve nos nortear. E ter projeto não é uma opção, é uma necessidade pra quem não precisa de blablabla ou de mero discurso bonito, pra quem não quer ouvir mil análises de conjuntura que falam sobre as mesmas coisas, só quer sair dali. Da fila da Caixa, mas também de muitas outras coisas. Sair do mapa da fome, da sensação de insegurança, da vontade de sumir depois de um dia cansativo. Muito se diz sobre o trabalho que dignifica, mas pouco se fala sobre as condições desse trabalho e os outros muitos fatores básicos de dignidade que são renegados a trabalhadores e trabalhadoras. Mas persistimos pra dizer que não é normal: que a gente também sente raiva, mas não se conforma, a transforma em impulso pra questionar o por que de as coisas serem assim.

“Faz escuro, mas eu canto”

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