As tensões entre Estados Unidos e China – Parte III

Muito embora seja liderada por um partido comunista, a China é uma das maiores guardiãs do status quo internacional.

Ilustração: Tainan Rocha

Uma nova Guerra Fria? Quem é a ameaça?

Conforme visto acima, a postura de Donald Trump vai na contramão do que Nixon desenhou na década de 1970. O atual entendimento é que a política externa chinesa é uma ameaça aos Estados Unidos e à ordem internacional surgida no pós II Guerra. Há quem defenda, inclusive, uma postura de maior beligerância.

Se uma Guerra Comercial contra a China já havia sido iniciada por Donald Trump em 2018, as crises sanitária e econômica decorrentes do coronavírus aceleraram as ofensivas do presidente norte-americano. Seja para disfarçar sua incompetência para lidar com a covid-19 ou seja para defender a hegemonia dos Estados Unidos, Trump faz questão de chamar o vírus de “vírus chinês”.

Os ataques feitos por algumas figuras públicas estadunidenses não deixam dúvidas. Além de valerem-se do discurso racializado do “perigo amarelo” também apostam nos ataques ao Partido Comunista Chinês. O Secretário de Estado Mike Pompeo, por exemplo, chegou a dizer no Instituto Hudson (2019) que “o partido comunista chinês é um partido marxista-leninista focado na luta e na dominação internacional”.

Os Estados Unidos encontram partidários ao redor do mundo.Um exemplo é o atual governo brasileiro, que apresenta alinhamento subserviente, automático e inconsequente a Donald Trump. Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente Jair Bolsonaro, já proferiu ofensas ao PCCh. Ernesto Araújo, Chanceler do Brasil, e Abraham Weintraub, ex-Ministro da Educação, também já fizeram publicações nas redes sociais no mesmo sentido.

Além dos ataques de Trump mencionados na Parte II contra a Huawei e ao app TikTok, Washington também tenta abalar a reputação internacional do gigante asiático inflamando os conflitos em Hong Kong. Trump chegou a assinar uma lei americana que autoriza sanções contra autoridades políticas e policiais chinesas. São previstas punições, inclusive, a bancos que façam transações com a Região Administrativa Especial.

Com uma minoria se insurgindo há mais de um ano contra o governo chinês, Xi Jinping promulgou no final de junho de 2020 uma lei de segurança nacional. Ironicamente, os EUA tentam fazer parecer que o que causa descontentamento é a lei promulgada em Pequim e não a sua, feita para punir pessoas e instituições estrangeiras, sobre assuntos que não são de sua alçada.

Como a propaganda internacional não pode ser feita sem ajuda da imprensa, durante a coletiva com Li Yang, o emissário da CNN Brasil chegou a associar a Lei de Segurança Nacional com os descontentamentos em Hong Kong. Com muita tranquilidade, o cônsul-geral disse haver um erro na colocação e completou: “Os setores descontentes são um pequeno grupo de manifestantes que são contra a China e eles contam com apoio internacional da Inglaterra e EUA, que tem interesse no separatismo”.

Li reafirmou ainda que “Hong Kong é China. Por ser parte da China o separatismo não pode ser aceito pelo PCCh. Além disso, todo país possui uma lei de segurança nacional e a China não é exceção. O Governo Central não esperará mais 23 anos para que seja concretizado um projeto para a zona especial de Hong Kong”.

E quando Li Yang destaca que os atritos são gerados por uma minoria, não está errado. Em 2014, uma pesquisa realizada pelo Pew Global Research – um instituto norte-americano – indicava que a aprovação de Xi Jinping girava em torno de 94%. Anos depois o Centro Ash para a Governança Democrática e Inovação da Escola de Governo de Kennedy, cuja pesquisa foi publicada por Harvard confirmou o resultado. 93,1% de aprovação. A habilidade do PCCh para lidar com o coronavírus e não deixar a economia entrar em recessão devem reafirmar a confiança da população, que está perto da marca de 1,4 bilhões de habitantes, em relação ao governo.

População coesa, governo resiliente, vanguarda tecnológica, crescimento econômico… o cenário não é otimista para a Casa Branca. Observando esses aspectos, o também insuspeito cientista político Fareed Zakaria defendeu em um artigo no Washigton Post que os EUA competirão com a China durante a maior parte do século XXI [1]. Porém, diferente do que ocorreu com a extinta União Soviética, o desafio não é sobre o quão duro os EUA devem ser, e sim com quanta inteligência devem atuar. Tudo indica que o governo norte-americano ainda não percebeu as diferenças.

Muito embora seja liderada por um partido comunista, a China é uma das maiores guardiãs do status quo internacional. O governo entende que o seu “socialismo com características chinesas” é um modelo próprio e não tenta exportá-lo para outros países. Ademais, toda a sua política externa volta-se para a ideia de “ganha-ganha”, ou seja, acordos em que as partes se beneficiam mutuamente. As iniciativas do Cinturão e Rota expressam bem essa visão. Tanto é assim, que mesmo com a atuação intensiva dos EUA para prejudicar a imagem da China, a Nova Rota da Seda já conta com a adesão de 140 países e 30 organizações internacionais.

E enquanto a Casa Branca tenta minar organizações internacionais, Pequim tenta reforçar o multilateralismo. O cônsul-geral Li Yang, ao tomar os BRICS como exemplo, disse que “os seus países são grandes economias e para que se mantenham saudáveis, é preciso que se aprofunde o multilateralismo. Se optarmos pelo protecionismo, teremos problemas”.

Mencionando a economia brasileira, cuja balança comercial foi superavitária no 1º semestre de 2020 graças às exportações para a China, Li propôs um exercício de reflexão: “E se todos os países fossem protecionistas com o Brasil? Isso traria grandes estragos econômicos. Assim, defendemos multilateralismo e abertura econômica. E não são apenas os BRICS quem se beneficiam desses mecanismos”.

E se nas relações comerciais a China não apresenta um comportamento predatório, sob uma perspectiva militar o cenário não é diferente. Desde as políticas de reforma e abertura, o gigante asiático se apresenta como pacífico. Além de ser a 2ª maior financiadora de operações de paz das Nações Unidas, a China também já apoiou 182 das 190 resoluções do Conselho de Segurança.

Muito embora soldados indianos e chineses tenham tensionado com pedras e paus no vale de Galdwan, região fronteiriça de Ladakh em junho de 2020, o Governo chinês não entra em conflitos armados desde 1979. Trata-se do único país do Conselho de Segurança da ONU que não usou força militar contra terceiros na última década.

O comportamento pacifista da China também se expressa quando se trata de poderio nuclear. Enquanto 1.750 das mais de 6 mil ogivas norte-américas estão implantadas em mísseis ou instaladas em bases militares ativas, a China não possui nenhuma acionada. Todas as suas 290 ogivas encontram-se desativadas ou aguardando desmantelamento. A sua política nuclear é voltada para a defesa, não para o ataque[2].

O mesmo não podemos dizer sobre os Estados Unidos, que foram vistos no Fórum Econômico Mundial de janeiro desse ano como o maior fator de risco político do ano. Pensando no gigante asiático, para além das investidas mencionadas anteriormente, podemos mencionar a guerra do Afeganistão, que colocou um enclave militar norte-americano no coração da Ásia e as provocações em torno do Mar da China. Ademais, também estão na memória recente os conflitos contra o Iêmen, a Líbia, o Paquistão, a Síria, a Somália e o Irã, por exemplo.

As cartas sobre a mesa indicam que se as duas potências partirem para as vias de fato será por ordens da Casa Branca. Por hora, repito sem medo de ser prolixa que Henry Kissinger tinha razão.

No próximo texto (IV), fecharemos a série de artigos envolvendo os assuntos abordados na coletiva de imprensa com o cônsul-geral Li Yang falando sobre os avanços tecnológicos da China, que tanto tem assustado os Estados Unidos.

As considerações sobre o futuro das relações Brasil-China você encontra aqui.

Leia também: As tensões entre Estados Unidos e China – Parte I

As tensões entre Estados Unidos e China – Parte II

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