Precariedade trabalhista da enfermagem explica mais mortes no Brasil
Demandas históricas da categoria se acentuaram na pandemia, ao mesmo tempo que expuseram o descaso do governo com profissionais da linha de frente do combate à pandemia.
Publicado 14/08/2020 23:08 | Editado 15/08/2020 12:31
Hoje, são 34.273 mil contágios e 360 mortes de profissionais de enfermagem no Brasil por Covid-19. São cerca de 2 mortes e meia por dia, desde o início da pandemia. Esse número de mortos é considerado o maior do mundo, como tantos outros dados sinistros que destacam o Brasil. Cerca de 1,1 milhão contaminados no mundo são profissionais de saúde, o equivalente a 7% do total de doentes.
Em entrevista ao portal Vermelho, Walkírio Costa Almeida, coordenador do Comitê Gestor de Crise da Covid-19 do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), explicou os motivos desta disparidade brasileira em relação a países como os EUA, que têm a maior taxa de contágio do mundo, superando o Brasil, mas não perdeu tantos profissionais de enfermagem.
Segundo ele, o Brasil não está protegendo adequadamente os profissionais de saúde de modo geral, em especial os profissionais de enfermagem. Os aspectos que afetam o número de mortos, conforme ele pontua, incluem os meios de proteção, o preparo técnico dos profissionais para lidar com essa nova doença e o contexto característico da enfermagem brasileira. “Não são problemas novos, mas a pandemia evidenciou os problemas enfrentados há tanto tempo”, resumiu ele. A falta de equipamento e não inserção no dia-a-dia dos equipamentos de proteção individual não surgiu agora com a demanda mundial, mas, informa ele, é um problema de sempre. “Os profissionais de saúde precisam de um nível de proteção mais elevado que lhes dê melhores condições de não se infectarem e serem vetores de infecção”.
Profissões de enfermagem não têm jornada de trabalho definida em lei, o que faz com que tenham a mesma jornada de uma profissão comum, sem insalubridades e especificidades sanitárias.
Dentre os trabalhadores da saúde, o menor piso salarial é dos profissionais de enfermagem. “Sessenta por cento dos trabalhadores ganham no máximo R$ 3 mil, a partir de duplos ou triplos vínculos de emprego, revezando entre plantões de hospitais diferentes. Muitos dormem poucas noites em casa, passando grande parte do tempo nesses hospitais. São pessoas que moram nos empregos e visitam suas casas. Têm o sistema imunológico afetado com enorme tempo de exposição a todo tipo de doenças e infecções”, relata Almeida.
Embora houvesse protocolos previstos para uma situação de pandemia, muitas instituições não prepararam seus profissionais para lidar com a nova doença. Com isso, eles tiveram que aprender enquanto recebiam os pacientes. “Não houve fornecimento de equipamentos de proteção adequado para esse tipo de epidemia, com muita improvisação”, conta, lembrando as capas de chuva usadas como capotes.
Mas, o conselheiro considera possível barrar esse ritmo de crescimento de profissionais infectados, protegendo-os e preparando-os melhor. “É preciso dar suporte social de jornada, de remuneração e equipamentos de proteção, como outros do dia-a-dia que são sucateados, adequar o número de profissionais à demanda. O quantitativo de profissionais é insuficiente para a demanda, com muita sobrecarga de trabalho”, disse ele. Tanto que, durante a pandemia, houve um crescimento de 40% nos pedidos de registro de profissionais nos Conselhos de Enfermagem. Gente capacitada que não estava atuando por falta de mercado de trabalho.
Morrem mais enfermeiros que enfermeiras
Os dados mencionados no início são do Observatório da Enfermagem, organizado pelo Conselho Federal de Enfermagem, devido à dificuldade de reunir estatísticas com os governos federal e locais. Foi criada uma notificação eletrônica que gestores de enfermagem de hospitais de todo o país acessam e informam diariamente os contágios, afastamentos, retornos e mortes.
A experiência do Observatório chamou a atenção de outras organizações e imprensa de vários países do mundo, assim como deve continuar funcionando para além da pandemia. “O Observatório não apenas aproximou o Cofen dos profissionais, como também nunca se falou tanto de enfermagem na sociedade como nestes últimos meses”, comemora ele.
Um dos dados inesperados do Observatório da Enfermagem foi a proporção de homens que morreram por Covid-19. Embora os homens sejam apenas 15% do total de profissionais de enfermagem, eles são 37% dos óbitos. Ou seja, embora haja muito mais mulheres na categoria (85%), assim como a proporção de 85% das infecções também seja em pessoas do sexo feminino, os homens são mais vulneráveis à versão mais letal da doença.
Oportunidade perdida pelo governo
Almeida também mencionou as denúncias de hostilidade contra enfermeiros e outros profissionais de saúde feitas ao Cofen. “Enfermeiros que chegaram a sofrer agressão física, outros que foram verbalmente agredidos em estações de metrô e pontos de ônibus, principalmente no início da pandemia. Alguns foram demitidos porque cobraram melhor condição de proteção. Não ficamos imunes a essa intolerância de alguns indíviduos”, disse ele.
Mas diante de tudo, o veto do presidente Bolsonaro às indenizações a profissionais de saúde afetados pela pandemia foi um dos momentos mais tristes. “Foi uma oportunidade perdida pelo governo brasileiro de reconhecer o trabalho daqueles que, mesmo com medo, foram para a linha de frente e colocaram a própria família em risco. O profissional de enfermagem ainda sofre com a angústia de poder ser o vetor de transmissão daquele vírus para sua família”, disse ele.
O presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente no dia 4 de agosto o projeto de lei que previa R$ 50 mil para trabalhadores da saúde incapacitados pela Covid-19. O projeto havia sido analisado pela última vez pela Câmara dos Deputados, e aprovado no dia 14 de julho, após mudanças feitas pelo Senado. Pelo projeto, teriam direito à indenização profissionais que, atuando no combate à pandemia, se infectaram com o novo coronavírus e ficaram permanentemente incapacitados.
Almeida acredita que a pandemia fez com que os profissionais de enfermagem tomassem consciência de sua importância na sociedade e se organizassem melhor. Mas ele lamenta que os mais de dois milhões de profissionais não se reflitam na representatividade política no Congresso Nacional e nas Assembleias e Câmaras legislativas. Para ele, eleger enfermeiros seria uma forma de conquistar estas demandas atrasadas que afetam tão negativamente a categoria em momentos como desta pandemia.
Assista à entrevista com Walkírio Almeida: