O dia em que Caetano Veloso foi preso pelos militares

Depois de cinco meses de confinamento em Salvador, Bahia, quando, além de dever apresentar-se diariamente à autoridade militar, não podiam aparecer nem dar declarações em público, Caetano e Gil partem para o exílio em Londres, Inglaterra.

Foto: Thereza Eugênia

No dia 27 de dezembro de 1968, dois dos mais destacados compositores da música popular brasileira (MPB), Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram presos por agentes da ditadura militar, desde 1964 no poder no país. Depois de um mês na solitária, finalmente se soube sob qual acusação: “insulto à pátria”. Um pretexto apenas. Passados quase dois mês de detenção no Rio e mais cinco de liberdade condicional em Salvador, essas duas figuras exponenciais do tropicalismo – movimento vanguardista e militante, inspirado no Modernismo e na cultura hippie – são sumariamente condenadas ao exílio. É o próprio Caetano Veloso quem nos narra essa história no filme “Narciso em Férias” (“Narcissus Off Duty” no título internacional), documentário dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, com produção de Paula Lavigne, apresentado na Mostra de Veneza dia 7 de setembro agora. Uma prisão que, em lugar de silenciar os artistas, acabou mudando profundamente os rumos da música e da cultura popular no Brasil.

Verão de 1967, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, é já uma marca emblemática na história da cultura pop e mais de 100 mil pessoas se reúnem em São Francisco (EUA) para celebrar o “Summer of Love”, acontecimento de grandes proporções da cultura hippie, colocado sob o signo da paz, do amor e do LSD. Muito rapidamente, essa revolução cultural ganha todo o continente e um punhado de músicos brasileiros, liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, gravam, em julho de 1968, o disco Tropicália ou Panis et Circensis (literalmente: “pão e jogos”). A obra coletiva – que mistura influências internacionais com melodias ancestrais – dá um nó nos padrões até então vigentes na música brasileira e serve de manifesto ao movimento tropicalista que assim nascia. Um movimento revolucionário tanto no plano cultural como no político, que se propunha ser o traço de união entre a cultura das elites e as referências folclóricas das classes populares, largadas a esmo pelo poder vigente.

O Brasil entrara nos anos de chumbo desde o Golpe de 1964 – golpe de estado perpetrado pelos militares, com o apoio dos Estados Unidos, da burguesia nacional, incluindo a grande mídia e os setores católicos conservadores, que permanecerá no poder até 1985. As roupas e penteados excêntricos, inspirados no movimento hippie, as veleidades igualitárias que os tropicalistas pregavam, assim como suas numerosas provocações – como no dia em que Caetano Veloso brandiu uma bandeirola com o slogan “sejam marginais, sejam heróis” – tudo isso, claro, não era do agrado da junta militar, e no dia 27 de dezembro de 1968, os líderes do movimento Caetano Veloso e Gilberto Gil são presos em decorrência do Ato Institucional nº5, decreto editado 14 dias antes, que, entre outras coisas, vinha limitar a liberdade de expressão artística.

Paradoxalmente, os tropicalistas e Caetano Veloso não eram tampouco do agrado da esquerda socialista brasileira, que, fazendo oposição à ditadura, não os via exatamente como aliados. Julgavam o movimento demasiadamente influenciado pelo rock, entendido então como símbolo da cultura imperialista estadunidense. Em julho de 1967, liderada pela diva da MPB Elis Regina, houve em São Paulo uma marcha contra a guitarra elétrica, instrumento que representava então a americanização e, portanto, submissão da música nacional. Em outubro do mesmo ano, no entanto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, acompanhados dos roqueiros brasileiros Os Mutantes e argentinos Beat Boys, apresentavam-se no III Festival da TV Record, misturando guitarras elétricas, violão, sanfona e arranjos de orquestra, num movimento “antropofágico” à Oswald de Andrade, dando, pois, novo sentido ao que vinha de fora e inaugurando definitivamente a tropicália e a contracultura em terras brasileiras. Depois de cinco meses de confinamento em Salvador, Bahia, quando, além de dever apresentar-se diariamente à autoridade militar, não podiam aparecer nem dar declarações em público, Caetano e Gil partem para o exílio em Londres, Inglaterra.

Se ele evocará depois, na canção “London, London”, a melancolia de seus primeiros meses em terra estrangeira, sempre é fato que Caetano Veloso se achava então no epicentro da música mundial. Em 1969, a capital britânica acolhe os Rolling Stones, Led Zeppelin, T-Rex, Pink Floyd, The Who, Jimi Hendrix e, claro, os Beatles, que gravavam nesse mesmo ano o cultuado disco Abbey Road. No ano seguinte, Caetano Veloso e Gilberto Gil se encontram entre os 600 mil espectadores do Festival da Ilha de Wight, considerado hoje o “Woodstock inglês”. Desconhecidos da cena internacional, as duas estrelas brasileiras tinham ido até Wight apenas para assistir aos concertos de The Doors, Joni Mitchell, Leonard Cohen, Jimi Hendrix, etc., quando o também brasileiro Airto Moreira, percursionista de Miles Davis, os reconhece e indica ao famoso trompetista. Este os convida a subir no palco. Um dos organizadores do evento assim os apresenta ao enorme público: “Não conheço esses caras que vêm do Brasil. Me disseram que lá eles não podem se expressar. A única coisa que posso lhes garantir é que, aqui, eles podem”. Dessa performance improvisada, que durou cerca de meia-hora, não nos resta hoje senão poucos minutos de gravação em vídeo, em que vemos Caetano Veloso, meio nu, trazendo uma grande bandeira brasileira à cena. Trabalhador incansável, ele se vale dessa projeção para multiplicar seus discos e fazer shows pelos quatro cantos da Europa. Diante dessa inesperada fama internacional, os militares brasileiros entendem que dali pra diante seria difícil fazê-lo calar-se e então autorizam sua volta ao Brasil em janeiro de 1972.

Imagens de Caetano Veloso e Gulberto Gil no Festival da Ilha de White:

Desde então, Caetano Veloso vem escrevendo sua própria lenda com cerca de 50 álbuns lançados, ao lado de grandes nomes da MPB como Chico Buarque, Jorge Bem Jor, Gal Costa, etc. Além de compositor de canções, vem atuando também como arranjador, produtor e escritor, com presença constante nas mídias sociais, entrevistando ou sendo entrevistado. Personalidade pública muito admirada e respeitada no Brasil contemporâneo, Caetano nem por isso deixa de ter suas desavenças com os “podres poderes” de plantão: “Jamais imaginei que eu viveria tal regressão em minha vida”, declarou ele, no início de 2020, num post em suas redes sociais. “Passei minha juventude lutando contra a censura no meu país e contra a brutalidade da ditadura militar. Pode parecer inacreditável, mas hoje volto a viver uma situação em que, sob o disfarce do cordeiro democrático, o lobo fascista mostra seus verdadeiros dentes e garras”.

Narciso em Férias (2020 – Narcissus Off Duty), de Renato Terra e Ricardo Calil, foi apresentado na segunda-feira, 7 de setembro, na Mostra de Veneza. Disponível na Globoplay para assinantes.

Fonte: Numéro