Eleições nos Estados Unidos e a crescente tensão com a China
A bem da verdade, já antes de Trump, a China havia deixado de ser considerada uma parceira estratégica dos Estados Unidos e passado à condição de competidor estratégico e, agora, de inimigo a ser vencido.
Publicado 23/09/2020 19:19 | Editado 23/09/2020 19:20
Em agosto, democratas e republicanos realizaram as convenções para indicar seus respectivos candidatos a presidente e vice-presidente para a eleição que ocorrerá em novembro próximo nos Estados Unidos. Também estará em jogo o controle da Câmara dos Deputados e do Senado, hoje dominados respectivamente por democratas e republicanos. Uma eventual vitória de Joe Biden e a conquista da Câmara e do Senado pelos democratas, representaria uma mudança radical no quadro político interno dos Estados Unidos, com implicações importantes no resto do mundo.
Até a segunda semana de setembro, a média das pesquisas indica Joe Biden à frente de Trump por uma margem de oito pontos, mas ainda restam quase dois meses para as eleições e a margem vem se estreitando. Segundo os especialistas no assunto, para vencer no colégio eleitoral, Biden tem que garantir uma vantagem de pelo menos 4% no voto popular. Muita coisa pode mudar até novembro.
Até o final de 2019, a impressão que se tinha era de que Donald Trump se reelegeria com facilidade. O eleitor americano se importa pouco com o que ocorre no mundo e, normalmente, vota com o olho na economia que, até o final de 2019, estava indo relativamente bem, com baixo nível de desemprego e salários em alta. A eclosão da pandemia da Covid-19 e, posteriormente, os conflitos raciais que tomaram as ruas das grandes cidades dos Estados Unidos colocaram o quadro eleitoral norte-americano de cabeça para baixo.
A reprovação generalizada à forma como Trump vem conduzindo o enfrentamento à doença, que já infectou quase seis milhões de pessoas e provocou 188 mil mortes, os efeitos desastrosos sobre a economia de sua incompetência no trato da pandemia, somados às suas declarações racistas e atitudes truculentas no enfretamento dos conflitos raciais se refletiram nas intenções de votos.
Segundo o levantamento realizado semanalmente pelo jornal inglês Financial Times, a média das pesquisas de intenção de voto indicava, nesta segunda semana de setembro, a preferência de 50,7% dos eleitores por Joe Biden, contra 42,6% para Trump. Embora seja uma diferença ainda confortável ela vem se reduzindo a cada semana.
É preciso considerar, entretanto, que as eleições para presidente nos Estados Unidos são indiretas e vence o candidato que consegue o maior número de delegados em cada estado. Tanto na eleição de George W. Bush, em 2000, quanto na eleição de Trump, em 2016, o candidato que obteve a maior votação nas urnas – Al Gore, em 2000, e Hilary Clinton, em 2016 – perdeu no colégio eleitoral.
Para vencer a eleição, qualquer um dos candidatos precisa do voto de pelo menos 271 delegados. Se a eleição fosse hoje, Biden teria uma sólida vantagem na conquista de delegados e venceria mesmo sem os votos dos estados indefinidos. De acordo com o levantamento do FT, Biden teria, hoje, 279 delegados contra 122, de Trump, restando 137 delegados em estados indefinidos que, mesmo se fossem todos para Trump, ainda assim não seriam suficientes para elegê-lo. Mas esses números já estiveram melhores há algumas semanas, mostrando que essa vantagem tem diminuído.
Trump tem alardeado que os democratas só poderão vencer as eleições se roubarem, já deixando claro que não reconhecerá uma possível derrota e levará a disputa para os tribunais. Alega que os votos pelo correio, que podem ser enviados nos dois meses anteriores à data da eleição, serão fraudados pelos democratas.
Na verdade, o que se passa é o contrário. Trump indicou, em 2020, o empresário de logística Louis DeJoy, um dos apoiadores e arrecadadores de fundos para sua campanha, em 2016, como diretor geral dos correios dos Estados Unidos e ambos têm atuado para cortar custos e reduzir os recursos da empresa, o que tem levado a grandes atrasos na entrega de correspondência. Após remover, no mês de agosto, centenas de caixas de correio das ruas de algumas dezenas de estados americanos, o correio planeja remover 671 máquinas de classificação de correspondência, cerca de 10 por cento de seu estoque, agora em setembro, outro movimento que os defensores das eleições dizem que poderá diminuir o acesso dos eleitores às cédulas e a outras informações eleitorais importantes. Isso, segundo os democratas, poderia levar à invalidação de milhares de votos enviados pelo correio, que poderiam chegar depois do prazo para contagem. Como as pesquisas indicam que os eleitores de Biden têm maior propensão a votar pelo correio, Trump imagina com isso obter alguma vantagem, que pode ser decisiva para sua reeleição.
Mas o risco de uma derrota dos democratas não se resume às fraudes de Trump. Há sempre a possibilidade de os republicanos vencerem, mesmo sem roubar. Restam ainda quase dois meses para a eleição e muita coisa pode ocorrer nesse período. O eleitorado de Trump, formado majoritariamente pela baixa classe média branca e pelos evangélicos, é fiel e vota em Trump por mais desastrosa que seja sua gestão. Embora os evangélicos sejam cerca de 17% da população, representam 25% dos eleitores americanos. Um importante segmento que foi decisivo para a vitória de Trump em 2016, os eleitores brancos mais velhos, desta vez parecem ter se voltado contra ele por causa de sua desastrosa gestão da pandemia, mas Trump está apostando tudo no discurso da lei e da ordem, bandeira cara a esse segmento conservador do eleitorado.
Trump acusa os governadores e prefeitos democratas de leniência em relação aos protestos violentos que tomaram conta das ruas de grandes cidades americanas e diz que se os democratas vencerem a violência vai tomar conta do país, o que assusta o eleitorado branco conservador, que votou majoritariamente em Trump em 2016.
Também está pesando o fato de que nos estados governados por democratas, onde as medidas de distanciamento social foram mais rígidas, os negócios, sobretudo o comércio, foram mais afetados do que nos estados governados por republicanos, que relutaram em adotar medidas de distanciamento social e mantiveram a economia aberta. Como o governo praticamente não adotou medidas de proteção aos negócios, preferindo focar na ajuda direta às pessoas, como também ocorreu no Brasil, o número de negócios que fecharam as portas nos estados dirigidos por democratas tende a ser maior que nos estados republicanos. Tudo isso pode pesar no momento da eleição.
Tensão EUA – China, o lugar dos EUA no mundo e as eleições americanas
Outra bandeira importante da campanha de Trump são os ataques à China. Desde o início de 2018 Trump já havia posto a China como prioridade de sua agenda política. Para um presidente que se elegeu, em 2016, explorando o ressentimento da baixa classe média branca americana contra os efeitos da globalização sobre o mercado de trabalho americano, a China era o alvo perfeito para explorar os mais baixos sentimentos suscitados pela crise, como o racismo e a xenofobia. A infeliz coincidência de o vírus da Covid-19 ter sido detectado pela primeira vez na China apresentou-se para Trump como uma oportunidade, tanto para desviar a atenção da população norte-americana de sua incompetência para enfrentar a crise, quanto para redobrar os ataques que já vinha fazendo àquele país desde que iniciou a guerra comercial em fevereiro de 2018.
Leve-se ainda em conta que a agenda anti-China nos Estados Unidos reúne diferentes interesses e segmentos da sociedade americana, que vai desde a ultradireita religiosa anticomunista representada por Mike Pompeo, passando pelo aparato de segurança militar e belicista encastelado no Pentágono, chefiado pelo secretário da defesa Mark Esper e terminando no Vale do Silício, onde as empresas americanas de tecnologia, como Facebook e Google, querem barrar o avanço da concorrência chinesa nas áreas de inteligência artificial e comunicação 5G, sem desconsiderar, evidentemente o próprio Trump, com seu projeto imperial do “America First” e sua promessa de trazer os empregos de volta para os Estados Unidos.
Todos viram em Trump e em sua guerra total contra a China uma oportunidade para fazer avançar a sua própria agenda e, agora que as eleições se aproximam, dobraram as apostas. Trump porque acha que ganhará votos com isso, os outros porque desejam tornar essa agenda anti-China um fait accompli que, impendentemente de quem seja eleito em novembro, não possa mais ser revertida.
A bem da verdade, já antes de Trump, a China havia deixado de ser considerada uma parceira estratégica dos Estados Unidos e passado à condição de competidor estratégico e, agora, de inimigo a ser vencido.
É contra esse pano de fundo que devemos, portanto, enxergar as mais recentes investidas dos Estados Unidos contra a China, como o cerco total à empresa Huawei, cortando todos os canais pelos quais a empresa poderia se abastecer no mercado mundial dos insumos necessários para a montagem das redes 5G de comunicação, a inclusão de novas empresas chinesas de tecnologia no rol das potenciais ameaças contra suas concorrentes norte-americanas, como a Bytedance, dona do aplicativo TikTok, e a Tecent, dona do WeChat.
No rol dessa blitzkrieg americana contra a China podemos incluir ainda o fechamento intempestivo do consulado da China em Huston; o fim da neutralidade norte-americana em relação às disputas territoriais no Mar do Sul da China com incursões cada vez mais frequentes da marinha americana na região; a ameaça de proibir as empresas chinesas de ter suas ações listadas nas bolsas dos Estados Unidos; a campanha internacional contra a China por causa da repressão ao terrorismo islâmico e ao separatismo na província chinesa de Xinjiang; o fortalecimento das relações dos Estados Unidos com Taiwan por meio de venda de armas, visitas oficiais de altas autoridades norte-americanas à ilha; represálias contra Hong Kong por causa da aprovação da nova Lei de Segurança Nacional; a criação de um novo conceito geopolítico denominado “Indo-Pacífico”, com o objetivo que construir uma aliança anti-China na Ásia e Oceania incluindo, entre outros países, Japão, Índia e Austrália e a realização de exercícios militares conjuntos liderados pelos Estados Unidos do chamado RIMPAC 2020 (Rim of the Pacific International Maritime Exercise), que neste ano incluiu Austrália, Brunei, Canadá, França, Japão, Nova Zelândia, Filipinas, Cingapura e Coreia do Sul.
Mesmo que Trump não se reeleja em novembro próximo, é pouco provável que esse movimento de “desacoplamento” da China em relação aos Estados Unidos e seus aliados seja inteiramente revertido, o que aponta para a possibilidade concreta da divisão do mundo em torno desses dois grandes polos, obrigando os demais países escolher de que lado ficar.
A favor dos céticos em relação à tese do desacoplamento, entre os quais podemos incluir a própria China, e à impropriedade de equiparar a disputa atual a uma “Nova Guerra Fria”, está o fato de que o grau de interdependência da economia mundial é tão forte e a China está tão integrada a essa engrenagem econômica global, na posição estratégica de “fábrica do mundo”, que desentranhar essa complexa rede de interesses cruzados parece uma tarefa quase impossível.
A China é o maior parceiro comercial dos Estados Unidos e vice-versa. Mesmo com a guerra comercial a corrente de comércio entre China e Estados Unidos, em 2019, foi superior a US$ 500 bilhões. Sem os insumos importados da China boa parte da indústria norte-americana para e é praticamente impossível passar a produzi-los em território americano e em qualquer outro lugar do mundo de uma hora para outra.
A indústria farmacêutica dos Estados Unidos, por exemplo, depende da importação de principais ativos da China que, em alguns casos, responde por mais de 80% da produção mundial. O mercado chinês, por seu turno é vital para as empresas norte-americanas, principalmente as de alta tecnologia. Entre 25% e 50% das vendas de cinco fabricantes de chips dos Estados Unidos – Nvidia, Texas Instruments, Qualcomm, Intel e Broadcom – dependem da China.
Nada disso evidentemente garante que a crescente tensão entre as duas potências não acabe, até por um acidente, a transformar essa disputa em uma guerra real. Afinal é para isso que os dois lados estão se preparando, muito embora, nesse aspecto, a China está bastante aquém do poderio militar norte-americano, não tem a menor intenção de agredir ninguém e só iria para a guerra caso não tivesse outra alternativa. Mas mesmo em inferioridade militar, a China tem poder de fogo suficiente para revidar de forma mortal qualquer ataque dos Estados Unidos.
“Os gastos militares dos Estados Unidos alcançaram 732 bilhões de dólares em 2019, aproximadamente três vezes mais que os 261 bilhões de dólares que a China gastou. Os Estados Unidos possuem 800 bases militares no exterior, enquanto a China tem apenas uma pequena base naval no Djibuti. Os Estados Unidos possuem muitas bases militares próximas da China, enquanto a China não possui nenhuma próxima dos Estados Unidos. Os Estados Unidos possuem 5.800 ogivas nucleares; a China possui aproximadamente 320. Os Estados Unidos possuem 11 porta-aviões; a China tem um. Os Estados Unidos lançaram muitas guerras no exterior nos últimos 40 anos; a China não lançou nenhuma” (CGTN, America’s unholy crusade against China, 17/8/2020).
No dia 25/8/2020, Mark Esper, o secretário de defesa dos Estados Unidos, escreveu no Wall Street Journal um artigo intitulado “O Pentágono está pronto para a China” no qual deixa claro que os Estados Unidos estão se preparando para uma guerra contra os chineses. No artigo se pode ler, por exemplo, que “O Exército de Libertação Popular (ELP) não é uma força militar que serve à nação, muito menos à Constituição, como as forças armadas dos Estados Unidos fazem. O ELP pertence – e serve – a uma entidade política, o Partido Comunista Chinês (…) A NDS (Estratégia Nacional de Defesa, sigla em inglês) guia nossos esforços para modernizar as forças armadas dos Estados Unidos para a competição de grandes potências tendo a China como foco. Em primeiro lugar e principalmente, a competição de longo prazo com a China demanda que tenhamos forças capazes de competir, deter e vencer em todos os domínios: ar, terra, mar, espaço e ciberespaço. Para apoiar esse esforço, o Pentágono está investindo tanto em capacidade convencional quanto em tecnologias inovadoras como armas hipersônicas, comunicação 5G, sistemas integrados de defesa aérea e de mísseis, e inteligência artificial – tudo isso será crítico para manter nossa vantagem pelas próximas décadas”.
Não interessa à China esse tipo de escalada. A China não aspira à hegemonia global. Seus objetivos são bem mais modestos: a construção de uma sociedade moderadamente afluente até 2022 e uma sociedade socialista próspera até 2049, como o governo chinês enfatiza em todos os seus planos estratégicos. Tanto que frente à escalada de ataques e provocações ela tem respondido com moderação, evitando colocar mais lenha na fogueira. Faz isso não por medo, mas porque sabe que o “desacoplamento” em relação aos Estados Unidos não interessa a ela e, possivelmente, nem a um grande número de empresas americanas, que dependem do mercado chinês tanto para vender seus produtos, como de fornecedores chineses para concorrer no mercado americano e mundial. Sempre que têm oportunidade, os negociadores chineses têm procurado colocar água na fervura, na expectativa de que, passado o frenesi das eleições, as relações bilaterais possam retornar a um certo nível de normalidade. A conferir.
Fonte: Bonifácio