Carta de Clarice Lispector resiste ao tempo

Crônica escrita pela autora ao ministro da Educação durante o período da ditatura militar permanece atual

Foto: Reprodução / Facebook USP

Clarice Lispector nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, há cem anos atrás. Chegou a Maceió ainda nos primeiros anos da infância, em 1922, quando a família deixou a terra natal para fugir de conflitos de guerra. A vida que Clarice conheceu foi no Brasil, especialmente em Recife e Rio de Janeiro. Ainda com sete anos, na capital pernambucana, despertou o interesse pelas letras e se tornaria íntima da língua portuguesa para que essa pudesse exprimir com exatidão o que queria dizer. E assim o fez na crônica Carta ao Ministro da Educação, publicada em 1968 no Jornal do Brasil.

“Senhor ministro ou Presidente da República, impedir que jovens entrem em universidade é crime. Perdoe a violência da palavra. Mas é a palavra certa.”

Na crônica, Clarice expressa a preocupação com o elitismo com que o governo passava a tratar o ensino superior público. Entre os textos reunidos na obra A Descoberta do Mundo, a crônica é uma das manifestações mais enfáticas de crítica ao governo militar e de zelo com o futuro do país, ao lado de Daqui a Vinte e Cinco Anos.  

O professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), Jaime Ginzburg, publicou ainda em 2007 um artigo sobre a crônica. Entre análises dos elementos do gênero literário, o professor propõe uma investigação sobre a construção do texto. “Trata-se de uma combinação singular de elementos históricos e literários, individuais e coletivos, em favor de uma posição de resistência.”

No artigo, Ginzburg avança sobre a mudança que as universidades brasileiras passavam para se adequar ao mercado de trabalho imediatista. O pensamento militar à época era de progresso econômico a qualquer custo, priorizando uma formação tecnicista e cerceando o pensamento crítico e o debate amplo de ideias.

Clarice, então, não titubeia em denunciar como crime a decisão do governo militar em excluir deliberadamente uma parcela da população do direito ao ensino superior. Ela se referia ao exame de admissão nas universidades, o vestibular. Até hoje o método permanece no sistema educacional brasileiro, acrescido de conquistas sociais importantes como as políticas de cotas e bolsas estudantis.

A lógica excludente adotada pelo governo encontrou em Clarice uma forte opositora. Para a autora, a inclusão deveria ser o pensamento de um país em construção. “Não estou de modo algum entrando em seara alheia. Esta seara é de todos nós.”

Não satisfeita em apontar que “o problema é tão grave e por vezes patético”, Clarice vai além e convoca em texto um protesto na esplanada dos ministérios. “E estou falando em nome de tantos que, simbolicamente, é como se o senhor chegasse à janela de seu gabinete de trabalho e visse embaixo uma multidão de rapazes e moças esperando seu veredicto.

Clarice Lispector sabia que o texto era um ato de resistência. E assim o era porque os mais afetados não tinham condições políticas para protestar. “E nem poderiam sair à rua para uma passeata de protesto porque sabem que a polícia poderia espancá-los”.

Caso a relação com a atualidade pareça forçosa, a frase inicial da crônica nos permite enxergar com mais clareza algumas semelhanças com o governo de Jair Bolsonaro.

“Em primeiro lugar queríamos saber se as verbas destinadas para a educação são distribuídas pelo senhor. Se não, esta carta deveria se dirigir ao Presidente da República”

Nessa passagem há dois aspectos em que a conexão é possível. A submissão do ministro da educação ao projeto do presidente da República e o corte de verbas na educação.

Ministério sem educação

O ministério da Educação faz parte do que se convencionou chamar de ala ideológica do governo. Loteado atualmente por olavistas (discípulos do escritor Olavo de Carvalho) e evangélicos, a pasta coleciona decisões unilaterais e o diálogo com as instituições de ensino é praticamente inexistente.

Ricardo Velez, o primeiro ministro nomeado por Bolsonaro, ficou pouco mais de três meses no cargo e teve que conviver com a disputa entre militares e olavistas na pasta. Velez é professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército e teve como proposta – uma das poucas – a revisão nos livros de história sobre o período da ditadura militar. Na queda de braço com os olavistas, presenciou a demissão dos nomeados para os cargos de confiança até que, enfim, chegou a sua vez.

Em seu lugar assumiu o economista Abraham Weintraub, mais sintonizado com o discurso de perseguição a pensamentos progressistas e combate ao marxismo cultural – como defendido pelo guru astrólogo Olavo de Carvalho. Weintraub desde o primeiro momento se opôs ao conhecimento científico praticado nas universidades públicas. Em abril de 2019, o ministro afirmou que cortaria verbas de três universidades por promoverem “balbúrdia”.

Posteriormente, instituiu um contingenciamento de verbas que atingiu todas as instituições federais e de bolsas para estudantes de pós-graduação em prol da austeridade fiscal. No Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) que ficou sob sua responsabilidade – alardeado como o melhor da história do país – houve problemas com o gabarito em diversas provas e na gráfica que deveria imprimir a prova. Para completar, em reunião ministerial em abril, declarou que “botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”. Em junho deste ano deixou a pasta para assumir um cargo no Banco Mundial.

O seu sucessor não chegou de fato a assumir a pasta. Carlos Alberto Decotelli renunciou ao cargo cinco dias após a nomeação, depois de fraudes no currículo acadêmico terem sido expostas.

Em julho de 2020, o quarto e atual ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, foi anunciado. Em sinal de aproximação com a bancada evangélica, Milton Ribeiro foi um nome também aprovado pelos olavistas por seu perfil conservador. Apesar de ser mais discreto que seu antecessor, o ministro também foi manchete com declarações polêmicas. Em setembro, durante entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, Ribeiro afirmou que “o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe.”

Recentemente, ele entrou em atrito com as universidades ao anunciar a volta às aulas presenciais em janeiro sem nenhum planejamento. Depois de afirmar que estava surpreso com a reação negativa de instituições acadêmicas, alterou a data para 1° de março.

Outras medidas

O descompasso com a realidade do ensino superior brasileiro não é exclusividade da pasta. O Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 enviado pelo governo federal para análise do Congresso prevê um corte de R$1,4 bilhão no orçamento de universidades e institutos federais. O montante representa 18,2% de corte nos gastos discricionários em cada setor. Os gastos discricionários são aqueles sobre os quais o governo tem certo grau de poder de decisão e maleabilidade. No geral, destinam-se a custeio, investimentos e assistência estudantil.

No caso das universidades federais, a redução significará R$ 1 bilhão, aproximadamente, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que representa 68 universidades federais. Essa é a quarta redução seguida desde a promulgação da Emenda Constitucional 95, do “teto de gastos”, aprovada em 2016 durante o governo de Michel Temer.

No Congresso Nacional, o governo tentou barrar a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Estima-se que a cada R$ 10 investidos na educação básica, R$ 6,5 sejam financiados pelo Fundeb, incentivando desde a creche até o Ensino Médio. Quando percebeu que não conseguiria impedir que o fundo fosse aprovado, empenhou-se em adiar a aplicação para 2022. Saiu derrotado, restando apenas a regulamentação que tramita na Câmara dos Deputados. Apesar do Fundeb estar relacionado à educação básica, o governo demonstrou outra vez a falta de prioridade no tópico.

Em relação ao próprio Jair Bolsonaro, destaca-se a desconsideração às listas de indicados para comandar as universidades federais. Tradicionalmente, o presidente da República apenas confirma o primeiro indicado pela lista tríplice apresentada pela instituição, que geralmente promove eleições de acordo com estatuto próprio.

Em ao menos 14 oportunidades, Bolsonaro indicou reitores e diretores de instituições federais de ensino que não encabeçavam as listas ou sequer constavam entre os indicados a partir das consultas internas. Na Universidade Federal da Paraíba, por exemplo, nomeou o candidato menos votado para a reitoria.

Uma carta atual

Em breve troca de e-mails com o professor da USP Jaime Ginzburg, que escreveu o artigo sobre Carta ao Ministro da Educação em 2007, ele destacou a potência nas palavras da autora. “Clarice Lispector se manifestou corajosamente, no espaço público, em um período de um regime autoritário, confrontando um sistema educacional excludente”, afirma.

O paralelo com o momento atual é baseado no entendimento do governo que a educação é um serviço e não um direito. Tanto para Bolsonaro quanto para os militares em 1968, o mercado e a austeridade são soberanos na promoção da educação. Os cortes orçamentários, a ideologia que combate uma suposta supremacia progressista nas universidades, a vigilância acrítica dos projetos acadêmicos, a retórica dos bons costumes são elementos de ancoragem da comparação, guardada as devidas proporções.

Para Ginzburg, “é possível estabelecer um diálogo entre a crônica e a atualidade, tendo em vista que essas situações terríveis resultam em problematizações das condições de trabalho e estudo em universidades, restringindo as possibilidades de produção de conhecimentos e de realizações de debates democráticos sobre temas que se referem, direta ou indiretamente, a conflitos sociais”.

O prejuízo que o governo imputa à educação no país não é maior pela resistência oferecida pelas forças de oposição no Congresso Nacional. Afinal, nem às ruas os estudantes podem ir com receio de contrair Covid-19. Na última frase da crônica, Clarice transforma o texto em ato.

“Que estas páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças.”

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