Universidades produziram mais de 3 mil ações de combate à Covid-19

Projeto Ciência Popular, da USP, mapeou as iniciativas de instituições de ensino no combate ao coronavírus. “História Sem Fronteiras”, da Unesp, é um exemplo de como a pesquisa científica contribui em diversas áreas do conhecimento

Imagem: Arte sobre foto NIH e 123RF/Jornal da USP

Mesmo com orçamento reduzido para pesquisa científica no Brasil, as Universidades e Institutos contribuíram com ao menos 3.075 ações para combater a pandemia de Covid-19 nos últimos 10 meses. A iniciativa de mapeamento das ações é do Projeto Ciência Popular¹, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP).

O boletim “Universidades contra Covid-19”, divulgado na segunda-feira (1), identificou ações de 265 Universidades e Institutos nas cinco regiões do país. O projeto teve início em abril de 2020 com a criação da plataforma Ciência Popular, na qual os pesquisadores podem cadastrar seus estudos e iniciativas. A publicidade e a divulgação do projeto possibilitaram a identificação de um grande número de ações, mas o volume real é ainda maior.

“Ainda, tendo em vista que nem todas ações realizadas pelo Brasil são publicizadas ou chegam até nossa equipe, não temos como objetivo esgotar a totalidade dessas ações, nem tampouco produzir indicadores estatísticos que estipulem com precisão tal produção”, informa o boletim.

Mesmo com alcance reduzido, a meta do projeto de valorizar as instituições de ensino e pesquisa no Brasil foi alcançada, podendo ainda ser ampliada no próximo relatório. Desde o primeiro boletim, em 10 de setembro, mais de mil projetos se cadastraram na plataforma.

Em um ano de pandemia em que a ciência esteve sob pressão para fornecer respostas acerca do novo coronavírus, os estudos desenvolvidos auxiliaram profissionais da saúde, comunidade escolar, cientistas, pesquisadores, poder público e sociedade civil, que foi a maior beneficiada com 1934 ações. Os profissionais de saúde, com 418 projetos identificando-os como público alvo, são o segundo na lista.

As contribuições das instituições vieram por meio de apoio e divulgação das medidas sanitárias e demais informações, produção de equipamentos, de testes para Covid-19 e de insumos, pesquisas no campo da saúde, criação de redes de solidariedade entre outras ações. A conscientização da população a partir de informações cientificamente comprovadas foi a que somou mais ações, um total de 973 projetos.

Até o momento, as Universidades Públicas Federais foram as que mais produziram estudos, com 1695 ações. As Universidades Públicas Estaduais foram responsáveis por 714 ações e os Institutos Federais produziram 422 projetos. Entre as unidades federativas, São Paulo foi o estado com o maior número de ações, 641 no total. Na sequência, Minas Gerais e Ceará constam respectivamente com 335 e 323 ações.

Fonte: Boletim Universidades Contra Covid-19/Projeto Ciência Popular

Ainda que a relevância do conhecimento científico fique em evidência com a pandemia de Covid-19, a área de pesquisa no Brasil foi alvo de sucessivos cortes no orçamento nos últimos anos. O manifesto divulgado nesta terça-feira (2) por um grupo de 11 ex-ministros da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) alerta que o Brasil caminha “a passos largos na direção do obscurantismo” e de um possível “colapso” do sistema nacional de ciência e tecnologia, que conduzirá o país a um “retrocesso sem precedentes na história das políticas nacionais”.

Entre diversos pontos, destaca-se a queda de 26% no orçamento da pasta, os recursos escassos e corte de 10% nas bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a desidratação de 66% no orçamento da Capes em cinco anos e os vetos presidenciais que mantém os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) em contingenciamento.

O boletim divulgado na segunda-feira reforçou a atuação das Universidades em um cenário com empecilhos que vão além da pandemia de Covid-19.

“Pesquisadores brasileiros seguem beirando a inviabilidade de prosseguir com suas produções diante de mais cortes e reduções de orçamento da CT&I. No entanto, os cientistas, que nos ensinaram todos os dias que sem Ciência não há futuro, estão nos dizendo ainda mais: sem investimento e coordenação responsável, não venceremos a pandemia”, afirmam os pesquisadores no documento.

A História na pandemia

Um dos projetos cadastrados na plataforma Ciência Popular é o “História Sem Fronteiras”, vinculado ao Departamento de História da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Campus de Assis. Os pesquisadores responsáveis são os professores doutores Eduardo José Afonso e Paulo Henrique Martinez, ambos com experiência na área de pesquisa em História Social.

O resumo do projeto, que está disponível no boletim, informa as principais características da ação. Focada na sociedade civil e categorizada como “orientações ou apoio ao isolamento social”, a pesquisa propõe a documentação e organização de “séries de depoimentos espontâneos sobre a experiência social, individual e coletiva” na pandemia.

Para compreender melhor o estudo, o Vermelho conversou, via e-mail, com o pesquisador Eduardo José Afonso. Na entrevista replicada a seguir, o professor explicou como a coleta de depoimentos a partir de métodos científicos pode revelar comportamentos da sociedade e auxiliar na compreensão do período pandêmico atual.

Vermelho: Dentro do recorte proposto pela pesquisa, quais conclusões gerais são possíveis a partir do material coletado?

Professor José Eduardo Afonso: Já podemos, diante do material colhido, indicar alguns dados importantes presentes nos depoimentos.

Com relação aos depoimentos de estudantes, por exemplo, é patente a dificuldade que a maioria apresenta em acompanhar – principalmente os alunos de escolas públicas – as aulas on-line. Há muita queixa da falta de preparo dos professores, que reconhecidamente, por parte dos alunos, não tem suporte das secretarias municipais e estaduais de ensino. Os próprios alunos, e são muitos, indicam que não tem acesso franco ao sistema de Wi-Fi nem dinheiro para comprar créditos de celulares para assistir as aulas. Há uma grande percepção da angustia vivida pelos jovens em decorrência da reclusão e, principalmente, fica muito clara a posição de grande crítica com relação àqueles que não respeitam a quarentena e não usam mascara em ambientes públicos.

Por parte dos pais, mesmo para aqueles que tem formação superior, há uma dificuldade imensa em dar suporte a seus filhos, vizinhos e parentes menores. Muitos não compreendem as novas normas pedagógicas o que acaba confundindo mais ainda os alunos, seus filhos, por exemplo.   Muitos depoimentos, principalmente os que recebemos recentemente, demonstram que há uma vontade grande de enviar seus filhos para a escola, mas sabem que, as escolas não apresentam condições mínimas para receber os alunos. Alguns depoentes confessam que só mandarão seus filhos após a administração de vacinas para todos.

Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas:  Tivemos problemas de encontrar mais depoentes nesta categoria, pois os mesmos, exigem o TCLE [Termo de Consentimento Livre e Esclarecido], o que nos obrigaria a apresentar nosso projeto à Comissão de Ética em Pesquisa. Ocorre que por causa da Pandemia e de problemas que a referida Comissão tem na compreensão do trabalho com a Metodologia de História Oral, não foi possível apresentar nosso projeto até hoje.  No entanto, mesmo assim tivemos depoimentos do “pessoal da Linha de Frente”, muito significativos, principalmente no início da Pandemia. Recentemente recebemos alguns depoimentos de enfermeiros e fisioterapeutas dando conta dos grandes problemas enfrentados pela segunda onda do COVID, com grandes reclamações, inclusive, de falta de interesse por parte das autoridades em dar suporte adequado ao que seja necessário, principalmente, o descaso da área Federal.

Muitos são os depoimentos que dão conta dos problemas, não apenas materiais e de estrutura, como, também, aqueles de ordem física e mental. Muitos são os que enviam seus depoimentos com franca percepção, por parte de quem os assiste, de grande cansaço e angustia e que se expressa quando relatam problemas do dia-a-dia do trabalho, na tentativa desesperada, muitas vezes, de salvar vidas.

Depoimentos gerais: Caracterizo os depoimentos recebidos de donas de casa, trabalhadores do campo e da cidade, profissionais liberais, comerciantes e cidadãos, no geral, como dentro da caracterização “Depoimentos gerais”.

Neste grupo, que é o maior, temos um universo muito variado. Existem contribuições que, nitidamente, reproduzem “verdades” como resultado dos bombardeios das “fake-news”, descaracterizando a importância dos cuidados necessários no combate aos efeitos da COVID. No geral, no entanto, os testemunhos recebidos demonstram receio e medo diante da doença, do descaso das autoridades, na angustia de terem que trabalhar e ter de enfrentar conduções lotadas e sem condições de higiene suficientes que deem segurança àqueles que precisam sair de suas casas. 

Há, igualmente, e isto se percebe com muita nitidez, uma angustia que toma conta de muitos em decorrência da questão referente ao lockdown. Depoentes dizem ter medo da falência total do comercio e da indústria, o que tiraria deles “o pão de cada dia”, se tudo fechasse as portas. Ao mesmo tempo clamam para que as condições tanto de locomoção quanto de trabalho sejam mais dignas, e que respeitem a vida humana.

Percebe-se, no decorrer deste ano que muitas pessoas não aguentam mais as notícias de mortes e de contaminados. Estes, principalmente, são aqueles que respeitaram a quarentena e que, por força mesma deste mecanismo estão em casa mantendo-se diante da TV, por exemplo.

Há casos tristes, como o da semana passada. Nossa aluna do segundo ano, funcionária da casa de Custódia de Assis, e que deu seu depoimento no início de março do ano passado cometeu suicídio. Não se sabe a razão desse ato, mesmo porque ela não deixou nada escrito e seu depoimento não denota nada nesse sentido. Contribuiu com sua percepção, naquele momento, das dificuldades de tratar com menores e adolescentes, por exemplo, que não compreendiam o porquê da reclusão.

Prof. José Eduardo Afonso | Foto: Tiago Gonçalves

O senhor citou em entrevista ao Jornal Nosso Campus (JNC/Unesp) que “A História é um farol a nos guiar, mas, parece que para a maioria esta luz é imperceptível.” Como o estudo pode contribuir para uma sociedade mais consciente?

Pois bem, importante destacar, principalmente, nos dias nefastos que estamos vivendo a importância da Educação e do Estudo. Como estes elementos primordiais devem ser as principais armas na luta contra o negacionismo, o revisionismo histórico, contra a escuridão perpetrada pela negação, por exemplo de intelectuais importantes como Paulo Freire e Anísio Teixeira.  Vivemos, desde a ascensão desse modelo neo-fascista no Brasil, sendo bombardeados. Cientistas, professores, intelectuais, artistas e um cem número de grupos organizados tem, todos os dias suas ações destruídas por estes tais “robôs” que negam a importância do estudo e do conhecimento. Veja, não é à toa que desde o golpe que depôs a presidenta Dilma, os principais “sacos de pancada” são as Universidades, principalmente as públicas e gratuitas, e dentro deste Universo a escolha, a dedo, das Faculdades de Filosofia Ciências e Letras cujo conteúdo Humanista, que leva ao desenvolvimento de senso crítico e instrumentaliza o estudante a adquirir ferramentas para a luta contra tudo que nega a construção de uma sociedade melhor mais justa.  Esta sanha destrutiva das Universidades Públicas nega e rouba da sociedade brasileira a possibilidade de alcançar a liberdade. Digo liberdade porque o conhecimento leva o indivíduo a buscar a liberdade. Encontrar-se como sujeito transformador e agente da construção de um país que respeita as diferenças e que combate todo tipo de preconceito seja ele qual for.

No caso especifico da História, já que somos historiadores, defendamos o estudo do passado, pois ele nos leva e perceber como tantos fatos já vistos e estudados podem ser repetidos. Diante desta percepção de que a história vista pode ser repetida, estaremos alicerçados e conscientes da necessidade da luta contra essa repetição. É o estudo e a consciência do passado, do presente e das perspectivas do futuro que nos impulsiona rumo a uma luta para que não mais deixemos repetir nem a farsa nem a tragédia.

Inicialmente, a pesquisa estipulava 400 depoimentos de pessoas ligadas à educação, saúde, cultura e voluntários. As expectativas foram alcançadas?

Continuamos a perseguir nossa meta original, ou seja, obtermos 400 depoimentos. Estamos alcançando, agora, depois de um ano 200 depoimentos e com a segunda onda nos nossos calcanhares reforçamos o convite a pessoas interessadas em dar seus depoimentos. Nesta que chamamos de primeira etapa, ou seja, os primeiros 200, já podemos examinar, com mais calma tudo que conquistamos, dentro de nossa proposta de pesquisa. 

O principal desafio da pesquisa, eu diria, “principais” são alguns problemas que enfrentamos. Primeiro: há uma resistência grande da maioria de nos enviar semanalmente depoimentos;

Segundo: há depoentes que tem muita vergonha de gravar em frente a uma câmera seus depoimentos

Terceiro:  Muitas pessoas com as quais falamos, desdenham da importância da pesquisa e da doença, mesmo quando apresentamos nossas contra-argumentações.

Quarto: a Pesquisa não conta com bolsa nem com alunos da graduação que nos auxiliem a transcrever os depoimentos. Todos estão arquivados em HD.

Após um ano de pandemia, o Brasil vive a pior crise no sistema de saúde. Qual relação entre pandemia e desinformação pode ser tratada a partir dos depoimentos coletados?

Esta é uma ótima pergunta.  Os depoimentos, como já descrevi, apresentam, na maioria, grande preocupação com relação ao que estamos vivendo hoje. É quase unanime a defesa da ideia de que, vivemos no Brasil, a construção do caos. A população brasileira, alimentada diariamente pelas redes sociais, encontra-se atordoada e, em alguns depoimentos é clara a noção de que este mecanismo fundado no negacionismo, no desrespeito pela ciência, no bombardeio das fake-news, leva muitos indivíduos a perder a noção, inclusive, do tempo em que estamos vivendo. Alguns depoimentos nos permitem perceber que esse jogo diário que fabrica constantemente o caos é proposital e faz parte do “projeto neo-liberal” para evitar a consciência da real situação em que se vive. Nada é claro e não há crença num futuro próximo melhor.

Isto tudo leva uma grande parcela da sociedade brasileira, termo constantemente repetido pelos depoentes, ao desencanto e à depressão.  Tanto é assim, que, como pontuei, tivemos um caso de suicídio entre os depoentes.

Como pesquisador, qual a leitura o senhor faz do momento atual da educação e pesquisa no Brasil?

Vivo este momento com muito pesar. O Brasil, sabemos, conseguiu, sempre com dificuldade alcançar patamares de excelência nas ciências, na Tecnologia e Inovação. E os alcançou. Tanto é assim que muitos pesquisadores são “roubados” pelos países que respeitam esses elementos importantes e primordiais. Infelizmente, a cada dia que passa, a reboque dos interesses mesquinhos dessa elite que tem o controle do país, vemos todo esforço de grandes cientistas e pesquisadores, respeitados no mundo todos pelas melhores Universidades do mundo, jogados na lata do lixo.  Qualquer país sério que se presta, aplica recursos no desenvolvimento de Pesquisas rumo à independência socioeconômica, para dizer o mínimo. No Brasil, parece que esta independência não importa. Esta elite vive, como Portugal no período Colonial Brasileiro, acreditando que se “acha-se dinheiro aos pontapés”. Assim a coroa portuguesa referia-se à produção aurífera no Brasil de então – ouro de aluvião -, acreditando que o ouro nunca acabaria e que, portanto, poderiam comprar, sempre o que quisessem, sem ter que investir em nada. Destacamos, aqui, que o trabalho escravo dava alicerce a esta crença também.  Esta constatação do descaso dos “donos do Poder” entristece sobremaneira todos aqueles que acreditam nos ideais iluministas e se dedicam à ciência e ao conhecimento. A máxima iluminista pregava que Todo o Homem nasce com direitos naturais. Direito à propriedade, a liberdade e à vida. Só o uso da razão e o esforço conjunto de construção de uma sociedade melhor é que impulsiona aqueles que creem na importância do conhecimento, da pesquisa e do papel libertador da ciência. Propomos, então, o predomínio de Eros, que é o princípio da vida – na defesa desses ideais descritos – e da democracia, contra o Tanatos (morte) que é o domínio do autoritarismo.


Nota

[1] Iniciativa de estudantes e professores associados ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas “José Renato de Campos Araújo” (OIPP) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP), além do Colaboratório de Desenvolvimento e Participação (Co:Lab) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). O projeto é coordenado por Ergon Cugler de Moraes Silva e Pamela Quevedo Joia Duarte da Costa e desenvolvido junto aos pesquisadores Guilherme Silva Lamana Camargo, Letícia Figueiredo Collado e Yasmin de Sousa Pinheiro; com orientação do professor José Carlos Vaz e da professora Gisele da Silva Craveiro.

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