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Heranças ancestrais Afro-brasileiras

“Cultura preta como instrumento na luta antirracista”

Samba Rural Paulista foto: IHGG Campinas

A contribuição negro africana para a formação das dezenas de manifestações culturais existentes no Brasil tem um significado estrutural, histórico e simbólico fundamental para compreendermos a formação social e econômica do nosso país.

O processo diaspórico que extraiu milhares de africanos de seus países sobretudo de Angola, Congo e mais tarde Nigéria, foi vital para o surgimento das referências culturais nos países a qual esse efetivo foi levado.

Seja na América do Norte, na América central ou na América do Sul, a contribuição negro africana emoldurou as principais referências culturais em todos esses territórios seja com o jazz, com a rumba, com a salsa, com o samba e tantas outras manifestações que concentram o que há de mais rico e representativo da cultura negra na diáspora africana.

Pensar nessa valiosa contribuição e potencializar as ações ligadas a algumas das principais manifestações culturais existentes no Brasil é vital para que possamos compreender de forma prática a importância de preservarmos as heranças culturais criadas pelos nossos ancestrais da diáspora africana. A luta contra o racismo foi um dos fatores que levou à criação desses aquilombamentos culturais. Este artigo não pretende ser um senso da cultura negra no Brasil, mas sim trazer alguns dos principais aspectos da nossa cultura estruturada com as digitais negras que foram primordiais para possibilitar a diversidade cultural existente no nosso país.

Quando buscamos conhecer as principais referências culturais afro-brasileiras, nos deparamos com uma gama significativa de tambores, laços de fita, muita dança, canto e fé que fazem com que essas manifestações culturais se perpetuem no âmbito das comunidades remanescentes de quilombos rurais e urbanos.

Tadeu Kaçula

Em São Paulo a cultura afro-paulista foi uma das principais linhas de investigação antropológica realizada por Mário de Andrade no ano de 1937 e resultou no livro Aspectos da Música Brasileira onde Andrade registra os batuques do interior paulista como Samba de Bumbo, Batuque de Umbigada, Jongo, Cateretê, Cururu, entre outros e cria o marco conceitual que os definem como samba rural paulista. Entre as cidades que preservavam a cultura afro-paulista estava a cidade de Pirapora do Bom Jesus que, ainda hoje, mantém polos de preservação da memória e da história da cultura afro-brasileira.

Compreender de que forma o racismo e o preconceito impactaram na formação do samba rural paulista é fundamental para que possamos, a partir dessa compreensão, repensar a sua estrutura social. Quando revisitamos o processo de organização da sociedade brasileira na perspectiva da pós-abolição, encontramos fortes traços de apagamento e exclusão das contribuições culturais, sociais e econômicas da população negra. O racismo estrutural impactou sistemicamente nas vidas de centenas de milhares de famílias negras em todo o Brasil.

Para falar sobre o racismo e suas consequências para a edificação da estrutura social brasileira, é essencialmente necessário compreendermos as suas dimensões.

O racismo é um dos principais problemas sociais enfrentados pela população negra a partir do século XX e afeta diretamente no processo de exclusão nas políticas públicas, desigualdade social e violência física e psicológica na medida em que essa população toma pra si a consciência do lugar a qual foi relegada.

Quando buscamos o sentido epistemológico do que significa o termo “Racismo”, é correto afirmar que o racismo é a denominação da discriminação e do preconceito (direta ou indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa de sua etnia ou cor. É uma forma de estrutura de poder e de dominação onde a construção de práticas e narrativas discriminatórias garante a manutenção do poder de uma determinada etnia (branca) sobre as outras (indígenas, pretos, etc.).

Ao longo dos anos que sucederam a pós-abolição uma série de práticas ligadas à negação da escravidão como uma tentativa de negar as reparações, bem como a inclusão dessa população na estrutura social brasileira foram realizadas. Os principais escravistas do país se organizaram para recusar a incorporação dos ex-escravizados na produção do trabalho e importaram a mão-de-obra europeia dando início a uma tragédia social que impacta na formação social do Brasil até os dias de hoje.   

Ao longo de mais de dez décadas o racismo foi passando por processos de tipificação, pois as mudanças sociais foram ressignificadas e a estrutura racista não deixou de acompanhar essas mudanças.

Um dos importantes nomes da intelectualidade orgânica da negritude paulista responsável pela reorganização do samba urbano na cidade de São Paulo foi o sambista e compositor Geraldo Filme. O sambista foi um combatente incansável na luta contra o racismo e todas as formas de preconceito. Geraldo Filme realizou um importante processo de criação musical que transitou entre o samba rural e o samba urbano. Um dos clássicos criados por Geraldo é o samba Vai Cuidar de Sua Vida onde narra o processo de apagamento do negro dos espaços de sociabilidade criados justamente para que a população negra pusesse preservar as suas heranças culturais as quais podemos definir como “As três rodas sagradas do universo negro brasileiro”. Na obra, Geraldo problematiza essa expropriação dizendo:

Vá cuidar da sua vida

Diz o dito popular

Quem cuida da vida alheia

Da sua não pode cuidar

Crioulo cantando samba

Era coisa feia

Esse é negro é vagabundo

Joga ele na cadeia

Hoje o branco tá no samba

Quero ver como é que fica

Todo mundo bate palma

Quando ele toca cuíca

Vá cuidar da sua vida

Diz o dito popular

Quem cuida da vida alheia

Da sua não pode cuidar

Negro jogando pernada

Negro jogando rasteira

Todo mundo condenava

Uma simples brincadeira

E o negro deixou de tudo

Acreditou na besteira

Hoje só tem gente branca

Na escola de capoeira

Vá cuidar da sua vida

Diz o dito popular

Quem cuida da vida alheia

Da sua não pode cuidar

Negro falava de umbanda

Branco ficava cabreiro

Fica longe desse negro

Esse negro é feiticeiro

Hoje o preto vai à missa

E chega sempre primeiro

O branco vai pra macumba

Já é Babá de terreiro

Vá cuidar da sua vida

Diz o dito popular

Quem cuida da vida alheia

Da sua não pode cuidar

Geraldo Filme

De geração para geração, uma das principais receitas para a preservação dessas culturas é a oralidade que, através dos cantos, contos, histórias e ladainhas, cumpre um papel vital para assegurar a preservação da memória afetiva daqueles e daquelas que deram início a tudo o que compreendemos como cultura popular brasileira. Na medida em que essa transmissão ocorre, as novas gerações conseguem manter essas tradições e, ao mesmo tempo, utiliza-se se sua linguagem contemporânea para ressignificar a sua africanidade. Vemos isso com muita nitidez ao ouvirmos o som do Rap como instrumento de reivindicações, vemos no Funk como um elemento de sociabilidade das juventudes periféricas, vemos no som envolvente do samba-rock onde os corpos se permitem nas trocas de toques e afetos, nas danças de passinhos onde a diversidade nos ensina que o afeto é revolucionário e na capoeira que faz parte das três rodas sagradas do universo negro brasileiro ao lado do candomblé e do samba.

De norte a sul do nosso país, através dos tempos, a cultura negra se mantém firme e a cada geração se fortalece ressignificada subvertendo olhares opostos e fazendo com que corpo e corporalidade negra seja o centro detentor desses saberes e fazeres educando as futuras gerações de sambadores, brincantes, batuqueiros, rezadeiras, dançantes e todas as linguagens culturais estruturada pela contribuição NEGRO-AFRICANA  em todo o país.

Tadeu Augusto Matheus (Tadeu Kaçula); Sociólogo formado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP), membro do grupo de Estudos Latino Americano sobre Cultura e Comunicação (CELACC-USP), coordenador nacional da Nova Frente Negra Brasileira (NFNB), fundador do Instituto Cultural Samba Autêntico e autor do livro Casa Verde, uma pequena África Paulistana.