Autoritarismo, uma doença acomete o Estado e a sociedade

Novo modelo de autoritarismo tem sido cada vez mais acompanhado por um movimento social de extrema-direita

Quando a gente diz que o autoritarismo está por toda parte, infelizmente não é apenas “uma forma de dizer”. Ele está mesmo. Liquefeito, diferentemente de como se concretizava no século passado, hoje ele opera e convive com os regimes democráticos, entranhando-se de maneira bem mais sutil, porém sentido de maneira tão ou mais agressiva e nociva por quem dele é vítima.

Recentemente, tivemos um episódio lamentável, pouco divulgado pela mídia, mas de muita relevância para demonstrar as características desse autoritarismo líquido. O professor Alvaro de Azevedo Gonzaga, doutor e livre-docente em Direito pela PUC de São Paulo, apresentava o resultado de sua pesquisa de pós-doutorado sobre a história indígena e os mecanismos atuais de opressão aos povos indígenas, feito no âmbito do Departamento de História da Universidade Federal da Grande Dourados, quando um grupo de extrema-direita invadiu a sala virtual na qual o evento acontecia e interrompeu o debate, constrangendo os participantes com gritos, ofensas, ameaças e xingamentos.

Como tenho demonstrado em meus estudos, no Brasil, essa nova forma de autoritarismo líquido de que falo começou a se desenhar a partir da década de 1990 com a política de guerra às drogas. Depois migrou para a política, com as investigações e julgamentos do caso do Mensalão, realizou uma medida de exceção de enorme impacto, que foi o impeachment inconstitucional da presidenta Dilma Rousseff e, sob a égide da Operação Lava Jato, assumiu funções de persecução política, engendrando processos penais de exceção contra lideranças políticas.

Agora, o que se observa no pós-Lava Jato é uma liquefação cada vez maior dessa modalidade de autoritarismo. Não há uma concentração ou um adensamento na figura autoritária do chefe do Executivo. A figura do soberano que impõe as medidas de exceção sofreu diluição e pode, hoje, ser exercida pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo próprio sistema de Justiça.

Também a figura do inimigo, que justifica a adoção das medidas de exceção, se liquefez no sistema, deixando de obedecer a uma escolha mais rígida – o terrorista, o estrangeiro, o comunista etc. – para atender a critérios cada vez mais seletivos. Do jovem negro da periferia, passando por líderes políticos ou de movimentos sociais, chegando a jornalistas e advogados, o inimigo da vez pode ser qualquer um.

De forma não idêntica, mas análoga àquela que ocorria no nazismo e no fascismo, esse novo modelo de autoritarismo tem sido cada vez mais acompanhado por um movimento social de extrema-direita, ou seja, por uma parcela da sociedade que se comporta de forma primitiva no plano da sociabilidade, de maneira autoritária na visão política e de forma desumana e bárbara no campo dos direitos e das relações interpessoais.

Esse populismo autoritário não se limita a ações estatais, reproduzindo-se na conduta de parte da cidadania e da sociedade, dos ditos cidadãos de bem, que agem de forma violenta no seu cotidiano e nas suas ações políticas, como ocorreu no evento acadêmico protagonizado pelo professor Alvaro Gonzaga.

O autoritarismo é uma doença que não acomete apenas o Estado, mas também a uma parcela significativa da sociedade. Aliás, não existe Estado autoritário sem povo autoritário, como não é possível atingir um patamar civilizatório importante sem que os valores do humanismo e da democracia sejam compartilhados por grande parte da população.

Como disse o professor Alvaro Gonzaga, “não se pode ser tolerante com o intolerante”. E é por isso que, da mesma forma que repudiamos governos autoritários, temos também de repudiar intensamente e lutar contra essas manifestações primitivas, racistas e intransigentes de cidadãos de extrema-direita, que não têm apreço pela democracia nem pelos direitos.

Publicado originalmente na CartaCapital

Autor