Bolsonaro está na “contramão do mundo” na vacinação, aponta estudo

A urgência nas negociações para garantir vacinação de toda a população brasileira, em um contexto de escassez global, é destaque da nota técnica 30, elaborada pela Rede de Pesquisa Solidária da USP

Fotomontagem sobre imagem do Governo de São Paulo

O Brasil, até o momento, vacinou cerca de 14% de sua população, apenas 7%, com as duas doses necessárias, e a produção brasileira, concentrada na Fiocruz e no Instituto Butantan, “provavelmente não dará conta da necessidade de vacinar sequer com a primeira dose o conjunto da população”. Esses dados ganham destaque na mais recente nota técnica elaborada pela Rede de Pesquisa Solidária, que busca responder à pergunta: “Por que o governo federal está na contramão do mundo” na vacinação contra a covid-19?

No mundo, até o mês de abril, 82% do total de doses foram aplicadas nos países de renda alta e média alta. Somente 0,2% das doses foi direcionado para os países de renda baixa. Segundo os pesquisadores responsáveis pelo documento, o principal gargalo da vacinação brasileira não está na capacidade do sistema de saúde em aplicar as doses de forma rápida, nem na falta de recursos, mas na disponibilidade de vacinas em quantidade suficiente para atender à população. “Governos de diferentes matizes ideológicas compreenderam que não haveria produção suficiente de doses e apostaram em várias vacinas simultaneamente”, mas o Brasil teria seguido o caminho contrário, como registram.

Gráfico 1 – Porcentual de pessoas totalmente vacinadas por continente

Apesar do aumento na cobertura vacinal, há desigualdade de acesso aos imunizantes entre continentes e países (alguns sem registro de acessos a uma única dose ou poucas remessas) como Camarões, Chade, Mauritânia, Papua-Nova Guiné, Kirguistão, Níger, Líbia, Namíbia – Fonte: Our World Data <https://ourworldindata.org/

“Na contramão do mundo”

“O governo brasileiro escolheu um caminho diferente: assinou o primeiro contrato apenas em setembro de 2020 e com apenas um fabricante”, em referência ao contrato de transferência de tecnologia entre a Fiocruz e a AstraZeneca, para produção de 200 milhões de doses em território brasileiro. Os EUA, por exemplo, fecharam um acordo de mais de US$ 400 milhões com esta mesma fabricante, mas em maio de 2020. 

O acordo com o Instituto Butantan, outro principal produtor, foi firmado em janeiro de 2021, após pressões do governo do Estado de São Paulo e da sociedade. “Essa é a principal evidência da falta de estratégia para enfrentar a pandemia”, aponta a nota.

“O Brasil, equivocadamente, recusou-se a apoiar a proposta de suspensão temporária das patentes proposta pela Índia e África do Sul.” Além disso, são ressaltadas a baixa capacidade produtiva brasileira e a falta de investimentos: “Novos fabricantes precisam entrar em cena, em especial nos países emergentes”.

Os pesquisadores ressaltam ainda que o Brasil tem condições financeiras para comprar as doses necessárias para a imunização da população. “[O preço pago pela vacina] não é pouco, certamente, mas é muito menos do que os custos sociais e econômicos da pandemia.” Em 2020, o PIB brasileiro caiu 4,1%, o que representa aproximadamente R$ 300 bilhões a menos de renda gerada no País. Segundo a nota, o custo da vacinação representaria menos de 20% da arrecadação perdida em 2020 em virtude da pandemia. 

Eles relembram também a recém-adotada estratégia de permitir que o setor privado compre e distribua vacinas à população. “É equivocada e ineficaz, porque os grandes fabricantes estão comprometidos com vendas para governos e não negociam com o setor privado”, reforçando que a imunização é uma questão de saúde coletiva e não individual.

Escassez de vacinas

Em 2019, o mundo aplicou cerca de 5,5 bilhões de doses de vacinas e, atualmente, as estimativas apontam para uma demanda mundial de mais de dez bilhões de doses até o final de 2022 para conter a pandemia. Até meados de abril deste ano, cerca de 1 bilhão de doses haviam sido aplicadas no mundo todo, cerca de 13 doses para cada 100 pessoas.

Isso em um cenário de escassez mundial de vacinas, agravado por um alerta presente na nota: a disseminação descontrolada e rápida do sars-cov-2 nos países em desenvolvimento aumenta as chances de surgimento de novas variantes do vírus, o que pode reduzir a eficácia das vacinas já desenvolvidas.

“O alto volume de capital e de tecnologia necessário para seu desenvolvimento e produção, associado ao risco e à incerteza que caracterizam o setor, ajuda a explicar a existência de um número reduzido de grandes fabricantes de vacinas”, registram.

Gráfico 2 – Número de vacinas em testes clínicos no mundo (5/5/2021)

Ainda que haja um número reduzido de fabricantes, o investimento de alguns países permitiu a criação simultânea de várias vacinas em tempo recorde. Em abril deste ano foram identificadas 96 novas vacinas em testes clínicos em humanos, a maior parte (32) ainda na primeira fase – Fonte: OMS/Reprodução Rede de Pesquisa Solidária

Um levantamento dos investimentos em pesquisa e inovação realizado por vários governos para enfrentar a pandemia, presente na nota, indica que bilhões de dólares haviam sido alocados na criação de novas vacinas. No caso do Brasil, o estudo constata a “necessidade de preparar estratégias para produzi-las ou para adquiri-las”. “Caso contrário, o Brasil estará condenado ao final da fila da imunização, o que agravará as consequências econômicas e sociais da crise no País”, apontam as autoras da pesquisa.

O mercado brasileiro de vacinas

“O Brasil não pode prescindir de uma estratégia complementar de compra de outras vacinas no mercado internacional, fato que o Ministério da Saúde parece ter percebido apenas muito recentemente (e tardiamente), com a contratação de vacinas da Pfizer e da Janssen”, ressalta o documento em relação às dificuldades da produção doméstica de vacinas.

A imunização da população no Brasil é responsabilidade do setor público, por meio do SUS e do Programa Nacional de Imunizações (PNI). E dois elementos caracterizam o mercado fornecedor de vacinas no Brasil: ele é concentrado em poucas instituições (como a Fiocruz e Butantan), que são laboratórios públicos (a participação do mercado privado representa cerca de 10% das vacinas aplicadas, segundo a Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas).

“Essa escolha [de laboratórios públicos] foi bem-sucedida”, segundo os organizadores do boletim, justificando que, diferentemente de outros países, no Brasil não existem episódios de escassez de vacinas documentados. “Por outro lado, essa estratégia gerou e consolidou um mercado produtor de vacinas essencialmente público.”

Nos últimos 20 anos, o PNI tem sido o responsável pela aplicação de mais de 130 milhões de doses de vacinas ao ano, em média. Essa oferta de vacinas, em meio à pandemia, teria que ter um incremento de mais de 300 milhões de doses em 2021 para imunizar 70% da população — o que seria quase o triplo da capacidade atual de vacinação do PNI. A Fiocruz e Butantan, juntos, entregaram ao Ministério da Saúde aproximadamente 200 milhões de doses ao ano nos últimos seis anos. 

Eles defendem a necessidade de uma resposta precisa, por parte da Fiocruz e do Butantan, sobre a possibilidade de aumentar a produção a partir das linhas já existentes e se esse aproveitamento impactaria a produção de outras vacinas para doenças além da covid-19, necessárias à população.

Tabela 4 – Número de doses de vacinas contratadas pelo governo federal entre 2015 e 2020, segundo principais fabricantes e tipos de vacinas

Relação de vacinas produzidas no Brasil para outras doenças e seus principais produtores. Fiocruz e Butantan são os principais fornecedores – Fonte: Banco de Preços em Saúde / Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG)

Como ampliar as ofertas de vacina

Os pesquisadores recomendam, como primeiro passo, considerar as vacinas como bens públicos globais, com acesso irrestrito por toda população mundial. Para beneficiar o conjunto da economia global, incluindo países menos desenvolvidos e salvando milhões de vidas, eles apostam em investimentos robustos para ampliar a capacidade instalada de produção — tanto na contribuição de países que sabem produzir vacinas e têm estrutura adequada (como Canadá, Índia, Itália, França) quanto no estímulo à participação de grandes fabricantes que não têm vacinas, ou na construção de novas unidades, em especial em países emergentes. 

A liberação ou licenciamento da propriedade intelectual, enquanto durar a pandemia, também é recomendada. “É o primeiro passo para que a produção de doses seja suficiente para atingir a imunidade coletiva no planeta. Porém, a quebra das patentes ou o seu licenciamento não são suficientes”, registrou a Rede.

Quanto ao Brasil, a ação apontada como mais urgente é a negociação e garantia de vacina para toda a população, não apenas em 2021. “Novas rodadas anuais de imunização serão necessárias e, para isso, 400 milhões de doses não serão suficientes para imunizar a população brasileira nos próximos anos.”

A pesquisadora Fernanda De Negri (doutora em Economia pela Unicamp e pós-doutora pelo MIT), que integra o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-Ipea e participa da Rede de Pesquisa Solidária, é uma das coordenadoras dessa nota técnica. Segundo ela, o objetivo do documento é debater, à luz de dados e informações sobre o mercado e a produção de vacinas, quais fatores contribuíram para sua escassez no País, além de apresentar alternativas para a ampliação da oferta de novas doses.

Você pode conferir a íntegra da 30ª nota técnica da rede neste link. As notas anteriores também podem ser acessadas aqui

Do Jornal da USP

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