13 de Maio não foi “presente dos brancos”, diz Wlamyra Albuquerque

Para historiadora, negros tinham consciência de que o fim da escravidão foi conquistado por mãos pretas

Fazia quase um ano que a escravidão tinha acabado oficialmente, quando sete homens negros enviaram uma carta ao político Ruy Barbosa, em abril de 1889. Deles, pouco se sabe além dos nomes – e que, juntos, faziam parte da Comissão de Libertos de Paty de Alferes, de Vassouras (RJ). Já o que escreveram dá grandes pistas da situação em que a população negra vivia no pós-abolição.

“São pessoas que foram escravizadas em uma das regiões mais ricas e onde a escravidão se fazia mais dura que eram as plantações de café em Vassouras. Mesmo assim, na carta, eles aparecem se posicionando, dizendo e aconselhando outros negros a não lutarem pela monarquia, já que esse regime inteiro foi sustentado pela escravidão, falam em apoio à República e cobram principalmente a instrução, a educação para os seus filhos”, conta Wlamyra Albuquerque, autora do livro Jogo da Dissimulação – Abolição e Cidadania Negra no Brasil, historiadora e professora pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

Os homens ainda faziam uma proposta: os 5% cobrados como impostos para o Fundo de Emancipação dos escravos, criado com a Lei do Ventre Livre, em 1871, deveriam ser destinados a pagar a educação de negros e negras antes escravizados. Como não seria mais preciso comprar a liberdade, motivo pelo qual o fundo existia, para aqueles homens, o mais justo seria reverter o dinheiro que ainda era cobrado para ajudar a construir condições melhores para ex-escravizados e seus descendentes.

Para a professora Wlamyra, esse documento – considerado por ela um dos mais importantes já encontrados em sua pesquisa – mostra principalmente a consciência que os negros tinham de que o fim da escravidão não foi um presente dado pelas mãos brancas da Princesa Isabel, mas conquistado por mãos pretas. “Compreendemos perfeitamente que a liberdade partiu do povo que forçou a Coroa e o Parlamento a decretá-la”, escrevem, mostrando uma nova versão da história que apresenta negros e negras como pessoas que tinham, de fato, planos para o futuro deles e do país no pós-abolição.

Hoje (13/5), quando se completam 133 anos da abolição da escravidão oficial no Brasil, Ecoa conversa com Wlamyra Albuquerque sobre o papel da população negra naquele momento histórico. “Sempre foi a população que organizou e deu sentidos à vida nas cidades brasileiras. Não tem como pensar abolição sem pensar na contribuição do povo”, afirma a historiadora.

Ecoa: Por que hoje, 133 anos após o fim oficial da escravidão, ainda é importante falar sobre aquele momento?
Wlamyra Albuquerque: Porque ainda temos certo esquecimento ou criação de histórias muitas vezes fantasiosas sobre a escravidão, como a ideia de ter sido um “mal necessário”. No Brasil, ainda existe um trauma coletivo que toda sociedade escravista tem. O País nunca parou para discutir seriamente esse passado – tentam deixar para trás e esquecer a escravidão, quando, na verdade, precisamos é revisitar e rediscutir essa história. Então, existe a importância de a gente voltar para o passado para entender como esse país se estruturou, o que tem lá embaixo na raiz dele. A escravidão e o fim dela são partes muito importantes para entender essa nossa estrutura social aqui de hoje – e para conseguir caminhar para outros caminhos no futuro.

Ecoa: Mas do que a nossa abolição foi feita? O que causou o fim da escravidão?
WA: Foram muitos fatores, mas a abolição foi feita principalmente pela insubordinação negra. Toda a movimentação da população escravizada desde a chegada dos primeiros navios negreiros, depois todas as estratégias para conseguir comprar cartas de alforria, a rebeldia de quem criou quilombos, de quem protagonizou rebeliões pela liberdade, a rebeldia de quem soube negociar com seus senhores… Mas o empenho que houve na construção de uma memória nacional que lesse abolição como resultado da ação de alguns jovens homens brancos acadêmicos pesa muito sobre a sociedade brasileira e justifica muito do racismo que existe hoje. A ideia de que uma população negra é incapaz de decidir por si mesma, que ela precisa estar sempre sendo tutelada pela escola, pela polícia ou pelo Estado, a ideia de que essa população seria naturalmente dada ao fracasso se não houver algum tipo de controle sobre ela, todas essas ideias não vêm de um governo ou momento específico – elas foram construídas e mantidas ao longo dos séculos. Então, existe essa ideia de que a liberdade negra não foi conquistada, mas dada por brancos. Por isso, até hoje somos uma sociedade que carrega essa ideia de que o negro parece estar sempre devendo alguma coisa, que o negro precisa sempre ter uma reação de gratidão. Abolição não foi um presente dado por brancos. Ela foi conquistada.

Ecoa: E mesmo dentro do movimento abolicionista, as pessoas negras desempenharam um papel fundamental, correto?
WA: Sim! Mas são pessoas que pouco foram lembradas no decorrer dos anos. Quando aparecem, a sensação é de que são casos excepcionais, como se só os gênios como Luiz Gama ou José do Patrocínio tivessem se envolvido na luta pela abolição – o que não é verdade! Quando a gente vai pesquisando, a gente encontra notícias de diversos negros e negras até hoje desconhecidos pelo grande público. Você encontra um homem que tinha uma tenda de sapateiro, que aprendeu a ler e escrever sozinho e que se arriscava para fazer campanha pelo fim da abolição com todo mundo que passava por ele ali. A gente tem várias notícias hoje de mulheres que se engajaram na luta abolicionista, como Maria Firmina. Quando a gente vai para a documentação judicial, elas estão lá sempre acusadas de esconder escravizados que fugiam e de proteger pessoas que eram sujeitos de cativeiro.

Ecoa: A senhora tem falado aqui de algumas táticas que pessoas negras usaram para lutar contra a escravidão. Pode citar mais algumas?
WA: Existem várias! Tem o clássico de juntar dinheiro para comprar as próprias alforrias ou a de familiares. Elas formavam irmandades religiosas. No Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, há muitos registros dessas associações de pessoas negras, em que se criava uma espécie de fundo para poder socorrer principalmente as viúvas e os filhos de escravizados, para ajudar nos tratamentos de pessoas que sofrem algum acidente de trabalho. Você vê que há uma inteligência coletiva. Há uma forma de se organizar coletivamente, que vai ser passado de geração a geração. São formas encontradas para sobreviver e atravessar a escravidão até construir uma sociedade de liberdade.

Ecoa: O Estado brasileiro não deu nenhum apoio à população negra no pós-abolição, mas existiram algumas ideias da população sobre o que deveria acontecer depois do dia 13 de maio?
WA: O Estado, de fato, não deu nenhum apoio, digamos assim. Entre a população, cada um tinha uma visão do rumo que o País precisava tomar no pós-abolição. Os negros não só ajudaram a abolir a escravidão, como tinham planos de futuro para eles e para o País. Infelizmente, criou-se na memória nacional a ideia de que os africanos chegavam aqui despreparados, analfabetos, sem educação ou escolaridade – o que não é verdade. A história do negro não começa na escravidão. Existe um passado. Só que o Estado, em vez de criar situações favoráveis, só sofisticou as formas de exclusão, especialmente reestruturando todo aparato policial para promover cada vez mais perseguições a toda forma de atividade relacionada à comunidade negra no Brasil.

Ecoa: Quais os planos da população que não foram abraçados no pós-abolição, mas que ainda são importantes para o futuro do país?
WA: É a questão da educação, da saúde, moradia e emprego. O abolicionista negro André Rebouças defendia que o fim da escravidão deveria vir com a repartição das terras públicas do Estado. Ele acreditava que o processo de abolição não poderia acontecer sem qualquer tipo de garantia para que essas pessoas pudessem se construir de modo autônomo, sem depender da tutela, da proteção desses ex-senhores. É óbvio que o projeto não foi adiante, né? O que aconteceu foi uma dúzia de projetos pedindo indenização aos ex-senhores e a criação de mecanismos legais para que a população tivesse mais dificuldade em poder acessar, por exemplo, as escolas. A pobreza em que a maioria da população negra vive no Brasil, ela se dá ao sucesso do Estado em aprofundar desigualdades. Foi o Estado brasileiro quem criou essa situação, e é o Estado brasileiro a quem cabe resolver essa situação. O mais importante disso tudo é que a gente está, ano depois de ano, empenhada em colaborar com o fim do racismo, e tomara que um dia o que aqueles libertos de Vassouras escreveram em 1889 se torne verdade. Tomara que a gente consiga construir um país em que liberdade, igualdade e fraternidade sejam para todos nós.

Publicado originalmente no Ecoa