Pandemia: casos de Covid-19 avançam em redutos bolsonaristas

Nos 215 municípios em que Bolsonaro teve mais de 80% dos votos válidos em 2018, a taxa de contaminação supera 10.400 casos por 100 mil habitantes. Já nos 108 municípios em que o presidente teve menos de 10% dos votos válidos, a taxa é de 3.781 casos por 100 mil habitantes.

Os redutos eleitorais bolsonaristas concentram uma incidência maior de novos casos de Covid-19 no Brasil, aponta um levantamento divulgado nesta segunda-feira (24) pelo jornal Valor Econômico. Os dados sugerem que o discurso negacionista do presidente Jair Bolsonaro influencia mais intensamente seus eleitores e amplia os danos.

Para confirmar essa correlação, o Valor cruzou os totais acumulados de casos em cada município do País (do início da pandemia até 18 de maio) com a votação obtida pelo então candidato Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018 nas mesmas localidades. Sob qualquer ângulo que se analise, as taxas de contaminação são sempre maiores nos locais em que Bolsonaro foi mais votado. Em contrapartida, quanto menor a adesão que Bolsonaro teve, menos frequentes são os casos.

Nos 215 municípios em que Bolsonaro teve mais de 80% dos votos válidos no segundo turno 2018, a taxa de contaminação pelo coronavírus supera 10.400 casos por 100 mil habitantes. Nesse conjunto de municípios moram 8,9 milhões de pessoas. Em São Martinho (SC), por exemplo, a contaminação chegou a 22.579 por 100 mil.

Se esse apanhado de municípios fosse um país, essa nação apareceria hoje na oitava posição do ranking dos locais mais perigosos do mundo para Covid-19. Só estaria atrás de um grupo de principados e pequenas repúblicas com taxas extraordinariamente altas de transmissão, como Andorra e Montenegro.

Já nos 108 municípios em que o presidente teve menos de 10% dos votos válidos no segundo turno de 2018, a taxa é de 3.781 casos por 100 mil habitantes. Essa “nação oposicionista” apareceria no 79º lugar do ranking internacional da Covid-19, próxima do padrão de países como Grécia e Canadá.

Com pouco mais de 7.400 casos por 100 mil habitantes em todo o território, o Brasil aparece atualmente na 36ª posição do ranking internacional da Covid. Até domingo, eram mais de 16 milhões de casos e 448 mil óbitos.

Para afastar a hipótese de o resultado ter sido distorcido pelo fato de haver coincidência entre as maiores votações em Bolsonaro e locais com maior oferta e realização de testes, o Valor agrupou os municípios com mais de 100 mil habitantes e analisou as taxas de covid-19 nesses locais separadamente. Embora seja difícil estimar o número exato de testes já realizado por município, é sabido que a oferta de exames é sempre maior nos grandes centros, pontos de maior concentração de infraestrutura médica e farmacêutica.

No conjunto dessas maiores cidades, a correlação bolsonarismo-Covid se repete. Nos 258 municípios mais populosos em que Bolsonaro teve mais de 50% dos votos, a taxa de casos da doença é de 7.752 por 100 mil habitantes. Nos 66 municípios mais populosos em que Bolsonaro teve menos de 50% dos votos, a presença do coronavírus também é menor – de 7.053 casos por 100 mil habitantes.

Como a contaminação está mais relacionada com o comportamento das pessoas – e não com a infraestrutura hospitalar –, os registros de casos são mais adequados para medir a influência do discurso negacionista do que as confirmações de mortes. Outra vantagem da medição por casos é que o número de contaminados será sempre muito maior que o total de óbitos – o que, na análise agregada, oferece mais estabilidade estatística.

Nos diferentes segmentos de municípios conforme a votação em Bolsonaro, de qualquer forma, os totais de óbitos por Covid-19 apresentam as mesmas tendências observadas nos dados sobre infecção: quanto maior o percentual de votos em Bolsonaro em 2018, mais mortes.

Nas cidades em que o presidente teve abaixo de 10% dos votos em 2018, há 70 óbitos por 100 mil habitantes. Nas localidades onde Bolsonaro teve 80% dos votos ou mais, há 206 óbitos por 100 mil habitantes. Em Nova Pádua (RS), cidade com o maior percentual de votos válidos em Bolsonaro em todo o Brasil (93%), a taxa alcançou 313 óbitos por 100 mil.

“Esses dados são chocantes”, afirma o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre o novo coronavírus no Brasil. “Da mesma forma como o negacionismo foi responsável pelo crescimento da epidemia de HIV na África do Sul algumas décadas atrás, agora o negacionismo é responsável por mais de 300 mil mortes por Covid-19 no Brasil. Esses dados são compatíveis com o achado que publicamos alguns meses atrás de que três de cada quatro mortes ocorridas por Covid-19 no Brasil seriam evitáveis caso o país tivesse um desempenho igual a média mundial no enfrentamento da pandemia.”

Coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo, o médico Paulo Menezes lembra que a maior incidência de Covid em redutos bolsonaristas do estado já fora notada por profissionais que atuam na linha de frente do combate à pandemia. Os resultados apurados a partir do cruzamento de casos com dados eleitorais corroboram as impressões colhidas no dia a dia.

O negacionismo bolsonarista confronta as principais evidências e recomendações científicas. Bolsonaro tem desprezado orientações para uso de máscara e medidas de isolamento social, promovido aglomerações, propagandeado medicamentos sem eficácia, desqualificado especialistas, minimizado a gravidade da doença e posto em dúvida a qualidade de vacinas. Neste domingo (23), sem máscara, ele voltou a gerar aglomeração e a criticar medidas restritivas durante passeio de moto no Rio de Janeiro.

Segundo a médica infectologista e pesquisadora Mirian Dal Ben, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, o comportamento individual tem peso determinante nas taxas de transmissão. “E ele (Bolsonaro) vem desde o início pregando contra a máscara e contra o isolamento, que são as duas medidas com maior impacto no combate ao vírus. Máscara e isolamento são as duas coisas que mais protegem individualmente e as que mais controlam a transmissão”, diz.

Pesquisador da Fiocruz e ex-diretor da área de combate ao coronavírus no Ministério da Saúde, o também infectologista Julio Croda afirma que a correlação entre bolsonarismo e Covid é indubitável. “A adesão a medidas protetoras tem caráter individual e político. Medidas restritivas individuais e coletivas são adotadas quando há adesão da população. As pessoas precisam acreditar que as medidas são importantes”, diz. “Quando há um presidente afirmando que não é necessário usar máscara, não é preciso fazer isolamento, há menos adesão a essas medidas. A correlação faz sentido.”

Com informações do Valor Econômico