“Há muita história soterrada”, diz Itamar Vieira, autor de Torto Arado

Em entrevista, escritor comenta a importância das comunidades quilombolas entre outros aspectos de sua literatura

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Em um trecho do premiado Torto Arado — um dos mais comentados romances da literatura brasileira dos últimos tempos —, uma personagem conta por que decide romper em parte com a servidão tradicionalmente imposta à sua família, recusando-se a doar o melhor bocado de sua produção semanal para “o dono” da terra onde mora. “Só para não deixar que ele levasse meu suor, minhas dores nas costas, meus calos nas mãos e minhas feridas nos pés, como se fosse algo seu”.

Mas esse é apenas um breve fragmento extraído da metade final da história que começa bem antes, quando as irmãs Bibiana e Belonísia se machucam em um acidente enquanto remexem os segredos guardados na velha mala da avó Donana. Uma delas emudece. Dali em diante, a trama escrita por Itamar Vieira Junior conduz o leitor pelos dias e noites em Água Negra — fazenda fictícia situada na Chapada Diamantina que poderia ser qualquer outra do sertão brasileiro — e pela vida de seus habitantes, trabalhadores rurais descendentes de escravizados, sua luta pela terra, seus traumas, suas memórias, os seus combates, a sua resistência. O resto é surpresa escrita em uma prosa arrebatadora.

Torto Arado é o terceiro livro do escritor de 41 anos, nascido em Salvador, geógrafo, formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e um apaixonado servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que, se precisasse escolher, afirma, trocaria todos os títulos acadêmicos pelo conhecimento que adquiriu durante 15 de anos de ofício junto aos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados da reforma agrária e povos do campo. “Eles têm muito a nos ensinar, basta ouvi-los”. É sobre isso que escreve, recuperando uma ancestralidade negada a muitos.

Para o escritor, talvez resida aí a principal qualidade do livro, que conquistou o Prêmio Leya, promovido por uma famosa editora portuguesa, em 2018, e desde então coleciona honrarias: levou ainda o cobiçado Oceanos e, em novembro último, foi o grande vencedor do Jabuti — a mais tradicional premiação literária do Brasil. “Acho que o maior mérito do romance está em permitir que os leitores se conectem a uma história que, de alguma forma, é comum a todos neste país”, resume. “Há muita história soterrada”. Pois é basicamente isto o que faz Torto Arado: por meio da ficção, traz à tona o nosso passado colonial e escravagista.

Quando decidiu publicar o livro, Itamar não enviou o texto a uma grande editora – “Sabia que eu não tinha chances”. Em vez disso, inscreveu os originais para concorrer ao prêmio Leya sob um pseudônimo de gênero neutro. Gosta de imaginar que, enquanto liam, os jurados não podiam adivinhar se era homem ou mulher, tampouco a cor de sua pele. Negro, nordestino, com antepassados escravizados, ele entende que o racismo estrutural está em toda parte. “Desde a força policial utilizada em comunidades predominantemente negras nas grandes cidades brasileiras até o impacto de uma pandemia na vida da população, que não é o mesmo para todos”, afirma. “As desigualdades no Brasil têm cor”.

Foi com entusiasmo que Itamar aceitou o convite para uma entrevista à Radis. Depois de reservar um espaço na agenda intensa, por telefone, falou bastante sobre literatura, que ele considera um poderoso instrumento de alteridade e de empatia. “Quando a gente pega um livro para ler, fazemos um trato com o autor e com as personagens. Durante algum tempo, vamos viver aquelas vidas”, diz. “Eu acredito que, dessa forma, a literatura pode contribuir para que a gente se coloque na pele de outras pessoas”. É mais ou menos assim que o leitor de Torto Arado se sente ao chegar perto de Bibiana, Belonísia, Donana, Crispiniana e Crispina, Severo, Maria Cabocla, Salu e Zeca Chapéu Grande, ou mesmo dos encantados do Jarê — religião de matriz africana que mescla elementos das culturas negras, portuguesas e indígenas — que também se tornam personagens marcantes do livro.

Na entrevista da Radis, Itamar conta sobre como ficou sua rotina depois da repercussão do livro e como faz para conciliar os trabalhos de escritor e de analista agrário no Incra, o convívio com os quilombolas e tudo o que aprendeu com os povos tradicionais. Também fala sobre a frustração que tem sido trabalhar com regularização fundiária no atual cenário brasileiro, em meio a uma paralisia das políticas públicas para o campo, e de como isso pode nos afetar a todos. E revela o que fez com os 5 mil reais que recebeu do prêmio Jabuti.

Torto Arado – Itamar Vieira Junior. 262 páginas. Editora Todavia

Confira a entrevista da Radis na íntegra:

Radis: O seu livro é uma declaração de amor à terra e aos povos tradicionais, como já foi dito. De onde você parte para escrever Torto Arado e como essa história foi sendo construída?

Itamar Vieira Júnior: Essa história surgiu ainda na adolescência, muito influenciada pelos romances da Geração de 30 e de 45 na literatura, que tratam desse mundo rural do Nordeste brasileiro. Cheguei a escrever 80 páginas de uma primeira versão. O mote da história era muito parecido, mas não dei continuidade, claro, porque não tinha maturidade. Por coincidência, eu segui estudando, me formei geógrafo, fui trabalhar como servidor público no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e lá pude ter mais contato com os povos do campo. Foi ali que essa história começou a ganhar mais densidade e foi atravessada por experiências do meu cotidiano de trabalho entre quilombolas, indígenas, ribeirinhos e assentados da reforma agrária. Ou seja, a história foi ganhando profundidade quando mergulhei de fato, por conta do meu ofício, no mundo rural brasileiro.

O livro é também uma espécie de acerto de contas com a nossa história. Quanto de racismo e de nosso passado escravagista ainda estão entranhados em nós?

Olha, o Brasil é um país que tem um passado mal resolvido. Eu sempre lembro da frase do Millôr Fernandes [escritor, desenhista e humorista]: “O Brasil é um país com um enorme passado pela frente”. Tivemos quase quatro séculos de um sistema escravocrata perverso, de exploração do trabalho, e temos pouco mais de um século de uma pseudoliberdade depois da Lei Áurea. Ou seja, a liberdade também é uma construção e ela tem sido construída ao longo das últimas décadas. O traço mais marcante do racismo estrutural, desse sistema escravagista, são as desigualdades. E as desigualdades no Brasil têm cor. Basta olharmos para este momento presente. Estamos mergulhados numa grave crise sanitária e o impacto da pandemia na vida de homens e mulheres negras é infinitamente maior do que na vida das pessoas que não se declaram como negras. Então, o racismo estrutural permeia tudo, desde a força policial em comunidades predominantemente negras nas grandes cidades brasileiras até o impacto de uma pandemia na vida da população, que não é o mesmo para todos.

E como a literatura pode ajudar a nos redimir, de certa maneira?

A literatura não tem um propósito muito definido. A princípio, o propósito da literatura seria a arte, a fruição. Mas eu confesso que, assim como alguns esperam, tenho uma enorme fé na literatura porque, mesmo como arte, ela permite que a gente adentre o pensamento das personagens, viva a vida das personagens. Quando a gente pega um livro para ler, a gente faz um trato com o autor e com as personagens. Durante algum tempo, vamos viver aquelas vidas. Isso é um poderoso instrumento de alteridade, de empatia. Eu acredito que, dessa forma, a literatura pode contribuir para que a gente imagine a vida de outras pessoas, se coloque na pele de outras pessoas, para poder entender a complexidade de suas vidas.

Qual o maior mérito de Torto Arado? O que você, particularmente, mais gosta no seu romance?

O livro fez um percurso muito peculiar. Ele só está publicado porque venceu o Prêmio Leya, que é uma grande editora de Portugal, e isso despertou um interesse no Brasil. Depois, ele passou a ser lido pouco a pouco e foi ganhando um público considerável e, por fim, venceu os prêmios Oceanos e Jabuti. Para mim, como autor e como leitor, o que tem de mais importante em Torto Arado é a possibilidade de construção de uma história comum, de um passado comum, a partir da ficção. Eu fico imaginando que, para muitos de nós, a nossa ancestralidade foi negada. Muitos não sabem de onde nossos antepassados vieram, em que circunstâncias viveram. A gente imagina, mas pouca gente sabe sobre essas vidas. Há muita história soterrada e eu acho que Torto Arado traz essa história à tona e tem capturado um pouco dessa familiaridade que todos nós temos com essas vidas. Mesmo que nós pessoalmente não tenhamos vivido essa história, alguém da família viveu, um pai, um avô, uma avó, um bisavô. Eu tenho visto isso entre os leitores, independente da sua origem ou de que classe social pertença. Acho que o maior mérito do romance está em permitir que os leitores se conectem a uma história que, de alguma forma, é comum a todos, que fala de algo que nos interessa neste país, que é a nossa história. É a nossa história.

Seu contato com os povos tradicionais, as questões agrárias, os conflitos no campo, vem de antes de Torto Arado — sua tese de doutorado inclusive foi realizada na comunidade quilombola de Iúna. Esse romance seria possível sem essa vivência como geógrafo e servidor do Incra?

Acho que não. Trabalhar como servidor público no campo há 15 anos, ter trabalhado com educação no campo e passado por muitos projetos, é um privilégio. Me levou a conhecer esse Brasil profundo. Se por acaso eu tivesse de fazer uma escolha, trocaria todos os meus títulos acadêmicos, eu trocaria tudo o que aprendi na universidade, pelo que aprendi entre eles. Porque é uma forma de narrar, de experienciar a vida, muito diversa e muito importante. Traz o peso da história desse país em tudo. Para mim, foi fundamental para entender muita coisa. Sem esse encontro, talvez esse livro pudesse até existir, mas não teria essa densidade.

Certa vez, você disse que ser servidor público tem um lado poético, algo como a possibilidade de servir ao povo ajudando a mitigar problemas. Como tem sido exercer esse papel em um órgão como o Incra no Brasil atual?

Tem sido muito duro, muito frustrante. Trabalhar com questões agrárias, com regularização fundiária e outros temas agrários, é um trabalho longo e árduo, que demanda tempo. Não é um trabalho que se resolve no curto ou médio prazo. Qualquer tempo perdido pode levar toda uma história por água abaixo, toda uma vida de luta por água abaixo. E nos últimos tempos, temos uma paralisia das políticas voltadas para os povos do campo, que é muito diferente de governos passados, quando esse trabalho tinha uma centralidade. O Incra é um órgão que tem capilaridade, que chega a todo e qualquer município, nos lugares mais remotos do país. Quando entrei no Incra, ele era um órgão em ebulição. Tinha muitos programas, muitas políticas. Comecei a trabalhar no Maranhão e fiquei três anos ali. Mas tudo isso foi rompido, foi quebrado. Acho que há um direcionamento do governo atual muito claro e que já estava posto, ainda na campanha e no programa de governo, quando eles falavam em “nem um centímetro de terra para indígena e quilombola” [uma referência a uma fala do então pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro]. Isso já vinha sendo dito. Muitas vezes, a gente vê os movimentos sociais e a sociedade civil organizada sendo tratados como inimigos do povo, como inimigos da sociedade. Então, é muito frustrante. A gente tem vivido uma paralisia que se agravou, sobremaneira com a pandemia, e essas pessoas continuam demandando política pública, continuam precisando da política pública.

Pode nos dar um exemplo de como essa paralisia se manifesta?

Nós temos mais de 3 mil comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares e a gente não chegou a fazer 10% das regularizações fundiárias dessas comunidades. Há muitos trabalhadores acampados esperando que a Constituição seja cumprida, esperando que seja cumprido o que está disposto lá sobre a função social da propriedade, esperando a desapropriação de área. Ou seja, há muito para ser feito, mas tudo isso foi paralisado.

Que riscos estão correndo os quilombolas e comunidades tradicionais?

As comunidades continuam em risco porque o campo vive um processo de violência que é secular. Todos os anos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) faz um balanço de lideranças em risco ou assassinadas durante o ano em conflitos fundiários. [Segundo o último relatório divulgado em janeiro (11/1), no ano passado, foram registrados, em números parciais, 1.083 casos de violência contra a ocupação e a posse, envolvendo 130.137 famílias; e 178 invasões de territórios, atingindo 55.821 famílias. Em 2019, haviam sido contabilizadas pela CPT apenas nove invasões]. O que pode acontecer é esses conflitos se acentuarem, famílias quilombolas inteiras serem espoliadas de seus territórios, porque o agronegócio tem se expandido sem controle e, claro, quem tem poder e capital nesse país sempre vai estar numa posição muito mais vantajosa. Então, não é raro a gente encontrar conflitos entre grandes proprietários, entre latifundiários, o agronegócio e pequenas comunidades tradicionais. E aí é que o Estado deveria estar para mediar esses interesses e proteger, amparar, esse lado mais frágil, que é o lado das comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas.

Como a ausência de políticas públicas para o campo pode nos afetar a todos?

Acho que tudo isso nos afeta de uma forma muito importante. Se vamos para um supermercado comprar alimentos — e nesse momento de pandemia há uma questão muito grave porque o Brasil volta para o mapa da fome —, a gente não sabe o que existe ali no mercadinho de bairro, de onde vem aqueles produtos, a cebola, os temperos, o feijão que a gente consome. Se formos pesquisar, a gente vai entender que quase 70% do que chega à mesa da população brasileira é plantado e cultivado pelo pequeno e médio agricultor. Ou seja, nós somos muito dependentes. A segurança alimentar desse país passa pelo fortalecimento das políticas para os povos do campo, essas políticas públicas de subsídios, de financiamento, de regularização fundiária, isso é importante para nós. Porque o agronegócio produz commodities para exportação. Quem vai comer soja? Há uma imensidão, milhares e milhares de hectares de uma única fazenda plantada com soja, mas quem consome soja? Não somos nós. A soja tem o mercado externo para ser exportada, da mesma forma a cana-de-açúcar. O grande latifúndio não tem compromisso com a segurança alimentar da sociedade brasileira. Ele produz aquilo que é mais vantajoso economicamente. Quem produz o que a gente consome cotidianamente é o pequeno e o médio agricultor. Daí a importância, ou seja, não é uma questão apenas dos povos dos campos. É uma questão que nos afeta a todos nós.

Com toda a repercussão de Torto Arado, como ficou a sua rotina?

Tem sido dureza. Mas como a pandemia não me permite sair de casa — no máximo eu vou ao órgão quando necessário —, eu não tenho ido a lugares para participar de eventos, então tudo se tornou “teoricamente” mais fácil porque a gente pode participar de um debate ou de uma entrevista ou algo assim, simplesmente ligando o computador. E isso consome bastante tempo. Então, é como se eu tivesse uma jornada dupla, mas isso aliás é algo que sempre precisei lidar na minha vida. Eu nunca estava apenas trabalhando, sempre estudava ou escrevia nos horários vagos. Acho que o que ficou prejudicado agora foi a parte do escritor. Não tenho me dedicado à escrita como gostaria, porque o tempo que tenho livre, uso atendendo a demandas que foram geradas com a repercussão do Torto Arado. Mas em relação ao trabalho no Incra, continuo trabalhando de uma maneira muito limitada por conta da pandemia, o que é frustrante para todos nós, porque a gente sabe que as pessoas estão lá na ponta precisando. Daí a importância da vacina, de se ampliar a imunização, a importância da Fiocruz e de outros órgãos também nesse momento da nossa história. A gente espera que tudo isso passe para que a gente retome o mais rápido possível o atendimento dessas pessoas no campo.

Como profissional do Incra, você continua convivendo de perto com essa realidade dos quilombolas. E como escritor, de alguma forma, os seus escritos retornaram para essas comunidades?

Sim. Essa semana mesmo eu tive que ir aos Correios para despachar alguns livros para uma comunidade quilombola da Chapada [Diamantina], porque eles estão muito interessados. Eu fiz a doação dos livros e o que eles venderem vai para associação que cuida deles. Quando ganhei o prêmio Jabuti ano passado, enviei o valor que eles destinam para o prêmio para uma comunidade quilombola. Desde a minha tese, quando mandei encadernar a tese, encadernei também um volume e entreguei à comunidade — essa é uma comunidade que sofre com muitas questões. Eu disse a eles: “Olha, aqui está uma tese acadêmica, um trabalho científico, então se algum dia vocês tiverem algum problema, precisarem se apresentar à justiça, precisarem fazer valer a sua história, mostra essa tese, porque ela é um documento histórico também”. Ou seja, acho que a gente vai se retroalimentando. O mérito de Torto Arado não é apenas do autor. É mérito desse contexto onde o autor estava e que envolve o órgão onde ele trabalha, as pessoas com quem ele trabalha e o público, que permitiu que ele pudesse compartilhar histórias, ainda que imaginadas, mas histórias que têm sua base na realidade.

Torto Arado se passa em um ambiente extremamente patriarcal, mas você faz uma opção por narrar pelas vozes de Bibiana e Belonísia. Por que são mulheres as narradoras?

É interessante. Quando submeti o romance ao prêmio Leya, eu escolhi um pseudônimo neutro porque não queria que o fato de ser homem ou mulher influenciasse na decisão do júri. E foi bem curioso porque eles leram na dúvida se tinha sido escrito por um homem ou por uma mulher. Mas por que são mulheres as narradoras? Nesse meu caminhar de 15 anos entre comunidades e povos do campo, eu posso lhe garantir que, principalmente em comunidades quilombolas, 70% das lideranças são mulheres. Seja porque às vezes elas conseguem se escolarizar mais que os homens, ou porque muitas vezes os homens precisam migrar para trabalhar no corte da cana ou outras produções ou porque eles morrem mais cedo já que as mulheres tendem a se cuidar mais, o fato é que essas mulheres assumem esse lugar de liderança e poder. Isso para mim era contraditório, porque elas estão inseridas em um contexto extremamente patriarcal e machista. Como é que pode esse paradoxo? Então, dentro de uma população que é vulnerabilizada como a população quilombola, eu ainda busquei as personagens mais vulneráveis, que são as mulheres. E aí só fazia sentido narrar essa história se fosse pela voz dessas mulheres, pela voz dessas personagens. O mágico da literatura é que a gente pode ser qualquer coisa, a gente pode ser uma árvore, a gente pode ser um homem ou uma mulher, a gente pode ser um cachorro, um gato, a gente pode ser um espírito, qualquer coisa.

E nós leitores agradecemos. Ao mesmo tempo, a linguagem do seu romance é também surpreendente, a forma como é estruturado, o peso das palavras, a valorização de cada uma delas, o suspense. Como você se define como escritor? De que tradições literárias é herdeiro?

É difícil falar sobre influências porque sou um leitor contumaz desde a infância. E há fases na vida. Desde a literatura infanto-juvenil, até o cânone literário ocidental, vamos pensar assim, muitos desses livros fizeram a minha cabeça. Então, no Brasil, autores como Machado de Assis, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, todos eles fizeram a minha cabeça de alguma forma. Autores estrangeiros, o Hermann Hesse, [William] Faulkner, a Toni Morrison [primeira escritora negra a ganhar o prêmio Nobel, em 1993], que teve uma contribuição importante para minha percepção de literatura na última década. Acho que todos eles contribuem para a forma como eu escrevo, porque foi admirando esses autores que pude imaginar uma estética, uma forma de narrar diferenciada, que nem é tão diferente assim, na verdade, é algo muito simples, muito direto. Mas também devo muito a essa minha vivência entre camponeses. Para mim, a forma mais primitiva de literatura é a conversa entre pessoas. Quando a gente conta uma história, a gente sempre vai ali elencar elementos para conduzir a pessoa que está nos escutando. E era assim também que eu via muitos camponeses narrarem suas vidas, narrarem suas histórias. Vi nesse narrar tão familiar, tão simples, um poderoso instrumento estético para contar uma história literária, para fazer literatura. Então, acho que o romance teve uma influência definitiva dessas pessoas humildes, muitas delas sequer alfabetizadas, mas que falam com tanta propriedade e que escolhem o clímax do que estão contando, de forma a nos prender, nos enredar nessa narrativa oral. Além de todos esses autores e dos outros que eu não conseguiria citar porque são muitos, acho que a oralidade teve uma contribuição importante.

Apesar de termos uma tradição de autores negros, como o racismo se manifesta no mercado editorial brasileiro?

Sempre foi uma luta árdua, uma luta inglória, basta a gente olhar para o passado, para muitos autores que não tiveram reconhecimento em vida e que lutaram, batalharam para ter seus manuscritos publicados: a Ruth Guimarães, o Lima Barreto, a Carolina Maria de Jesus, a Conceição Evaristo, que até hoje publica por pequenas e médias editoras. Eu acho que o racismo existe e que ainda é marcante, mas alguns passos estão sendo dados para garantir que autores e autoras negras tenham mais e mais espaço no mercado editorial. Ou seja, ainda há preconceito, mas também há avanços, e esses avanços se dão muito por conta do debate que temos travado sobre o racismo no mercado de trabalho, muito pelo debate proporcionado por uma classe que vem saindo das universidades e é beneficiária do sistema de cotas que antes não tinha possibilidade desse acesso e sai demandando histórias, demandando textos que se aproximem de suas realidades. Ou seja, acho que a gente está vivendo uma pequena revolução ainda que muito silenciosa. As coisas têm mudado.

E você sentiu isso em algum momento de sua trajetória?

Eu me sinto um afortunado, um privilegiado, porque de fato minha carreira iniciou e, até agora, não precisei bater de porta em porta nas editoras para fazer meu livro ser publicado [Além do romance Torto Arado, Itamar é autor ainda dos livros de contos Dias e A Oração do Carrasco]. No caso de Torto Arado, como eu sabia que eu não tinha chances, procurei prêmios e concursos literários, então, como não sabiam a minha cara ou como eu era, não posso dizer que sofri esse preconceito. Mas o que tenho visto entre amigos escritores negros, da Bahia e de outros lugares, é que isso ainda é uma realidade. Mas vem sendo modificado pouco a pouco. Cada vez mais eu vejo autores e autoras negros tendo destaque, fazendo a sua literatura chegar aos lugares mais distantes.

O que podemos seguir aprendendo com os quilombolas e povos tradicionais?

Há muito tempo, li uma entrevista do meu amigo Ailton Krenak [líder indígena, ambientalista e escritor] — que é uma pessoa que admiro muito, um dos grandes pensadores contemporâneos desses país. Um repórter português perguntou: “O que a gente pode aprender com os povos originários?” E aí o Ailton disse: “Nós temos 500 anos de luta contra o impossível, contra aquilo que nos corrói, que nos destrói, e ainda assim estamos íntegros. A gente atravessou esse tempo com muita resiliência, com muita força e com muita vontade de lutar”. E eu acho que o que a gente pode aprender com os povos tradicionais é justamente essa relação mais harmônica com o ambiente, essa resiliência de viver com menos, de não ter gana pelo consumo desenfreado, de ter uma relação mais consciente com o ambiente e com o seu entorno, com recursos naturais. A Terra está em crise, numa crise violenta. Essa crise pandêmica tem origem no ambiente, ela acontece graças a degradação da natureza pelo homem. E a gente pode evitar isso, a gente pode viver num planeta melhor. Nesse sentido, acredito que os povos tradicionais têm muito a nos ensinar, basta escutá-los, basta ouvi-los.

Para terminar, queria perguntar se você ainda se mantém como um otimista incorrigível, como já declarou ser?

Eu tenho uma esperança engajada [risos]. Foi a expressão que encontrei para falar desse otimismo, que não é uma esperança passiva, em que a gente só espera…

E como um otimista, dono dessa esperança engajada, vem lidando com o momento atual, de retrocessos políticos e avanço de uma agenda conservadora no Brasil e no mundo e agora também uma pandemia?

Olha, eu te confesso que mesmo me declarando um otimista, um esperançoso engajado, tem sido bastante difícil. Mas ao mesmo tempo que vejo todo esse recrudescimento representado pela extrema-direita que ocupa o poder neste momento no Brasil, tenho visto na mesma medida a consciência de uma parcela significativa da sociedade em relação a todos esses retrocessos. Pessoas dos mais diversos espectros, da direita à esquerda, têm refletido um pouco sobre isso, o que me faz ser otimista. A pandemia nos jogou na cara a nossa fragilidade enquanto seres humanos e paralelo a isso se fortaleceu uma rede de solidariedade que tem permitido mitigar minimamente o sofrimento de muitas pessoas, seja de quem está na linha de frente dos hospitais cuidando incansavelmente desses pacientes, seja de quem está aqui na retaguarda participando de redes solidárias, arrecadando alimentos, contribuindo com o que pode. A gente não pode desprezar isso. Acho que muitas vezes há um enfoque muito grande na perspectiva negativa do que estamos vivendo — e é claro, é muito grave o que estamos vivendo, afinal, são mais de 345 mil vítimas só no Brasil, um governo negacionista que conduziu da pior maneira essa pandemia. Mas ainda assim tenho visto se formar uma rede de solidariedade, como nunca tinha visto antes. Acho que esse país continua a ser o país do futuro. A gente avança e retrocede, avança e retrocede… Estamos no momento de retrocesso, mas alimento essa esperança engajada de que a gente vai sair melhor de tudo isso. Precisamos dessa esperança para ter coragem de levantar todos os dias, falar com as pessoas, fazer as coisas que a gente precisa fazer, não abandonar o outro que também está precisando, ou seja, a gente precisa alimentar essa esperança de muitas formas, com ação e com coragem, também.

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Entre quilombolas

Itamar Vieira Junior fez sua pesquisa de doutorado em estudos étnicos e africanos na comunidade de Iúna, na Chapada Diamantina. Quando concluiu a tese, aproveitou para encadernar um volume extra que fez questão de entregar pessoalmente aos quilombolas da região. “Eu disse a eles: ‘Olha, aqui está uma tese acadêmica, um trabalho científico, então se algum dia vocês tiverem algum problema, precisarem se apresentar à justiça, precisarem fazer valer a sua história, mostra essa tese, porque ela é um documento histórico também”. Ao ganhar o prêmio Jabuti de romance em 2020, ficou com o troféu, mas doou o valor de 5 mil reais que recebeu em dinheiro para os quilombolas. “O mérito de Torto Arado não é apenas do autor. É mérito desse contexto onde o autor estava e que envolve o órgão onde ele trabalha, as pessoas com quem ele trabalha e o público, que permitiu que ele pudesse compartilhar histórias, ainda que imaginadas, mas histórias que têm sua base na realidade”, disse à Radis.

O escritor e o analista agrário

O autor de Torto Arado é um leitor contumaz desde a infância. De Machado de Assis a Clarice Lispector, de Jorge Amado a Hermann Hesse e Toni Morrison — primeira escritora negra a ganhar o prêmio Nobel, em 1993. Mas ele não tem nenhuma dúvida sobre a importância dos povos tradicionais na sua escrita e na sua vida. Para o escritor, a forma mais primitiva de literatura é a conversa entre pessoas. Em 15 anos como analista agrário no Incra, pôde conhecer de perto a fala e os gestos que ele tão bem descreve no livro. “Vi nesse narrar tão familiar um poderoso instrumento estético para contar uma história literária, para fazer literatura”. Itamar lamenta o risco que correm as comunidades quilombolas. “O campo vive um processo de violência secular”. Em meio a tempos tão ariscos, ele diz temer que famílias quilombolas inteiras sejam espoliadas de seus territórios, por conta do agronegócio e do capital. “O Estado deveria mediar esses interesses e proteger o lado mais frágil, das comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas”.

Fonte: Radis