Com medo de nova crise, cúpula do Exército respaldou perdão a Pazuello

Na visão dos militares, Pazuello já era considerado “caso perdido”, por quem não valeria a pena o risco de ampliar a crise com o Planalto

O ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e o presidente da República, Jair Bolsonaro, acenam a apoiadores após passeio de moto pela capital carioca | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Afinal, por que o comandante-geral do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, traiu o histórico das Forças Armadas e fez vistas grossas a uma gravíssima infração de um general da ativa? O que o Alto Comando achou da decisão de perdoar o ex-ministro Eduardo Pazuello, que rasgou o regulamento militar e participou de manifestação favorável ao presidente Jair Bolsonaro?

Em 23 de maio, Pazuello participou de um passeio de moto com militantes bolsonaristas no Rio, subiu em um carro de som, acenou e fez um breve discurso, ao lado do presidente Jair Bolsonaro e de congressistas. Ele alegou que o ato não era político-partidário ou eleitoral. O comandante teria acatado a justificativa.

Conforme reportagem do Estadão publicada neste sábado (5), o caso dividiu o Exército, mas a cúpula dos militares respaldou a vergonhosa deliberação. Para eles, Paulo Sérgio tentou estancar o que poderia ser uma crise maior e resultar na segunda troca de comando em dois meses. O gesto de subserviência a Bolsonaro, porém, despertou a preocupações de que o Exército possa ceder novamente em outros tipos de pressões.

A opção por isentar Pazuello foi individual e exclusiva de Paulo Sérgio. Mas, num sinal de busca de consenso e apoio, o comandante consultou o Alto Comando. Embora não fosse unanimidade entre os generais de quatro estrelas, a decisão não foi nem será contestada pela cúpula verde-oliva. Segundo um oficial, “o silêncio é fruto da disciplina” que eles desejam preservar e ajudar a recuperar a instituição de um grande dano de imagem. Os generais estão desconfortáveis com o desfecho permissivo, mas ponderam que o comandante ficou sem saída e “qualquer solução seria ruim”.

Militares das Forças Armadas são proibidos, por lei e pelos estatutos que regem a sua atuação, de se manifestarem sobre questões políticas e partidárias. O Decreto 4346/2002 especifica as transgressões passíveis de punição administrativa: manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária; tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária; e discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.

As sanções vão de advertência, impedimento disciplinar, repreensão, detenção, prisão e licenciamento até a exclusão dos quadros militares. No caso Pazuello, a versão oficial será a de que não houve transgressão disciplinar – uma decisão que, entre oficiais foi recebida com silêncio. O Exército comunicou oficialmente o arquivamento do caso, mas pouco explicou sobre o entendimento do comandante-geral. Sob anonimato, generais que despacham no Forte Caxias explicaram algumas das razões para o desfecho do caso.

Uma das justificativas é que aplicar uma punição a Pazuello soaria como reprimenda ao presidente, o comandante supremo das Forças Armadas. Pazuello não tinha registro de transgressões anteriores e estava ao lado de Bolsonaro, o que poderia ser interpretado, numa versão bastante controversa mesmo entre militares, como autorização para se manifestar.

Segundo auxiliares diretos, Paulo Sérgio tentou conter a iminente escalada de crise. Se punisse Pazuello, a contragosto do presidente, correria o risco de ser desautorizado e ter de entregar o cargo, abrindo espaço para Bolsonaro nomear, em seu lugar, alguém ainda mais submisso, no estilo Pazuello. Na prática, ele atendeu a Bolsonaro, que não queria ver seu novo secretário de Estudos Estratégicos advertido ou repreendido.

A decisão surpreendeu oficiais no Quartel-General, pois havia uma inclinação a punir, aplicando o Estatuto dos Militares e o Regimento Disciplinar do Exército. Apesar da sensação de derrota e do constrangimento geral, oficiais que despacham no Forte Caxias descartam a possibilidade de renúncias no Alto Comando. A próxima reunião, prevista para ocorrer entre 21 e 25 de junho, discutirá promoções já programadas no generalato, o que vai acarretar em alterações na composição da cúpula verde-oliva.

“Caso perdido”

General intendente de três estrelas, topo da carreira, Pazuello já era considerado um “caso perdido”, por quem não valeria a pena o risco de ampliar a crise com o Planalto. Agora, há no QG a expectativa que ele se dedique de vez à política e afaste-se do Exército, onde estava sem função específica desde março, quando foi demitido do ministério. Nas palavras de um oficial de alta patente, Pazuello não reúne mais “condições mínimas” de voltar a posições de comando perante a tropa.

“Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do presidente da República e com seu projeto pessoal de poder”, diz o general de Exército da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo. “A cada dia, ele (Bolsonaro) avança mais um passo na erosão das instituições. A união de todos os militares com seus comandantes continua sendo a grande arma para não deixar a política partidária, a politicagem e o populismo entrarem nos quartéis.”

O desfecho do caso fez lideranças políticas questionarem se as Forças Armadas teriam aderido de vez ao governo Bolsonaro e até que ponto os militares de alta patente estariam dispostos a ceder às vontades de seu comandante-em-chefe. A dúvida se impôs pelo fato de o Exército ter deixado passar uma transgressão disciplinar praticada em público, fartamente documentada – e para a qual existe proibição expressa nas normas militares, rompendo com os pilares de disciplina e hierarquia.

Nas demais Forças Armadas, a grande preocupação é o que fazer em casos futuros de indisciplina. Com a proximidade das eleições e o acirramento da polarização política, almirantes dão como certo que haverá novas participações de militares em atos de viés político, a favor e contra o presidente. Há preocupação com dificuldade de punir transgressões similares no futuro, pelo “precedente Pazuello”, e abrir rachas nas bases aéreas, distritos navais e divisões de exército.

Oficiais da ativa também avaliam que Bolsonaro voltará a provocar e “esticar a corda”, testando os limites da Forças Armadas. Compõem um quadro polarizado e desfavorável ao governo a queda na popularidade, os quase 470 mil mortos na pandemia, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 e investigações sobre ministros e filhos.

A interferência de Bolsonaro serve de “estímulo e de garantia para que outros fatos, muito mais graves, venham a acontecer”, avalia o general reformado do Exército Paulo Chagas. “A ausência de, pelo menos, uma advertência abre perigoso precedente que poderá, em futuro não distante, ser usado para estimular e justificar a entrada, em facções, do debate político e da indisciplina para o interior dos quartéis”, diz Chagas.

Sem precedentes

Ainda segundo o Estadão, a clemência com Pazuello destoa do desfecho ocorrido em diversos processos administrativos abertos pelo comando das Forças Armadas para apurar transgressões de natureza político-partidária. Além do caso do próprio Bolsonaro – que chegou a ser preso na década de 1980, quando era capitão de artilharia após publicar um artigo na revista Veja em protesto contra o salário das tropas –, há registros de pelo menos outros três oficiais punidos por manifestações políticas desde 2013.

O caso mais recente é o do terceiro sargento da Marinha Michel Uchiha. Em março, ele foi posto em prisão disciplinar na Escola Naval do Rio de Janeiro, após ter sido alvo de duas sindicâncias internas na instituição, por críticas a Bolsonaro nas redes sociais durante a campanha eleitoral do ano passado. A detenção só foi interrompida por um habeas corpus expedido pela Justiça Federal.

Em 2019, mesmo estando na reserva do Exército, o coronel Marcelo Pimentel Jorge de Souza também recebeu punição por publicações nas redes sociais. Ativo no Twitter, suas postagens acusaram a ‘bolsonarização’ das tropas. Agora, após o resultado do processo disciplinar contra Pazuello, ele apontou a diferença de tratamento dispensada ao ex-ministro da Saúde.

“Amanhã, todo militar na ATIVA poderá ir em manifestações CONTRA o Gov, subir no palanque e gritar “FORA BOLSONARO”! Se general na ativa sobe em palanque e grita palavras de ordem A FAVOR do Gov, se não puder gritar CONTRA caracterizaria que o EB (Exército Brasileiro) virou um PARTIDO, certo?!”, escreveu.

Outro caso recente é o do ex-sargento do Exército Vinícius Feliciano. Em 2013, o então militar organizou um ato simbólico contra os salários da carreira e o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Feliciano desceu de rapel pelo vão central da Ponte Rio-Niterói, de uma altura de 40 metros, antes de ser preso por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Também acabou punido por indisciplina.

Com informações do Estadão