Galdino – um piromaníaco do bem por Rosemberg Cariry

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Mania besta. Desde menino que Galdino trazia esse fascínio pelo fogo, pelo tremular das chamas incitadas pela música do vento. Era amigo dos ferreiros, dos trabalhadores dos fornos de carvão e ajudava nas “brocas”, ateando fogo nos balceiros, no preparo das roças. Cresceu assim, fascinado por uma caixa de fósforos. Depois, já na meia-idade, quando escurecia na pequena Quixará (desligado o “motor da luz”), gostava de acender uma tocha que segurava, à altura do rosto, para alumiar os caminhos do mundo.

Galdino – o piromaníaco da aldeia – sempre foi humilde, nunca foi tentado pela megalomania imperial de Nero e jamais quis tocar fogo na pequena cidade onde morava, quanto mais em um país inteiro. A sua atração pelo fogo tinha limites. Talvez por isso, ando pensando, seriamente, em fazer uma campanha para erguer uma estátua para Galdino: cafuzo, espigado, digno e determinado, com uma tocha na mão, na frente do rosto, à altura dos olhos, para alumiar a escuridão do mundo. Uma estátua de 18 metros, bem maior e mais importante do que a do genocida Borba Gato (em São Paulo).

Nada mais justo do que uma estátua de um “doido do bem”, em tempos tão obscuros, onde uma país inteiro é incendiado pela mediocridade e pelo ódio de neofascistas e de fundamentalistas neopentecostais, que fazem tudo virar cinzas: bibliotecas, memoriais, museus, patrimônios históricos, cinematecas, centros de pesquisa, florestas, aldeias, quilombos, favelas e periferias. Afora essas coisas materiais (e os seus tesouros simbólicos), também tocam fogo na Constituição e nas instituições, na verdade, na democracia, na justiça, na dignidade, na cultura, na inteligência, na sensibilidade e no que ainda nos restava de respeito e vergonha nessa nação periférica e subdesenvolvida, em luta para sair da situação degradante de neocolônia, totalmente dependente do grande capital e da saga predadora dos países hegemônicos. Triste colônia, onde proliferam monoculturas para exportação, presídios superlotados, em meio ao crescente autoritarismo, violência e pobreza, em escala social. As classes dominantes brasileiras, causadoras e beneficiárias da tragédia, mostram-se indiferentes ao acúmulo de cinzas do presente e ao “desfuturo”.

*Cineasta e escritor

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