Artigo sobre ¨”Educação Domiciliar”, por Valricélio Linhares

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(Foto: Ubes)

Crítica da “educação básica domiciliar, por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais pelos estudantes”

Valricélio Linhares (IFCE/campus Itapipoca)

Aprovado na Câmara dos Deputados, em 19 de maio de 2022, o Projeto de Lei 2.401/19, que regulamenta a educação domiciliar no país, sendo sua livre escolha facultada aos pais ou responsáveis pelos estudantes da educação básica (da Educação Infantil ao Ensino Médio), altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Essas alterações rasgam o preceito constitucional que assegura o direito à educação e ameaçam toda a rede de políticas educacionais estabelecida desde a Constituição de 1988. O ensino domiciliar emerge de movimentos conservadores oportunistas com finalidades eleitoreiras, sendo reprovado por 78,5% das pessoas consultadas em pesquisa Datafolha, realizada em março de 2022. O projeto segue para o Senado Federal e, se aprovado, será um retrocesso sem precedentes na história da educação brasileira.

Nesta breve análise, em primeiro lugar, tal como na recente reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017), a proposta de educação domiciliar aprovada na Câmara dos Deputados usa como dispositivo de “convencimento” a ideia de liberdade de escolha, na qual os pais podem livremente optar entre matricular seus filhos na rede de escolas ou ensiná-los em sua própria casa. Essa liberdade se efetiva nos dispositivos do Art. 2º do referido projeto (“prioridade de direito na escolha do tipo de instrução que será ministrada para os seus filhos”; “plena liberdade de opção dos pais ou dos responsáveis legais entre a educação escolar e a educação domiciliar”).

Na Constituição Federal, o direito à educação se impõe como dever do Estado enquanto instituição que ampara os fundamentos das políticas educacionais do Ministério da Educação, como o financiamento da educação, a distribuição do livro didático, as políticas de assistência, a merenda escolar e as políticas curriculares que asseguram o acesso à cultura e ao conhecimento acumulados pela humanidade. Esse direito busca garantir e orientar o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, Art. 205), no artigo de abertura da seção que trata da Educação Nacional.

A educação domiciliar distorce e destrói o direito à educação. Sob a forma do projeto aprovado, impõe o não direito como direito, a liberdade como direito de abrir mão de um direito sem o qual não há a formação almejada pelo próprio sistema de leis do país, a escolha dos pais como relativização do direito e desresponsabilização do Estado, a liberdade de desamparo legal, liberdade como arbítrio no qual o sujeito abre mão de um direito fundamental, uma liberdade como preceito que orienta o agir pela vontade pessoal e à margem de uma política estatal. Não se pode ter dúvida de que essa “liberdade de escolha”, ou melhor, este puxado de reforma da Educação Básica, foi a alternativa encontrada pelas elites de empresários que controlam o mercado de educação do país para privatizar, ou melhor, para se apropriar dos recursos públicos, quando não lhe foi possível fazê-lo por meio da privatização tornada convencional em escolas norte-americanas e  européias em que, se utilizando do mecanismo de “escolha” os governos transferiram parte dos recursos da educação para a iniciativa privada ou organizações sem fins lucrativos (APPLE, 2005; RAVITCH, 2011). No Brasil, a primeira tentativa de se fazer isso na Educação Básica foi a fracassada proposta de permitir que uma parte dos recursos do FUNDEB fosse transferida para as escolas privadas. Numa sociedade desigual e violenta com grande débito na proteção da criança e do adolescente e com histórico de disparidades educacionais, esse projeto representa ainda desproteção e desamparo a estes sujeitos de direito amparados pelo ECA. Trata-se de um ataque à escola pública, que no final das contas implica na redução dos recursos e no seu subsequente desvio para os interesses privados de grupos que se apropriam cada vez mais dos recursos da educação brasileira.

Em segundo lugar, a aprovação da educação domiciliar se lança ao debate limitado à esfera da sociedade política, no parlamento, e ignora a história da educação e seu progresso que emergiu da educação familiar, da educação desamparada de uma regulação ou financiamento estatal. A escola é resultado do desenvolvimento da sociedade, da cultura e do conhecimento, da Pedagogia e da Didática, e da formação docente. Ela enterrou o ensino domiciliar, quando não se conhecia coisa melhor para o bem da criança e da sociedade, deixando apenas os casos especiais assegurados por decisões judiciais.

Não existe na história uma evolução da educação familiar. Muito menos um movimento que conduz a educação da escola para a casa, para a família. Sua evolução não é outra coisa senão decadência, substituição, desaparecimento. O progresso, a evolução, o movimento existente é da educação familiar para a escola, do ambiente doméstico para o ambiente social da escola. O único retrocesso experimentado foi durante a Idade Média que resultou dos destroços da queda do Império Romano. Na decadência da sociedade medieval é que a humanidade vai retomar o progresso histórico, voltará a caminhar tendo como referência os progressos culturais da Antiguidade Clássica (especialmente Grécia).

A educação domiciliar é retrocesso ao Período Colonial brasileiro (SAVIANI, 2010). Mais ainda, é retroceder ao tempo em que não havia sistemas de ensino, até durante parte do séc. XIX no mundo. Não podendo destruir a educação publica estatal de modo absoluto, querem corroer uma parte dela. O que se tem com esta medida é a explicitação da forma mais livre da barbárie capitalista, ou o capitalismo como ele gostaria de ser, livre de qualquer limite moral.

Não existia, antes de Rousseau, século XVIII, a ideia de infância como fase que exige particularidades educativas próprias da criança, acompanhamento profissional. Modernamente, a socialização mediada pelo professor em ambiente escolar, decorrente da ideia de infância e sob os cuidados de um profissional preparado, é efetivamente experimentada a partir do séc. XX por educadores como Montessori com suas ideias de autonomia e liberdade para o desenvolvimento da criança (CAMBI, 1999). Antes disso, no séc. XIX, a experiência escolar só foi instituída sob a responsabilidade estatal, não mais familiar, porque as crianças estavam sendo devoradas por jornadas de trabalho que ultrapassava as 14h horas diárias e sendo definhadas no seu desenvolvimento físico e intelectual (ENGELS, 2010).

As políticas educacionais em qualquer lugar do mundo asseguram a educação das crianças em ambientes escolares, bem ou mal instalados, nos seus sistemas de leis e garantias fundamentais e em leis educacionais específicas, com fundamento em acordos internacionais, estando entre os mais marcantes o de Jotien, na Tailândia em março de 1990.

Mesmo que se passe parcialmente a formação das crianças para a responsabilidade dos pais em seu domicílio, trata-se de uma ameaça friamente irresponsável ao desenvolvimento do/as pequeninos/as, uma incivilidade, um crime, que seria reprovado e passível de sanções internacionais.

Não tem nada de modernidade, nada de liberdade ou de liberalismo nessa proposta de educação domiciliar. Só o fato de apresentá-la à sociedade já constitui insulto a constituição e à dignidade dos profissionais da escola e à própria criança.

Não se pode aceitar que essa infâmia antipolítica, que tem recheios de maldade e de oportunismo eleitoral, siga em frente no Congresso Nacional. Em vez dessa antipolítica, a educação das crianças precisa é ser fortalecida, ampliada e plenamente assistida com os recursos necessários previstos no Plano Nacional de Educação. Uma importante iniciativa seria revogar a EC-95 que congelou o financiamento da educação por 20 anos.

Sendo um importante instrumento de acesso ao conhecimento e à socialização, a escola estatal ou privada, coisa de instituição especializada, insubstituível, foi logo objeto de apropriação por parte das classes altas, da aristocracia e, modernamente, da burguesia. Estes são rudimentos da história da escola que viria a ser implantada tal como a conhecemos hoje, com crianças organizadas por classes e idade, conteúdos dosados e métodos conforme a natureza do desenvolvimento da infância e a complexidade do conhecimento, em vivência coletiva, com aprendizagem intencional e planejada, mediada pelos professores, fora do improviso doméstico antigo, modernamente laica.

A legislação que assegura a escola para todos é para evitar a violência da desigualdade e da ignorância. A escola é exigência da vida social moderna, um tipo de progresso que não pode ser eliminado da vida cotidiana em nenhum lugar do mundo civilizado.

REFERÊNCIAS

APPLE, Michael. Para além da lógica do mercado: compreendendo e opondo-se ao neoliberalismo. Tradução de Gilka Leite Garcia e Luciana Ache. São Paulo: P&D Editora, 2005.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010.

PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. Tradução de José Severo de Camargo Pereira. 6.ed. São Paulo: Cortez Editora: Autores Associados, 1986.

RAVITCH, Diane. A morte e vida do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegre: Sulina, 2011.

SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2010.

______. Política educacional brasileira: limites e perspectivas. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 24, p. 7-16, junho 2008.