Pela primeira vez a Colômbia votará com absoluta liberdade, diz Samper

Neste domingo (29), os colombianos vão às urnas para eleger o próximo presidente. O candidato que lidera as pesquisas, com 42% de intenção de voto, é o representante da esquerda. Para o ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper, esta é a primeira vez que a população vai votar com “absoluta liberdade”, porque acabou a guerra de mais de 50 anos

Foto: Comunicasul

As últimas semanas foram intensas na Colômbia. Com o avanço da coalizão progressista Pacto Histórico, liderada por Gustavo Petro e Francia Márquez, aumentou também a violência, as ameaças, e os atentados terroristas. Mas este cenário não é novidade para um país que viveu os últimos mais de 50 anos em guerra.

Faz apenas seis anos que a guerrilha e o Estado declararam paz, através da assinatura do Acordo de Paz que deu fim ao conflito armado com as Farc (antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Com isso, se abriram novas possibilidades, e os ventos de paz trouxeram também o crescimento da esquerda no país, que pela primeira vez pode chegar à presidência.

Conversamos com o ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper (1994-1998), que foi também o último secretário-geral da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), até que o organismo de integração foi extinto em 2018. Hoje ele é coordenador do Grupo de Puebla, um fórum político e acadêmico que busca desenvolver uma agenda progressista para a região.

A política na Colômbia é tão violenta quanto complexa, por isso a conversa se deu para além das eleições e tratamos também do Acordo de Paz, a política de drogas, ausência do Estado e violência paramilitar e o processo de integração regional.

Leia a entrevista na íntegra:

Mariana Serafini – Faltam poucos dias para o 1 turno, e a Colômbia parece estar a ponto de explodir, há setores da direita que tentam boicotar o processo eleitoral. Pode nos contar um pouco sobre como estão as coisas, e quais as expectativas? 

Ernesto Samper – Não é uma novidade na Colômbia que existam atos de violência em uma campanha. A Colômbia passou mais de 50 anos em um conflito armado, e nesta campanha se apresentaram episódios de violência muito complicados: por exemplo, a ‘greve armada’ decretada pelo Clã do Golfo, devido à extradição de um de seus comandantes, Dairo Otoniel [durante 3 dias, neste mês, o grupo paramilitar ocupou 73 municípios da região Norte]. Isso foi grave não só porque foi convocada a ‘greve’, mas sim porque o Exército e a polícia não saíram para controlar a paralisação, e os paramilitares tiveram praticamente 5 dias para fazer o que quisessem, sem nenhuma resposta institucional.

Foto: AFP

Fora este episódio de violência, creio que os demais atos de violência têm sido parecidos aos que vimos nos últimos anos. No entanto, é muito importante o que vai acontecer neste primeiro turno porque pela primeira vez, de maneira livre e espontânea, uma quantidade enorme de setores sociais, especialmente indígenas, afrodescendentes, camponeses, sindicatos, vão ter a possibilidade de votar com absoluta liberdade, graças aos Acordos de Havana.

A figura que existia antes [do acordo firmado em 2016] de combinação de formas de luta, fazia com que qualquer manifestação social nas eleições fosse confundida com um ato de proselitismo armado, e isso imediatamente estigmatizava os setores. Esses setores agora vão se expressar livremente no primeiro turno, por isso o Pacto Histórico hoje em dia tem a maioria nas pesquisas.

O outro setor que está sendo enfrentado é o velho establishment colombiano, onde está toda a direita do país: os partidos tradicionais, as elites e as contra-elites, ou seja, no fundo o que vai acontecer no primeiro turno é a decisão entre um país que quer permanecer e um país que quer avançar.

MS – É a segunda vez que os colombianos vão às urnas desde que foi firmado o acordo de paz. E a tendência de votos desta vez parece bastante diferente da primeira, quando foi eleito Iván Duque. O que mudou nestes seis anos com o fim da guerra? 

ES – A votação [na candidatura de esquerda] de quatro anos atrás foi superior à de oito anos, mas acredito que só agora vamos ter a possibilidade de que haja um voto absolutamente livre. Um voto livre, e sem nenhum tipo de restrição. Isso é o mais importante que vai acontecer nessas eleições. Por isso, e porque a esquerda conseguiu pela primeira vez se unir, nas eleições parlamentares [realizadas no dia 13 de março] a esquerda elegeu cerca de 30% dos senadores, entre os do Pacto Histórico e os dos Comunes, que é o partido das antigas Farc. Realmente atingiram 30% do Congresso, e isso jamais havia acontecido na Colômbia. A esquerda nunca passava dos 5%, 6%, 7%, então eu acredito que sim, estão se expressando muito mais livremente pela esquerda, diferente do que acontecia no passado.

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MS – E para o segundo turno, qual é a expectativa?

ES – Eu acredito que Petro vai manter a maioria, mas vai ser uma campanha muito difícil porque a direita vai jogar com tudo. E essa direita tem dinheiro e tem armas. Espero que não seja uma situação conflituosa nessas duas ou três semanas até o segundo turno. Este é o momento mais perigoso das eleições porque já vão estar se enfrentando apenas dois candidatos, representando alternativas distintas.

MS – é uma grande preocupação isso da violência porque a Colômbia tem um histórico, sim? Principalmente contra os candidatos de esquerda quando avançam…

ES – Na Colômbia todos que fazemos política estamos ameaçados. E aconteceram magnicídios, efetivamente, cada vez que há um movimento social em progresso. Sempre aconteceram magnicídios. Aconteceram na época de Álvaro Uribe, no começo do século 20. Aconteceu com Jorge Eliécer Gaitán, Luís Carlos Galán. Espero que não aconteça desta vez. Na campanha em que eu fui candidato à presidência [1994], assassinaram quatro candidatos que estavam competindo neste mesmo pleito. Assassinaram Carlos Galán, Carlos Pizarro, Bernardo Jaramillo e Jaime Pardo. Essa possibilidade existe. Felizmente, já terminaram os atos públicos, porque neste momento já começaram as eleições na Colômbia. No exterior as pessoas já estão votando, que são em torno de um milhão de colombianos. Podemos dizer que as eleições já começaram, e espero que se mantenham.

MS – E com relação às Forças Armadas? Existe uma ameaça de golpe, caso Petro seja eleito?

ES – Não acredito. Acredito que o país esteja vacinado contra os golpes militares. As Forças Armadas são forças muito civilistas, muito alinhadas à Constituição. Aqui não aconteceram ditaduras militares, salvo quatro anos, em meio a 200 anos de República. Mas, estou consciente de que no governo de Duque se politizaram muito as Forças Armadas e nesta campanha aconteceu algo que é inédito na Colômbia. As Forças Armadas nunca interviram no debate político, mas lamentavelmente desta vez o fizeram. O comandante do Exército saiu a dar declarações políticas contra o candidato da oposição. Isso foi muito grave, e não houve uma resposta por parte dos organismos de controle, que poderiam sancionar o General Zapateiro e não o fizeram. Salvo este episódio, eu acredito que não há possibilidade de um golpe militar contra Petro, sobretudo se chegar à presidência. O problema realmente é conseguir chegar, e conseguir chegar vivo.

MS – A chapa Petro e Francia é o que podemos chamar de “chapa pura”, porque ambos tem uma trajetória de luta política no campo progressista. Parece uma aposta corajosa. Como os Liberais devem se posicionar no segundo turno? 

Gustavo Petro e Francia Márquez, candidatos pela coligação Pacto Histórico | Foto: Pacto Histórico

ES – Os Liberais estão divididos. Eu sou do Partido Liberal. Há uma tendência neoliberal, de direita, conservadora, que quer a guerra, e hoje em dia está com o presidente César Gaviria, que é o diretor oficial do partido. Mas há outra tendência, na qual eu estou, que estamos com o campo progressista e estamos apoiando o Pacto Histórico. Segundo as últimas pesquisas, 28% dos Liberais vão votar em Petro, e 25% vão votar em Federico Gutiérrez, estamos divididos.

Agora, por que é curiosa a aliança de Petro com Francia? Porque houve uma consulta prévia, uma consulta suprapartidária nas primeiras eleições, durante as eleições parlamentares no mês de março, e também uma consulta nos partidos a respeito de seus candidatos, e Francia Márquez esteve acima de quase todos os candidatos de todos os partidos. Então foi um ato de coerência, o de Petro, de nomear a Francia para vice, porque é um setor que está muito identificado com a esquerda. E não nos esqueçamos que Petro tem um partido, que é o Colômbia Humana, mas no Pacto Histórico há onze partidos, logo Francia representa uma parte fundamental do Pacto Histórico. Além disso, representa as mulheres, os afrodescendentes, a luta contra a violência, é uma mulher guerreira.

MS – Iván Duque não respeitou o Acordo de Paz, de forma que a violência contra os ativistas sociais foi intensa durante estes cinco anos. Só em 2022, foram assassinados, em média, um ativista a cada dois dias. Quais os desafios do próximo governo com relação ao acordo?

ES – O grande erro de Duque foi que não respeitou os Acordos de Havana como acordos de Estado. Ele pensou que eram acordos de governo e que não teria que cumprir. Os Acordos de Havana foram firmados pelo presidente Juan Manuel Santos, como chefe de Estado, com as Farc. E Duque deu a isso um tratamento de acordos de governo, e não de acordos de Estado.

Segundo, ainda que ele tenha desenvolvido algumas partes do Acordo, alguns projetos produtivos e concentração dos desmobilizados, ele abandonou três setores fundamentais dos Acordos. Que são o tema das terras, não fez sequer uma demarcação de terra, porque este é um governo de latifundiários; o tema da substituição social de cultivos, havia 180 mil famílias cadastradas para substituir seus cultivos de coca e se deu apoio a somente 10% ou 15%, e isso explica também porque mataram tantos líderes sociais.

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Muitos dos líderes sociais que estão sendo assassinados na Colômbia são camponeses que tomaram a decisão de abandonar seus cultivos de coca e por isso são sacrificados pelos narcotraficantes, pelas dissidências, pelos cartéis e pelos paramilitares, justamente porque querem abandonar as drogas.

E terceiro, as vítimas, a reparação moral e econôm+ica às vítimas é o que está mais atrasado nos Acordos de Paz. De dez milhões de vítimas, não foram atendidas ainda mais que um milhão e meio. Então creio que estes são os três grandes sacrilégios que Duque cometeu ao abandonar os Acordos de paz.

MS – Essa violência contra os camponeses, olhando de fora, tenho a sensação de que eram regiões antes protegidas pelas Farc, e no momento que as Farc se retiram, muitos camponeses ficam vulneráveis aos paramilitares. Foi isso que aconteceu?

ES – Sim. As Farc tinham uma presença ativa em 180 municípios. Destes 180, o ELN [última guerrilha ativa da Colômbia] parece já ter chegado em uns 80 municípios. Por que o ELN chegou nestes municípios? Porque chegaram o Cartel do Golfo, as dissidências das Farc nestes municípios? Porque não se cumpriu os Acordos de Havana que estabeleciam que o governo teria presença social nestas cidades.

Foto: ELN

Nós, na minha Fundação, estamos trabalhando esses territórios que foram, de alguma forma, abandonados. E é nestes territórios, Arauca, Putumayo, Cauca, Nariño, Catatumbo, é onde estão voltando os conflitos armados porque o governo aumentou sua presença militar nesses territórios, mas não tem havido presença social. De forma que sim, há dois atos de paz que se mantiveram nestes quatro anos que é necessário destacar: primeiro, a desmobilização e desarmamento de 13 mil pessoas das Farc, isso é um ato de paz. Segundo, a criação da Justiça de Transição, eu considero isso também um ato significativo. Mas é claro que apesar destes dois atos de paz, os Acordos de Paz não foram cumpridos.

MS – Respeitar e implementar o acordo de paz de fato é algo que não interessa só à Colômbia, uma vez que garantir a paz na Colômbia é garantir que a América Latina seja um ambiente de paz… 

ES – Sim, é verdade. E de fato, dois dos problemas da Colômbia relacionados à região é que praticamente acabou a relação com a Venezuela, que era muito importante principalmente para o manejo da guerrilha que vive na zona de fronteira, e acabou as relações com Cuba, ao pedir extradição dos negociadores do Exército de Libertação Nacional [ELN], de tal maneira que foram dois passos equivocados que vão afetar o reestabelecimento das relações.

Mas estou de acordo que os Acordos de Paz de Havana, de alguma maneira, são uma coroação de algumas dificuldades que a região tinha e que impediam que se concretizasse um conceito de paz como um dos conceitos fundamentais da região.

MS – Uma questão muito delicada da Colômbia é a questão das drogas. Há anos, o país sofre com intervenção militar dos EUA com a desculpa de “Guerra às drogas”. Existem saídas para este problema que não seja a militarização?

ES – Claro! A saída é a legalização das drogas, que é o que vem sendo proposto e de alguma maneira está se dando nos Estados Unidos. Os Estados Unidos já praticamente legalizaram a maconha, enquanto isso nós seguimos aqui enfrentando as dificuldades que vêm com a luta contra as drogas.

Quando eu estava na secretaria da Unasul, apresentamos uma proposta alternativa à luta contra as drogas, na qual assinalávamos que é necessário proteger os agentes mais vulneráveis da cadeia das drogas. Há que se dar oportunidade de substituição de cultivo aos camponeses, há que se proteger os consumidores, estabelecendo uma dose mínima. Há que se criar condições aos microtraficantes, enfim… para nós, a política contra as drogas tem sido, fundamentalmente na América Latina, uma política de confronto, interdição, de proibição, que obedece aos interesses dos Estados Unidos. Mas não há uma política de descriminalização.

MS – A Colômbia não integrou o ciclo progressista dos anos 2000, poderia agora ser uma peça para a retomada deste ciclo que se fortaleceu com a chegada de Boric no Chile e o retorno do MAS na Bolívia… 

ES – Sim… mas é necessário olhar o contexto, todo mundo quer a integração. Mas há duas concepções de integração na região: a concepção dos governos de direita, para os quais a integração é com os Estados Unidos e com tratados de livre comércio; e a integração como construção da região,que é a que queremos nós dos setores progressistas.

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Há lideres que vão retomar o conceito de integração como construção da região, sem dúvidas. Alberto Fernández, na Argentina, Lula, no Brasil, quiçá Andrés Manuel López Obrador [no México], ainda que ele tenha um olhar sobre os Estados Unidos, e seguramente Boric no Chile, Luís Arce na Bolívia, e também a Venezuela.

No entanto, há novos dirigentes progressistas que têm que fixar sua posição sobre uma nova integração, entre os quais estão Boric, Pedro Castillo no Peru, e estaria Petro na Colômbia. Estes são os novos dirigentes progressistas que teriam que formular qual é o seu ideal de integração, que pode ser que não seja o mesmo dos velhos fundadores da Unasul. E nesta tarefa estamos trabalhando através do Grupo de Puebla, onde eu estou como coordenador, tratando de buscar uma nova leitura de integração que de alguma maneira aproxime os novos dirigentes progressistas.

MS – Quais os desafios para a integração hoje, depois de uma pandemia que atingiu duramente a América Latina e que diversos países tiveram suas economias devastadas por governos neoliberais? 

ES – Realmente é uma pena a desintegração que tivemos precisamente durante a pandemia. A América Latina nunca esteve tão desintegrada como durante a pandemia, e nunca havia sido tão necessária a integração como neste período de pandemia. Isso explica porque 32% das mortes na pandemia por Covid-19 aconteceram na América Latina, apesar de que representamos apenas 8% dos habitantes do mundo. Esse é o efeito de não estarmos integrados.

Mas a conclusão da pandemia não pode ser nem que voltemos ao modelo de desenvolvimento que tínhamos antes, que fracassou; nem que sejam as vítimas da pandemia que vão pagar o custo da pandemia. Isso não pode ser.

Por isso, o pré-requisito para a integração depois da pandemia é que mudemos o modelo de desenvolvimento por um modelo mais solidário, e que façamos reformas econômicas para que paguem, os que têm como pagar, a pós pandemia e não os setores que foram afetados pela pandemia. A isso nos dedicamos agora, a trabalhar nessas duas direções. E sou otimista porque há ventos progressistas na região. Espero que estes ventos terminem na reativação da Unasul, e em um esforço maior da Celac [Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos] para se integrar.

MS – A Colômbia foi o primeiro país a deixar a Unasul, que logo depois se enfraqueceu até ser extinta. Hoje a Colômbia poderia cumprir um papel de retomada da Unasul? E a Unasul tem possibilidades de ser reativada?

ES – Lamento que essa decisão de sair da Unasul tenha sido tomada quando eu era secretário geral, sendo eu colombiano, mas acredito que sim há possibilidades na região – não só na Colômbia – de entender que é melhor estarmos todos integrados como região, do que integrados com os Estados Unidos.

MS – Recentemente o senhor lançou o livro “Grito Latinoamericano”, que traz uma proposta de agenda progressista para a região, pode nos contar um pouco sobre essa agenda? 

ES – São 5 ou 6 elementos da agenda progressista: o primeiro é o tema da desigualdade, ou seja, o problema não é a pobreza, o problema é a desigualdade. Precisamos reduzir as assimetrias sociais que existem na região. Assimetrias de campo e gênero, assimetrias trabalhistas. A região precisa corrigir essas profundas diferenças. O segundo tema é o valor. Temos que gerar valor e esse valor se gera com cadeias includentes de valor. Não podemos seguir com um modelo extrativista de desenvolvimento, vendendo o que temos debaixo da terra, ou em cima da terra. O terceiro fator está ligado à construção da cidadania, o problema da integração não pode ser só construir ferrovias e pontes, mas sim construir o conceito de cidadania latino-americana ou sul-americana. O quarto é uma transição ecológica. Temos que começar na região uma transição ecológica frente às mudanças climáticas, frente à questão de soberania alimentar. E por último, a integração. Para fazer tudo isso precisamos estar integrados. Nisso consiste o modelo solidário de desenvolvimento que estamos promovendo através do Grupo de Puebla.

Assistir a seguinte o comentário de Mariana Serafini

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