Sanções econômicas contra a Rússia vão aumentar a fome global
A Rússia é o maior exportador de fertilizantes do mundo, e a Bielorrússia, que também está enfrentando sanções ocidentais, também é um dos principais fornecedores – eles representam em conjunto mais de 20% do fornecimento global.
Publicado 04/06/2022 17:28 | Editado 05/06/2022 12:18
Em uma clara inversão de responsabilidades, os Estados Unidos e seus aliados fazem alarde sobre uma iminente catástrofe de alimentos provocada pela guerra na Ucrânia e tentam jogar a culpa sobre a Rússia, que estaria impedindo as exportações ucranianas de grãos ao bloquear os portos daquele país no Mar Negro. É mais uma forma de propaganda anti-Rússia com o objetivo de aumentar o seu isolamento e jogar todos os problemas criados pela guerra nas costas de Putin. A realidade, entretanto, é mais complexa e, como em tudo nessa guerra, é possível ver a mão dos Estados Unidos por trás de mais essa catástrofe.
Agindo de bom moço, os Estados Unidos estão prometendo um megapacote de ajuda global contra a fome. Em reunião dos ministros das Finanças do G7, realizada em Bonn, na Alemanha, em 18/5, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, expressou sua preocupação com o aumento da fome no mundo. Segundo a secretária, “A guerra da Rússia contra a Ucrânia agravou o problema da segurança alimentar para a população de todo o mundo, especialmente nos países emergentes e em desenvolvimento”. Conforme noticiou o jornal Valor Econômico (19/5), “O governo dos EUA e instituições financeiras internacionais, que incluem o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, prometeram dezenas de bilhões de dólares em alimentos e fertilizantes para os países mais pobres, sob um plano de ação conjunta para aliviar a crescente crise mundial de alimentos provocada pela disparada dos preços”.
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Para o G7, essa crise alimentar se deve principalmente ao fato de a “Rússia estar bloqueando as rotas de saída para os grãos da Ucrânia”. Mas isso não é verdade. Conforme destacou John Ross em artigo publicado no Globetrotter, do Independent Media Institute, “Esta declaração do G7 deliberadamente deturpou a atual crise alimentar global. Em vez de tentar resolver essa crise, os EUA e o restante do G7 aproveitaram a oportunidade para promover sua propaganda na guerra da Ucrânia. Certamente, as restrições de exportação da Ucrânia pioram o problema global de alimentos. Mas não é a principal causa da situação em deterioração. Uma causa muito mais poderosa são as sanções ocidentais impostas às exportações da Rússia. A primeira razão para isso é que a Rússia é um exportador muito maior de itens alimentares essenciais e outros produtos em comparação com a Ucrânia. A Rússia é o maior exportador mundial de trigo, representando quase três vezes mais exportações mundiais do que a Ucrânia, 18% em comparação com 7%. Segundo, e ainda mais importante, é a situação com fertilizantes. A Rússia é o maior exportador de fertilizantes do mundo, e a Bielorrússia, que também está enfrentando sanções ocidentais, também é um dos principais fornecedores – eles representam em conjunto mais de 20% do fornecimento global. Os preços dos fertilizantes já estavam aumentando antes da guerra da Ucrânia devido aos altos preços dos combustíveis – a produção de fertilizantes depende fortemente do gás natural – mas as sanções do Ocidente, que impedem a Rússia de exportar fertilizantes, pioraram a situação. David Laborde, pesquisador sênior do Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas Alimentares, afirma: “a maior ameaça que o sistema alimentar está enfrentando é a interrupção do comércio de fertilizantes”. Isso ocorre porque, “O trigo afetará alguns países. A questão dos fertilizantes pode impactar todos os agricultores em todo o mundo e irá causar o declínio na produção de todos os alimentos, não apenas trigo”.
É preciso notar, ainda, que por mais que a guerra na Ucrânia esteja contribuindo para o avanço da fome no mundo, há outros fatores que têm pesado muito mais no aumento da insegurança alimentar global. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de “Amazônia: Por uma economia do Conhecimento da Natureza”. destaca alguns deles.
Segundo o pesquisador, o maior problema não está na distribuição, como leva a supor a tese de que o bloqueio dos portos da Ucrânia seria a principal causa do aumento da fome no mundo. Para ele, “O primeiro problema é que embora haja grãos suficientes no mundo, não é por restrições ao comércio que eles não chegam à mesa de quem deles necessita. Há grãos suficientes, mas é cada vez menor a proporção destes grãos que se destinam diretamente à alimentação humana. Em 2030, apenas 29% da colheita global dos dez produtos agrícolas mais cultivados globalmente serão consumidos como alimentos nos países onde são produzidos. Em 1960 este total era de 51%”.
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O segundo problema, aponta o autor, é que “As técnicas que favoreceram o avanço dos rendimentos agrícolas provocaram, ao mesmo tempo, uma dupla concentração. Por um lado, poucos produtos (arroz, trigo, milho e soja) entram com mais de 50% da oferta global de calorias. A cesta alimentar mundial é composta, para a maior parte das pessoas, por poucos produtos. Além disso, 60% da produção concentra-se em alguns poucos países. E, nestes países, a oferta é por sua vez concentrada regionalmente. Perdas de safra em qualquer destas regiões acabam tendo um impacto global de alto risco para a segurança alimentar mundial”. Ainda segundo o autor, “Os ganhos na produtividade agropecuária, decorrentes da Revolução Verde dos anos 1960 e que tanto contribuíram para a redução dos preços alimentares e a diminuição da fome no mundo, acabaram por ampliar, algumas décadas após sua emergência, os riscos de insegurança alimentar”.
Finalmente o terceiro problema apontado por Abramovay é “nestas regiões em que a produção agrícola se concentra, os impactos das mudanças climáticas fazem-se sentir de maneira cada vez mais drástica. As secas que atingem neste momento a Índia, a França, o rio Colorado nos EUA e que vão provocar prejuízos agrícolas, só em 2022, de R$ 70 bilhões no Mato Grosso do Sul, no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul são um fenômeno global com frequência crescente. Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), lançado em fevereiro, mostra que 75% da área colhida global sofreram perdas recentes de rendimento por causa da seca. Documento recente da Convenção de Combate à Desertificação das Nações Unidas estima que nada menos de 1,9 bilhão de pessoas foram atingidas por secas nos últimos vinte anos”.