Bancada ruralista fez lobby para trocas na Funai, mostra planilha

Levantamento obtido pelo jornalista Rubens Valente, da Agência Pública, mostra que o deputado Alceu Moreira (MDB-RS) e a senadora Soraya Thronicke (União-MS) indicaram nomes anti-indígenas; mudanças ocorreram após posse do delegado Marcelo Xavier, em 2019.

Alceu Moreira presidiu CPI da Funai e do Incra, que criminalizou indígenas e seus defensores. Foto: Lula Marques/Agência PT

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da bancada ruralista, a maior do Congresso, interferiu diretamente nas trocas promovidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a partir de 2019, quando o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier tomou posse. É o que mostra uma planilha obtida pelo jornalista Rubens Valente, da Agência Pública.

O documento foi produzido pela servidora bolsonarista Adriana Ariadne Albuquerque Marques, que classificou os ocupantes de cargos diretivos como “a favor” e “contra o governo”. Na época, ela coordenava o gabinete da  Diretoria de Administração e Gestão (Dages), em Brasília.

Um grupo de onze servidores está marcado em vermelho. Na legenda do documento, é indicado como ação: “Retirar com urgência da CR”, em referência às coordenações regionais. De acordo com a Pública, pelo menos oito desses servidores foram substituídos nos meses posteriores a setembro, quando ocorreu a confecção do arquivo.

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No campo das sugestões para substituir os coordenadores “contrários” ao governo, a planilha listou dois indicados pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), na época presidente da FPA, e um pela senadora Soraya Thronicke (União-MS), também integrante da frente. O negacionista Moreira presidiu a CPI da Funai no Congresso.

Planilha obtida pela Agência Pública mostra indicações na Funai. (Imagem: Reprodução)

INDICADO POR MOREIRA PROMOVEU ARRENDAMENTO DE TI A NÃO INDÍGENAS

José Carlos Gabriel, que consta como indicação de Moreira, foi condenado naquele mesmo ano por promover arrendamento de terras indígenas a pessoas não indígenas na Reserva Nonoai, no norte do Rio Grande do Sul. A área de 20 mil hectares é habitada pelos povos Guarani e Kaingang.

Conforme o Ministério Público Federal (MPF) em Passo Fundo, ele constituiu uma cooperativa de fachada, ao lado do cacique da TI, José Orestes do Nascimento, e do seu filho, Erpone Nascimento, que é ex-prefeito do município de Gramado dos Loureiros.

A Justiça Federal condenou o trio a indenizar a comunidade em R$ 4.146.562,40, em virtude do arrendamento. José Carlos Gabriel também foi obrigado a indenizar os moradores em mais R$ 547.153,00, por ter se apropriado dos valores correspondes a meia saca de soja por hectare, cobrados pelos seus supostos serviços de assessoria.

A segunda indicação de Moreira seria, segundo a reportagem, para a CR Guarapuava (PR). Quem assumiu a regional, em dezembro de 2019, foi o capitão reformado do Exército José Luiz Tusi Perazzolo. A troca foi uma das inúmeras que geraram descontentamento por parte de indigenistas, no processo de militarização e sucateamento do órgão, promovido sob Xavier, como lembrou o G1.

ALIADO DE SORAYA FOI AFASTADO PELA JUSTIÇA POR DECLARAÇÕES RACISTAS

Soraya Thronicke sugeriu um nome igualmente controverso para a CR do Mato Grosso do Sul. José Magalhães Filho, outro militar reformado, foi afastado diversas vezes pela Justiça Federal em virtude de opiniões e falas preconceituosas, como contou o Correio do Estado. Em entrevista à TV Morena, afiliada da Rede Globo no estado, ele chegou a defender a integração de indígenas a fim de “namorar com um pretinho, um branquinho”.

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Uma das ações foi impetrada pelo advogado indígena Luiz Henrique Eloy Amado, da etnia Terena. Na decisão, a juíza Janete Lima Miguel citou “as diversas declarações prestadas pelo coordenador” e destacou que Magalhães ofende justamente o grupo de pessoas que é protegido pela Funai, colocando “em sério risco a representatividade da minoria e garantia dos direitos constitucionais de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas”.

O ex-coordenador concorreu a deputado estadual em 2018 pelo PSL, mas não foi eleito. Ele acabou exonerado do cargo em agosto de 2020, depois que o Palácio do Planalto prometeu retaliar parlamentares governistas no Senado que votaram para derrubar o veto presidencial sobre congelamento da folha do funcionalismo público até 2021.

Militar reformado foi indicado por senadora. (Fotos: Isac Nóbrega/PR e Reprodução/TV Morena)

PUBLICAÇÃO RELATA RETROCESSOS DA FUNAI SOB XAVIER E BOLSONARO

Delegado da Polícia Federal, Xavier substituiu o general Franklimberg de Freitas. Além de alinhar a Funai aos interesses do agronegócio, ele colocou militares e policiais nas chefias e em cargos técnicos, prática que já havia começado na gestão de seu antecessor.

O processo foi marcado por “perseguição a servidores de carreira e a sua substituição por profissionais sem experiência alguma com a política indígena”, segundo a publicação “Fundação Anti-Indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, divulgada pela Indigenistas Associados (INA) e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Atualmente, das 39 CRs no país, “apenas duas contam com chefes titulares servidores do órgão”. Ainda segundo o estudo, já foram nomeados 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública.

Elaborado após três anos de monitoramento conjunto, o dossiê traz uma análise detalhada de documentos oficiais, colhidos desde o início de 2019, depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil.

O lançamento aconteceu em junho, mesmo mês em que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados no Vale do Javari, no Amazonas. Pereira havia sido exonerado da Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) em outubro de 2019, após coordenar uma operação que expulsou garimpeiros da terra indígena Yanomami, em Roraima.

AUTORA DA PLANILHA SE REFERIU A BRUNO E DOM COMO “DÉBI & LÓIDE”

Quando o desaparecimento foi noticiado, a autora da planilha ironizou o assunto pelo menos duas vezes, como lembrou a Pública. No dia 13, ela compartilhou um meme da internet que comparava os desaparecidos à dupla da comédia de cinema Debi & Lóide. “Partiu aventura na Amazônia”, dizia. A servidora colocou emojis dando risadas e brincou: “Ô povo ruim”. No mesmo dia, publicou um meme indagando “onde está Wally”.

Depois que os corpos foram encontrados, Adriana Marques escreveu no Facebook, no dia 16 de junho, que “os esquerdistas queriam uma nova Mariele!”. Após reclamar de suposto “uso político” das mortes pela esquerda, completou que “não existem anjos nesse caso (nesse caso, talkey) e muito menos defensores de causas ambientais, todos são culpados e cada um arcou com a sua irresponsabilidade”, sem explicar ou provar o que estava insinuando.

De Olho nos Ruralistas publicou há dois anos uma reportagem sobre o histórico do próprio presidente da Funai, Marcelo Xavier, contra os interesses dos povos indígenas: “Esplanada da Morte (II) — Chefe da Funai foi aliado de invasores de terra indígena no MT“.

Mariana Franco Ramos é repórter do observatório De Olho nos Ruralistas