Governo do Paraguai usa narcos para assassinar agricultores em Curuguaty

Dois anos após ter vetado a lei de regularização das terras da comunidade, presidente Marito se aproveita do crime para atentar contra a reforma agrária

Moradores da comunidade rezam pelos camponeses mortos (Reprodução)

Dois agricultores foram mortos e um ficou gravemente ferido em Marina Kue, Curuguaty, no Paraguai, na última quinta-feira (18), na mesma comunidade em que há dez anos as forças golpistas se utilizaram do assassinato premeditado de 17 pessoas (11 moradores e seis policiais) para derrubarem o presidente Fernando Lugo, da Frente Guasu, e implantarem um Estado serviçal ao agronegócio e às transnacionais.

Conforme os habitantes da comunidade, dois anos após ter vetado a lei de regularização das terras da comunidade, “que poderia servir de exemplo para todos”, o presidente Mario Abdo Benítez (Marito) tenta se aproveitar do crime para, através dos meios de comunicação, atentar contra a justiça fundiária.

Segundo alertou a presidente da Associação de Familiares e Vítimas do Massacre de Curuguaty, Martina Paredes – que teve dois irmãos executados na carnificina -, “há dez anos recebemos promessas das autoridades, com o presidente chegando a declarar em 2020 que iria dar a terra aos seus verdadeiros ocupantes, o que vetou dois dias depois”. “Ouvimos muitas conversas, mas nada concreto ou assistência técnica. Mesmo o gerador e o transformador foram pagos do nosso próprio bolso. Apesar disso, não perdemos a paciência. Há oito dias apresentamos um novo projeto de lei como forma de cuidar do meio ambiente e viabilizar o processo de assentamento das 180 famílias em dois mil hectares. É isso o que consideramos urgente e necessário”, sustentou Martina.

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Da mesma forma que interesses a serviço do latifúndio armaram no dia 15 de junho de 2012 o sangrento “conflito” em Curuguaty, agora o objetivo é inviabilizar a reforma agrária no país em que 5% das famílias controlam 86% das terras cultiváveis. É este rico solo e a exploração da sua mão de obra que alimenta cerca de 80 milhões de pessoas em todo o mundo, mantendo parcela expressiva da sua população de sete milhões na fome e na miséria.

Latifúndio quer mais mortes

Tentando transformar as vítimas em culpados, o latifundiário Felino Amarilla, líder do Partido Liberal, disse que “o massacre tem apenas uma equipe responsável, a Frente Guasu, seu nome é Carlos Filizzola, ministro do Interior, e Fernando Lugo, presidente da República. Este é o país dos filhos da puta irresponsáveis, agora felizmente eles se matam. Espero que matem mais. Espero que haja mais mortes”.

Na opinião de Amarilla, é um “disparate político” transformar a área protegida, numa em que “todas as árvores foram roubadas ou desapropriadas e passá-las aos que assassinaram policiais para plantar maconha”.

Membro do Comitê de Igrejas, o monsenhor Mario Melanio Medina desmentiu a versão do arquirreacionário liberal, frisando que “os membros da Frente Guasu não estiveram envolvidos em nada antes ou depois do massacre. Estávamos acompanhando vários projetos desse grupo. O massacre foi para tirar Fernando Lugo do poder, foi por interesses políticos”, esclareceu.

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A verdade dos fatos, reiterou o líder religioso, é que “temos onze reclamações e ninguém presta atenção. A Polícia diz que não pode fazer nada porque o Ministério Público deve fazê-lo. O problema são Néstor Castro e Rubén Villalba, a Frente Guasu não tem nada a ver com isso. Fizemos onze reclamações e eles não fazem nada”.

O monsenhor reforçou que há uma proposta de solução que o governo “sabe muito bem”, particularmente a Presidência do Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e Territorial (Indert), pois foi levado um Projeto de Lei para ser apresentado à Câmara dos Deputados. Diante deste encaminhamento e da postergação inadiável, enfatizou, “há culpados materiais e morais”, que vão além do grupo comandado por Nestor Castro.

Nestor Castro se vendeu aos narcos

“A trama já estava escrita, só faltava colocar os nomes. Nós alertamos as autoridades. Ao todo foram onze denúncias sobre as irregularidades. E não nos deram ouvidos porque iria acontecer o que mais lhes convinha”, alertaram membros da comunidade, frisando que “Nestor Castro infelizmente abandonou a luta para se aliar ao crime, vendendo 60 hectares a um narcotraficante”. Mas nunca se fez nada, esclarece um morador que, “ameaçado pelo terror”, prefere o sigilo, “pois as autoridades locais estão metidas até o pescoço com essa gente, são um joguete dos narcos”. Uma destas expressões parlamentares, revela, é a deputada Maria Cristina Villalba, apontada como “a Madrinha”, por seus fortes vínculos com o crime organizado.

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Em março, um manifesto da Associação de Familiares e Vítimas do Massacre de Curuguaty já alertava para os riscos iminentes do sangue derramado. “As ações de violência e intimidação que promove um grupo e a situação de insegurança em que vive a comunidade perseguida pelo narcotráfico chegaram a extremos preocupantes. Neste momento a escola se encontra tomada por um grupo que recusa qualquer diálogo pacífico e as crianças não podem receber aulas. Quanto aos bens materiais, a loja de ferramentas da comunidade foi derrubada com muita violência, fazendo com que as crianças chorassem tentando defender e levantar o que sabiam ter custado muito trabalho aos pais. Eles fizeram o mesmo com o letreiro da biblioteca. A casa da Pastoral Betania foi violada e os pertences jogados fora, sendo abrigados usurpadores nela. Assim, as crianças se encontram violadas em todos os seus direitos”, condenou o documento.

“Avisamos a Polícia, o Ministério do Interior e até o presidente da República que não agiram, esperando que se matassem primeiro. Agora, depois da tragédia, enviam 400 ou 500 policiais. Para quê?”, questionou Guillermina Kanonnikoff, ex-presa política paraguaia da ditadura pró-estadunidense de Alfredo Stroesnner (1954-1989) e referência do movimento de solidariedade à comunidade de Marina Kue.

“Agora a primeira questão em pauta é a regularização imediata das terras, recuperar as pontes que estão destruídas, tornando viáveis os caminhos e o escoamento da produção. Cruelmente, mataram Osmar Benítez, que era quem com seu tratorzinho, trabalhando duro, abria os caminhos. Precisamos dar toda a força possível para a Associação liderada por Martina Paredes, a fim de que prospere e seja uma referência para todos os paraguaios”, assinalou Guillermina.

Solidariedade militante

Acompanhando há anos a assistência à comunidade, a irmã Maria Barreto, considerou “extremamente triste que volte a se repetir esta situação de violência, pois a maioria dos moradores, reunidos em torno à Associação de Familiares e Vítimas, busca a construção de uma comunidade modelo, baseada em valores cristãos, no cuidado e na convivência harmônica com a natureza”. Infelizmente, atestou, “foram denúncias e mais denúncias de coisas que não são inventadas, são visíveis dia e noite, sem que não houvesse resposta”.

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Mais intensamente, revelou Maria Barreto, temos estado quinzenalmente por Marina Kue junto com dona Guillermina, onde ficávamos três ou quatro dias, “vendo com os nossos próprios olhos o vandalismo inadmissível promovido pelo grupo de Nestor Castro”. “Tudo já se havia denunciado, desde a venda de árvores a agressões. Há fotos e vídeos. O que aconteceu é responsabilidade das autoridades que nada fizeram, pois já haviam sido advertidas. Movida pelo dinheiro, a Justiça não funciona ou chega muito tarde no Paraguai, fazendo com que continuemos perdendo vidas humanas”, apontou.

Por isso, acrescentou a religiosa, “seguiremos caminhando e não baixaremos os braços e nem as bandeiras na busca da sociedade que sonhamos”. “Continuaremos lutando porque o sangue dos caídos, dos camponeses que cultivam e amam a terra, não pode ser em vão”, concluiu.

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