Lula e o “mercado”

Falsidade do discurso econômico do “mercado” já foi demonstrada. Políticas de austeridade foram fartamente implementadas no mundo nos últimos quarenta anos. Seus resultados foram o aumento da desigualdade, da pobreza e a ascensão de governos autoritários.

No dia 11 de novembro, Lula teve um encontro com deputados para tratar de assuntos relacionados à transição governamental. Em seu discurso, o presidente eleito elencou as prioridades do futuro governo. Emocionado, chorou enquanto proferia a seguinte frase: “se quando eu terminar esse mandato, cada brasileiro tiver tomando café, almoçando e tiver jantando outra vez, eu terei cumprido a missão da minha vida”.

Enquanto assistia àquele momento, pela televisão de minha casa, muitas coisas me passavam pela cabeça. Tratava-se, sem dúvidas, de um acontecimento histórico. Eu via ali o aspecto humano de um senhor de 77 anos, que passou fome na infância, tornou-se o maior líder popular da história de seu país e, após ter sido injustamente perseguido e preso, voltava à presidência da República recebendo 60 milhões de votos. Sua prioridade, entretanto, continuava a ser a mesma: combater a pobreza da qual foi vítima.

Fui tomado por um sentimento de esperança. Havia me acostumado a ver, nos últimos quatro anos, um presidente que debochava das maiores tragédias. Para ilustrar, cito apenas um exemplo. No dia 4 de março de 2021, 1.786 pessoas perderam sua vida para a Covid-19 no Brasil. O país batia — pelo 43° dia consecutivo — recorde na média diária de mortos pela doença. Atônito, na mesma sala e na mesma TV, assisti ao discurso de Bolsonaro: “Temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.

A diferença é nítida. Gritante. Entretanto, fui surpreendido ao abrir os portais de notícias ao longo do dia. O discurso de Lula havia sido mal recebido pelo “mercado”. Economistas de bancos e corretoras de investimentos demonstravam sua preocupação com o risco de rompimento do teto de gastos e a ameaça à estabilidade fiscal do país. Com o suposto aumento desenfreado dos gastos do governo, a dívida pública e a inflação cresceriam. Os mais atingidos seriam justamente os mais pobres.

Lembrei-me de um discurso proferido no Senado Federal, no dia 12 maio de 1888. Estava sendo debatida a abolição da escravatura no último país das Américas onde esse tipo de trabalho ainda era legalizado. O Senador Paulino de Sousa, ele mesmo um senhor de escravos, justificou seu voto contrário à Lei Áurea da seguinte forma: “A proposta que se vai votar é inconstitucional, antieconômica e desumana porque deixa expostos à miséria e à morte os inválidos, os enfermos, os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger”.

As semelhanças são óbvias. Assim como os senhores de escravos em outros tempos, os bancos e corretoras de investimento de hoje em dia — chamados eufemisticamente de “O mercado” — defendem seus interesses como se fossem o melhor para toda a nação. Escondem, por trás de um discurso com verniz “técnico”, o fato de terem lucros altíssimos enquanto mais de 30 milhões de pessoas passam fome. Não têm vergonha de dizer, ainda por cima, que fazem isso pensando nos mais pobres.

A falsidade do discurso econômico do “mercado” já foi demonstrada. Políticas de austeridade — baseadas em diminuição de impostos sobre os mais ricos, privatizações e cortes de gastos públicos em saúde, educação, assistência social, moradia, transporte, etc. — foram fartamente implementadas no mundo nos últimos quarenta anos. Seus resultados foram o aumento da desigualdade, da pobreza e a ascensão de governos autoritários.

Nas últimas eleições, o Brasil tomou uma decisão. A maioria da população decidiu que quer não apenas viver em um regime democrático, mas também em um Estado que tenha papel ativo na execução de políticas públicas, no combate à pobreza e na promoção do desenvolvimento econômico. Para que isso seja possível, é necessário enfrentar os interesses do “mercado”. Não tenhamos medo. Assim como os senhores de escravos de outrora, a história não reserva um bom lugar a quem os defende.

Autor