Detentores da dívida se beneficiam da contradição entre juros altos e ajuste fiscal

A remuneração da dívida pela Selic é um fenômeno brasileiro, que gera a contradição de exigir economia do governo, enquanto aumenta sua dívida.

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Os números divulgados na segunda-feira (29) pela Secretaria do Tesouro Nacional, vinculada ao Ministério da Fazenda, mostram a dimensão do crescimento da Dívida Pública Federal (DPF). O montante de emissões de títulos da dívida elevou seu estoque total em 2,38%, passando de R$ 5,89 trilhões, em março, para R$ 6,03 trilhões, em abril. Trata-se de um aumento nominal de R$ 140,12 bilhões.

Embora o mercado financeiro exija controle rigoroso dos gastos do governo para pagamento desses títulos, alimenta a contradição de que o pagamento da DPF não é gasto, portanto não entra no orçamento público. 

O sociólogo Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor técnico do Dieese, explica ao Portal Vermelho os “efeitos perversos” dessa lógica contraditória, em que os juros sobre a DPF afetam intensamente os gastos públicos, mas são ignorados pelo mercado financeiro. 

Isso ocorre, porque, de uma certa forma, o Banco Central neutraliza a política fiscal do governo ao definir uma taxa Selic (juros básicos da economia) extorsiva e fora de qualquer padrão internacional. Os serviços da Dívida Pública Federal (DPF) pagos pelo Governo Federal se tornam gastos enormes, estimulados pelos juros altos incidentes sobre ela. “Sempre que a dívida pública aumenta, aumenta o gasto do estado, portanto aumenta a dívida”, pondera Clemente. 

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Jabuticaba

“No caso brasileiro, a política monetária é um instrumento para controlar a inflação, mas tem uma característica de, simultaneamente, remunerar a dívida pública, para aqueles que detém títulos”. 

Para ele, essa sinergia entre a definição da política monetária pelo BC e a cobrança por política fiscal austera pelo mercado pode ser qualificada como “hipocrisia, em termos”, por exigir que o devedor economize, enquanto aumenta os juros, e, portanto, os gastos com a dívida. “Porque, para eles [os detentores dos títulos da dívida], está tudo certo. No fundo, eles se beneficiam desta contradição, de ambas as formas”, explicou. 

No caso brasileiro, a política monetária é um instrumento para controlar a inflação, mas tem também a característica de, simultaneamente, remunerar a dívida pública, para aqueles que detém seus títulos. Esta seria uma fruta que só existe aqui, cultivada pelo neoliberalismo brasileiro, já que a Selic não precisaria ter essa função.

“Essa contradição é do nosso sistema. Em outros países, não é assim que funciona. Porque a política monetária não necessariamente remunera a dívida pública. São outras taxas que compõe seu custo. Mas aqui, no caso brasileiro, a Selic é uma base da remuneração dos títulos”, comparou Clemente. 

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Dívida também é gasto público

Na medida em que o BC aumenta o freio da economia, que são os juros, aumenta também o custo da dívida pública. Para não pagar mais caro pelos serviços correntes da dívida, o governo precisaria emprestar mais, por isso emite mais títulos para vender. 

“Portanto, o orçamento público tem que gastar mais. Na visão de quem propõe essa abordagem, – de que você tem que fazer um controle dos gastos públicos -, a DPF não faz parte desse gasto público, a ser controlada. Ela tem que ser paga no limite que tem. Portanto, o governo tem que ajustar todos os demais orçamentos para fazer frente àquilo que o orçamento tem que pagar, que inclui a DPF”, diz Clemente, explicando a contradição desse sistema.

“Para o controle de gastos, a dívida não entra, mas ela entra quando tem que organizar o orçamento. Fica essa contradição, que é do nosso sistema”, diz o sociólogo. Segundo Clemente, a preocupação do mercado, é que a dívida pública não chegue a um patamar que se torne inviável. “Mas de outro lado, tem esse efeito perverso, de que, sempre que a economia tem uma inflação mais alta, os juros – que deveriam ser uma penalização para todos a economia, e, de fato, reduzissem a taxa de inflação -, acabam sendo um grande benefício para os rentistas”, analisa. 

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Por isso mesmo, o sistema financeiro privado não contribui para pressionar o Banco Central por uma política de juros que estimule um círculo virtuoso na economia. Isso, porque o crescimento do endividamento do estado favorece detentores de títulos da DPF. Em favor de beneficiar o lucro de uma elite financeira, toda a economia produtiva é colocada em compasso de espera e recessão.

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O presidente Luis Inácio Lula da Silva tem vocalizado, mesmo antes do início do governo, críticas ao posicionamento do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) sobre a taxa Selic. O governo enfatiza o efeito nocivo dos altos juros sobre a economia como um todo. 

Embora seja uma ferramenta de combate à inflação, a Selic também limita o crédito e portanto o investimento produtivo, assim como reprime o consumo. O resultado disso é uma economia recessiva, sem perspectivas de crescimento. Junto com o governo nessa luta estão as Centrais Sindicais e parcelas do empresariado.

A briga com a Fazenda é uma novidade criada no último governo, desde que o Congresso aprovou a autonomia do Banco Central. Até então, o BC era subordinado à política econômica forjada pelos governos. O presidente do banco era uma indicação interessada da Presidência da República. Agora, resta ao governo indicar dois membros à diretoria de Política Monetária do Banco Central, que possam contribuir para equilibrar as votações. 

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O objetivo da autonomia votada por maioria parlamentar conservadora foi dissociar essas duas coisas e garantir que o BC obedeça única e exclusivamente aos ditames do mercado financeiro. A estratégia de manter os juros básicos da economia em 13,75% ao ano, funcionou, e o Banco Central é o quartel-general das elites detentoras de títulos da dívida, que garantem juros altamente favoráveis ao custo do desmonte da economia nacional.

Os donos da dívida

Por meio da dívida pública, o governo pega dinheiro emprestado dos investidores para honrar compromissos financeiros. Em troca, compromete-se a devolver os recursos depois de alguns anos, com alguma correção, que pode seguir a taxa Selic, a inflação, o dólar ou ser prefixada (definida com antecedência).

As instituições financeiras (bancos) seguem como principais detentoras da Dívida Pública Federal interna, com 28,82% de participação no estoque, um leve aumento em relação ao mês de março. Os fundos de investimento mantiveram o estoque, com 23,57%, e os fundos de pensão (previdência), com 23,51%, aparecem em seguida na lista dos maiores detentores da dívida.

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A participação de estrangeiros é de 9,5%. Esse número mantem uma certa estabilidade, apesar da turbulência nos mercados externos, marcado por crises em bancos norte-americanos e europeus. Os demais grupos (que incluem governo, seguradoras e outros) somam cerca de 14,6% de participação na DPF.

Arcabouço Fiscal

O Tesouro prevê que a DPF subirá nos próximos meses. De acordo com o Plano Anual de Financiamento (PAF) 2023, apresentado no fim de janeiro, o estoque da DPF deve encerrar o ano entre R$ 6,4 trilhões e R$ 6,8 trilhões.

A reserva de liquidez ou colchão da dívida pública (reserva financeira usada em momentos de turbulência ou de forte concentração de vencimentos), que havia caído em março, subiu em abril, atingindo o patamar de pouco mais de R$ 1 trilhão. O crescimento, em termos nominais, foi de 1,57%.

Apesar do aumento da reserva, o nível do colchão garante o pagamento dos próximos 8,55 meses de vencimentos da DPF, um período um pouco menor do que os 9,22 meses registrados em março.

Esse colchão é o alvo principal da política fiscal do governo. A pressão para que o governo tenha um teto de gastos ou um arcabouço fiscal que garanta superávit primário visa a provar aos detentores dos títulos da dívida que o governo é capaz de pagar o que deve. 

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