Fundações criticam juros altos como entrave ao crescimento do país

Fundações apontam desafios do governo Lula, destacando a alta de juros no centro, e fazem propostas para driblar e reforçar a mudança na política monetária

Sete fundações ligadas a partidos políticos divulgaram documento em que apontam os desafios do Governo Lula para a economia, defendendo propostas para superá-los. São elas, respectivamente, Fundação João Mangabeira, Fundação Leonel Brizola/Alberto Pasqualini, Fundação Maurício Grabois, Fundação Perseu Abramo, Fundação Rede Brasil Sustentável, Fundação Verde Herbert Daniel, Instituto Claudio Campos.

Iniciativas do governo indicam retomada de políticas públicas, mas, segundo as fundações, o desenvolvimento nacional deve estar no centro do debate político e econômico. Nessa síntese, a política de juros elevados praticada pelo Banco Centro é o principal entrave. Enfrentá-la é a grande tarefa, segundo o documento das fundações.

A nota diz que a extrema-direita derrotada nas eleições segue “ativa, atuante e mobilizada, seja no Congresso Nacional ou em vários governos estaduais, seja nas ruas e redes, recorrendo à “guerra híbrida” e expressando uma massa disforme política e socialmente, que vai desde parcelas dos desempregados até setores do capital financeiro e do agronegócio”. No entanto, a esfera da economia é o principal flanco de ameaças à democracia, na análise das instituições partidárias. O sucesso da economia nacional representa o fortalecimento da democracia e a derrota do bolsonarismo.

Desde a transição, o governo vem contribuindo com o avanço da economia. No entanto, as fundações consideram que o volume de recursos garantidos pela PEC da Transição é insuficiente, assim como o impulsionamento do PIB pela agricultura, enquanto a indústria continua estacionada. O governo tem tido iniciativas importantes na área de tecnologia e acordos comerciais com países parceiros, rompendo com o isolamento do governo Bolsonaro.

A nota destaca como políticas públicas já lançadas que favorecem o avanço econômico o Bolsa-Família, a política de reajuste real do salário mínimo, a garantia de salário igual para trabalho igual, e outras medidas que favorecem o trabalho das mulheres, o programa Desenrola, que reduz o endividamento das famílias, o novo Minha Casa, Minha Vida, o novo Mais Médicos e o fortalecimento da Farmácia Popular, além da recomposição do orçamento das universidades e das bolsas de estudo para estudantes de graduação e pós-graduação, assim como o programa de Reforma Agrária.

São medidas que estimulam o mercado interno, que, no entanto, depende de um aumento da produtividade industrial. No entanto, o investimento do setor produtivo continua travado pela política monetária do Banco Central, que elevou a taxa nominal dos juros de 2% para 13,75%, aumentando o pagamento de juros no ano para R$ 480 bilhões. Um valor 3,5 vezes maior que o orçamento da Saúde ou da Educação, por exemplo.

Além disso, o prolongamento dos juros altos também gera inflação ao aumentar os custos das empresas. Ao valorizar a moeda, gera também desequilíbrio na balança de importações e destrói a indústria nacional. O argumento do BC de inflação de demanda também não combina com um país onde dezenas de milhões passam fome, mas sim com a inflação de oferta de combustíveis a preços dolarizados.

O documento das fundações saúda o “abrasileiramento” dos preços da Petrobras e aponta para a necessidade da retomada da política de estoques públicos de alimentos, pela Conab, destruída por Bolsonaro no primeiro dia de governo. Além disso, denuncia os malabarismos do presidente do BC, Campos Neto, para manter os juros altos, mesmo com a queda da inflação e a aprovação de um arcabouço fiscal. Ao aumentar a dívida, a política monetária deixa de cumprir sua função, diz a nota.

O documento das fundações conclui sua análise apontando a reforma tributária como mais um mecanismo para melhorar a renda dos mais pobres e arrecadar mais dos ricos. A recuperação do papel das estatais na alavancagem do desenvolvimento também é parte da estratégia.

Leia a íntegra:

Os desafios do governo Lula

Juros elevados constituem principal entrave à retomada do crescimento

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA CONTINUA SENDO a principal questão brasileira e ela é indissociável das questões do desenvolvimento nacional e da distribuição de renda.

Ela já se manifestara claramente durante o governo de Bolsonaro e, particularmente, no embate eleitoral que se travou em 2022. Isso porque o presidente, candidato à reeleição, ameaçava o tempo todo promover um golpe e implantar uma ditadura no país.

O assalto e depredação das sedes dos três poderes da República pelas hordas bolsonaristas apenas oito dias após a posse do novo governo, o mapa do golpe encontrado pela polícia federal na residência do ex-ministro da justiça e os diálogos encontrados no celular do ex-ajudante de ordens revelam claramente esse intento. O presidente Lula, no entanto, liderou uma ampla frente que reuniu os poderes da República, os governadores e a ampla maioria da sociedade, e derrotou os golpistas

O isolamento e a derrota da extrema-direita, liderada por um núcleo de corte fascista, foram, portanto, a principal luta travada na conjuntura do ano passado para garantir a manutenção da democracia. Formou-se então uma ampla frente do conjunto das forças democráticas, cuja construção acelerou-se ao longo do ano de 2022, consolidando-se durante a campanha eleitoral em torno da candidatura de Luiz Ignácio Lula da Silva. A extrema-direita bolsonarista foi derrotada nas urnas com base na liderança de Lula, na formação dessa frente e na defesa da democracia.

Mas segue ativa, atuante e mobilizada, seja no Congresso Nacional ou em vários governos estaduais, seja nas ruas e redes, recorrendo à “guerra híbrida” e expressando uma massa disforme política e socialmente, que vai desde parcelas dos desempregados até setores do capital financeiro e do agronegócio.

No entanto, o aspecto central da questão democrática atualmente se localiza na esfera da Economia, enquanto no processo eleitoral de 2022 se refletiu na disputa e vitória nas urnas pelas forças democráticas. Então, para isolar e derrotar estrategicamente a extrema-direita e avançar na construção democrática, manter e ampliar o apoio popular ao governo Lula, neutralizar os setores mais vacilantes da frente ampla, é fundamental avançar na reconstrução econômica nacional e assentar as bases para a retomada do desenvolvimento soberano, que gere emprego e renda, proporcione direitos, combata a desigualdade social e seja respaldado em ampla mobilização popular. O eventual insucesso na reconstrução econômica, por outro lado, tenderá a fortalecer o bolsonarismo e seu possível retorno ao centro do poder.

Devido à destruição promovida pelo grupo de Bolsonaro, o governo Lula, como um governo de transição, tem como desafio principal promover a reconstrução nacional, assentando as bases para a retomada do desenvolvimento.

Política externa independente, “altiva e ativa”

Na esfera econômica, Lula começou a governar já antes de tomar posse. A PEC da Transição, que permitiu fazer a travessia da destruição promovida pelo governo Bolsonaro para o processo de reconstrução nacional, foi elaborada pela equipe de transição e aprovada pelo Congresso Nacional antes da posse, conseguindo então os recursos (da ordem de R$ 170 bilhões) para a retomada dos investimentos e das obras paradas (14 mil), o aumento real do salário mínimo e o relançamento dos programas sociais.

Essa injeção de dinheiro na economia poderá contribuir para manter a trajetória de crescimento do PIB (1,9%) que ocorreu no primeiro trimestre deste ano. No entanto, foi ainda um crescimento insuficiente, já que o setor mais dinâmico da economia e que tem maior efeito multiplicador, a indústria, permaneceu estacionado. O crescimento do PIB no primeiro trimestre (quando tudo indicava que haveria estancamento da produção, o que terminou acontecendo na indústria) foi puxado pela agropecuária, particularmente pela soja, que colheu uma super safra nesse período. Mas isso é sazonal. Além disso, a agropecuária não tem peso para alavancar de maneira continuada o conjunto da economia. O grande desafio, para esta seguir crescendo, é transformar a estrutura produtiva do país, voltando a indústria a ser a locomotiva.

O presidente Lula dedicou os primeiros cinco meses de seu governo a ressuscitar a política externa independente, “altiva e ativa”, baseada na autodeterminação dos povos, enterrada pelo isolacionismo e a subserviência dos governos de Temer e Bolsonaro. Lula visitou os EUA, a China, Portugal e Espanha e enviou seu assessor especial, o ex-ministro Celso Amorim, à Rússia e à Ucrânia.

O Presidente esteve também na Argentina e no Uruguai e Celso Amorim na Venezuela. Culminou com uma reunião em Brasília com os presidentes dos países da América do Sul para retomar o processo de integração regional abandonado pelos governos Temer e Bolsonaro.

Lula, ao contrário, aproveita-se da tensa transição geopolítica mundial e da retomada da integração regional para articular e negociar a defesa dos interesses do Brasil, favorecendo assim a reconstrução e o desenvolvimento nacional do Brasil e das nações subdesenvolvidas. Batalha ao mesmo tempo pela paz mundial. Nesse quadro, parcerias estratégicas com países aliados reforçarão nossa capacidade de investimento e de desenvolvimento científico e tecnológico.

Reconstrução nacional

Já vivemos essa experiência no passado, quando Getúlio Vargas, após a Revolução de 1930, aproveitou-se da transição geopolítica que se realizava na época, a qual acirrou-se com a Grande Depressão e a emergência da II Guerra, para industrializar e transformar o Brasil de uma economia agroexportadora subdesenvolvida numa economia urbano-industrial moderna, com base no investimento público e numa legislação trabalhista que se situava entre as mais avançadas do mundo na época. O resultado do programa getulista, de corte nacional-desenvolvimentista, foi que, de 1930 a 1980, nosso PIB cresceu a uma taxa média de 7% ao ano. Chegamos a ser a sétima economia do planeta.

O combate à desigualdade social, já iniciado pelo governo Lula, é um outro desafio que favorece a reconstrução nacional. Destacam-se até agora as seguintes medidas:

a) o combate à fome já está sendo implementado por meio do Bolsa-Família, mas precisa ser ampliado e reorganizado para atender às 33 milhões de pessoas que vinham passando fome e às 116 milhões que sofrem alguma forma de restrição alimentar;

b) uma política de reajuste real do salário mínimo, que já começou a ser adotada e que sinaliza a direção da recuperação de seu poder de compra, dando os primeiros passos para a valorização do trabalho e colocando no horizonte o que estabelece a Constituição;

c) medida que garante salário igual para trabalho igual, que o governo encaminhou e foi aprovada pelo Congresso Nacional; um bom começo para a inserção da mulher no mercado de trabalho, o qual será complementado por um amplo programa de creches, a educação integral em tempo integral e o aumento da licença-gestante, criando as condições para a luta da mulher por sua emancipação;

d) relançamento dos programas “Minha Casa, Minha Vida” “Mais Médicos” e “Farmácia Popular”, além da recomposição do orçamento das universidades e das bolsas de estudo para estudantes de graduação e pós-graduação, programas sociais que serão reforçados mediante a adoção da reforma urbana, o fortalecimento e aperfeiçoamento do SUS, a implantação do complexo industrial da saúde e a adoção da educação em tempo integral.

e) anúncio, na inauguração do programa “Conversa com o Presidente”, do lançamento de um programa de Reforma Agrária, havendo, para isso, determinado ao ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar que seu ministério faça um levantamento do conjunto das terras improdutivas e monte uma estratégia para ocupá-las por meio da Reforma Agrária.

Essas medidas, ao tempo em que combatem a desigualdade, fortalecem o mercado interno. Mas o fortalecimento do mercado interno deve se fazer acompanhar do aumento da produção, a qual, ao contrário, tem se caracterizado pelo processo de desindustrialização e sucateamento da infraestrutura, ou seja, pelo retrocesso. Por isso, para viabilizar a reconstrução nacional e criar as condições para o desenvolvimento, é imprescindível promover a reindustrialização em novas bases tecnológicas e realizar o lançamento de um amplo programa de obras de infraestrutura de qualidade, tais como metrô, estradas de ferro, saneamento básico. Lula anunciou, na inauguração do programa mencionado, que um amplo programa de obras será lançado no próximo dia 2 de julho, incluindo a retomada das obras paradas. O investimento e a incorporação de CT&I devem se constituir nos principais motores desse processo.

Como em momento de crise o empresário não se aventura a realizar novos investimentos, a alavancagem cabe, principalmente, ao investimento público, acompanhado de financiamento público, compras governamentais, subsídios e medidas de proteção contra a concorrência predatória externa, sob a coordenação do Estado. Daí a necessidade de um novo projeto nacional de desenvolvimento.

Segundo Aloizio Mercadante, presidente do BNDES e ex membro deste foro, o Brasil, que, na década de 1980, tinha uma indústria mais forte do que a da China, perdeu competitividade ao longo das últimas décadas por falta de um “projeto nacional de desenvolvimento, projetos estruturantes, transformadores, portadores de futuro”.

Pressão dos juros altos

Os neoliberais de plantão procuram nos convencer de que os recursos são escassos. Portanto, não seria possível pensar num programa dessa envergadura. Mas é possível demonstrar que eles existem, sofrendo, no entanto, vários bloqueios para dirigir-se ao investimento produtivo. O bloqueio principal é representado pelas elevadas taxas de juros praticadas pelo Banco Central, ao imporem ao setor público pesados desembolsos financeiros, sacrificando, assim, seu potencial de investimento.

A taxa paga pelo Banco Central pelos títulos que lança no mercado – norteando assim a rolagem da dívida -, chamada de Selic, está, em termos reais, ou seja, descontada a inflação, acerca de 8% ao ano, a mais elevada do mundo. Cálculos demonstram que, a cada 1 ponto percentual de aumento da taxa nominal de juros, crescem os dispêndios com juros em R$ 40 bilhões por ano.

Como a taxa nominal se elevou de 2% para 13,75%, ou seja, quase 12 pontos percentuais, o aumento do pagamento de juros durante um ano está sendo de cerca de R$ 480 bilhões. Registre-se que o orçamento para a educação previsto para este ano é de R$ 147,4 bilhões, 3,25 vezes menos. Para a Saúde, foram destinados R$ 160,4 bilhões. Assim, juntando o “investimento”, como diz o Presidente, nessas duas ações do governo, de transcendental importância para a vida de uma nação, alcançamos o montante de R$ 307,8 bilhões, ou seja, 64,12% do gasto a mais com juros.    

As empresas e as famílias também estão sobrecarregadas de dívidas, limitando o potencial de investimento das primeiras e o de consumo das últimas: “O endividamento dos brasileiros alcançou o maior nível histórico já registrado: 77,9% da população” (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo). O último levantamento da Serasa indica que 69,43 milhões de pessoas começaram 2023 com nome restrito (Serasa).

O governo acaba de lançar o programa “Desenrola”, que visa renegociar com um forte desconto a dívida dos que ganham até dois salários mínimos e têm dívida de até R$ 5.000, atingindo 43 milhões dos 70 milhões com nome na Serasa. O resultado será a liberação para o consumo de recursos atualmente comprometidos com o pagamento de dívidas. 

Premidas pela pressão dos juros altos, as empresas que conseguem sobreviver acabam adotando o comportamento típico dos rentistas e aplicando suas economias no mercado financeiro, o que exige ações concretas, particularmente a redução substancial das taxas de juros, para sua reconversão produtiva.

A casta rentístisco-financeira desvia os recursos do investimento e da produção para a esfera especulativo-financeira, apropriando-se dos lucros obtidos sob a forma de renda financeira, parte da qual é drenada para o exterior a fim de remunerar o capital estrangeiro aqui aplicado, particularmente o capital a juros.

Como baixar essas taxas para níveis compatíveis com o investimento? O presidente do Banco Central e os economistas “do mercado”, ou seja, que servem à casta rentistico-financeira, alegam que têm que elevar e manter elevados os juros para poder combater a inflação.

Escalada inflacionaria

Ora, quando a inflação é de demanda e a economia está com a capacidade produtiva instalada plenamente ocupada, a elevação da taxa de juros pode conter um processo inflacionário, mas a custa da redução da produção, do consumo e do nível de emprego, ou seja, de uma recessão. Entretanto, se permanecer muito tempo elevada, a taxa de juros, em lugar de derrubar a inflação, passa a atuar na elevação dos custos das empresas, bloqueando a queda da inflação, como demonstrou Lara Resende.

Além desse efeito contraditório sobre o comportamento da inflação, a elevação dos juros atrai os dólares especulativos, valorizando a moeda nacional, barateando o produto importado, inundando assim o mercado interno de produção estrangeira e por essa via pressionando a inflação para baixo.

Só que, além de provocar recessão pela queda do consumo e o ingresso da produção estrangeiras subsidiada, tem como principal resultado a desindustrialização, ao substituir produção interna por produção importada. Foi assim que a participação da indústria de transformação no PIB despencou de cerca de 30% para em torno de 10% atualmente.

Na situação de fim da capacidade ociosa, o correto seria reduzir a taxa de juros a fim de fomentar o aumento do investimento e da produção, como forma de atender à nova demanda. Mas já está amplamente demonstrado pelos fatos que, com as péssimas condições de vida da população brasileira, inclusive com 33 milhões de pessoas passando fome e 116 milhões com alguma forma de restrição alimentar, sem falar no arrocho salarial, não havia qualquer pressão da demanda.

A escalada inflacionária iniciada em 2021 deve-se, ao contrário, a vários choques de oferta, particularmente dos combustíveis, da energia e dos alimentos, em consequência de terem seus preços cotados em dólar no mercado internacional, além do desarranjo na oferta de componentes, devido à desorganização das cadeias globais de suprimento provocada pela pandemia da Covid e pela guerra na Ucrânia.

Tanto isso é verdade que, no período recente, precisamente quando o real está se valorizando frente ao dólar e tem baixado o preço do petróleo no mercado internacional, a inflação de 12 meses medida pelo IPCA teve uma queda substancial: dos 11% em março de 2021 caiu para 3,94% nos 12 meses encerrados em maio deste ano.

A solução é outra: no caso dos combustíveis e da energia dele derivada, deve-se “abrasileirar”, para usar a expressão de Lula, os preços da Petrobras, considerando que somos autossuficientes na produção de petróleo e praticamente autossuficientes no refino dos derivados. Assim, praticamente o conjunto do custo dos derivados do petróleo é realizado internamente (pesquisa, exploração, extração, transporte, refino e distribuição), ou seja, em moeda nacional, o real. Esse processo de “abrasileiramento” já está em curso e o preço dos combustíveis já começou a cair.

No caso dos alimentos, é fundamental recuperar a política dos estoques reguladores, que foram dizimados pelos governos Temer e Bolsonaro, os quais fecharam ou venderam os armazéns: só no primeiro ano de governo, Bolsonaro fechou 27 das 92 unidades armazenadoras da Conab; praticamente acabaram com o Programa de Aquisição de Alimentos dessa Companhia e reduziram drasticamente os recursos por ela movimentados: caíram de R$ 600 milhões em 2012 para insignificantes R$ 15 milhões em 2020. Lula, no programa citado, anunciou que vai retomar a política de estoques reguladores.

O Presidente do BC, Roberto Campos Neto, alegou, dentre outras coisas, que, para abaixar a taxa básica de juros, seria necessário ter um marco fiscal “confiável”, ou seja, que possibilitasse a estabilização e posterior redução da relação dívida/PIB, que estaria em torno de 75%. Vale registrar que, nos países em situação semelhante, essa relação chega a superar os 100%.  E, para calcular essa relação, o BC adota o critério da dívida bruta.

Mas, depois que Haddad apresentou sua proposta de arcabouço fiscal, Campos Neto pontificou, com certo ar de arrogância, para não dizer de cinismo, que não havia uma relação mecânica entre política monetária e política fiscal, repetindo a prática bolsonarista de conviver tranquilamente com as “fake news”. Apesar do arcabouço fiscal ter sido assimilado pelo “mercado”, cabendo, assim, nessa lógica, a redução da taxa Selic, Campos Neto, mais realista do que o rei, por sua ligação com o bolsonarismo, teima em manter os juros elevados.

Relação “mecânica” não há entre as duas políticas, mas de nada adianta fazer um esforço fiscal, como o que está fazendo o ministro Haddad pela via do aumento da receita, se esse aumento é consumido pelos juros exorbitantes. A equipe de Campos Neto, acólita da ideologia dos economistas neoliberais, alega que se deve cortar a despesa, mas não toca na principal despesa pública que são os encargos financeiros da dívida, ou seja, o pagamento de juros.

Quebradeira de empresas

Por sua vez, não há nada na teoria e nem na experiência que dê fundamentação científica a esse critério de cálculo da relação dívida/PIB com base na dívida bruta. O mais correto, segundo demonstra o economista André Lara Resende, seria adotar o conceito de dívida líquida, ou seja, descontando da dívida bruta as reservas externas e as acumuladas no Tesouro, que são créditos do país. E assim se chegaria a uma relação dívida/PIB em torno de 45%. Nada amedrontador. Além disso, não há um limite ideal pré-estabelecido dessa relação porque, sendo a imensa maioria da dívida brasileira em moeda nacional, o real, não há risco de “calote”. A dívida pode, num momento de crise, ser abatida com emissão monetária.

É possível concluir, portanto, que as elevadas taxas de juros praticadas pelo Banco Central não cumprem o papel que lhes é atribuído pelos tecnocratas políticos do banco; mas deixam no seu rastro a quebradeira de empresas, inclusive de grandes varejistas, e o sucateamento e paralisação de obras públicas, possibilitando a Campos Neto cumprir sua ameaça, feita no ano passado, de promover uma recessão no país.

Mesmo a taxa anual de inflação tendo chegado a um nível abaixo de 4% (mais precisamente, 3,94% nos doze meses encerrados em maio último), portanto dentro do limite superior da tão decantada meta (4,75%), a equipe do BC protela a indispensável e inadiável derrubada da taxa de juros, sob a alegação de que a expectativa é que a inflação voltará a subir no segundo semestre deste ano.

Até aí nenhuma novidade: qualquer um que acompanhe a evolução da economia brasileira sabe que, sempre, no segundo semestre, ocorre uma pressão altista sobre os preços. Mas é um fenômeno claramente sazonal: trata-se do período de entressafra agrícola, quando tende a ocorrer essa pressão. Como assinalamos antes, o governo brasileiro costumava enfrentar esse problema adquirindo produtos agrícolas no período de safra no primeiro semestre e formando os estoques reguladores, os quais eram “desovados” na entressafra no segundo semestre por meio da rede da Conab, regulando assim os preços.

Essas taxas de juros, havendo chegado a esse nível tão elevado (repita-se: a maior do mundo em termos reais) e, além do mais, com um longo período de permanência nesse nível, prejudicam a praticamente todos os setores da nação, dos trabalhadores aos empresários da indústria, do comércio e do mundo rural, inclusive aos bancos, que deixam de receber o pagamento dos devedores endividados. Bancos estão quebrando nos EUA por essa razão. Aqui, no Brasil, 71% dos empresários da indústria, segundo pesquisa da CNI, responderam que os juros altos são o principal entrave à obtenção de crédito. Isso permite formar e mobilizar uma ampla frente contra os juros altos e pela retomada do crescimento econômico.

Cada vez mais isolado, o presidente do BC, em reunião com empresários do varejo, chegou a admitir que, como as taxas longas (de longo prazo) caíram 3 pontos percentuais (de 13,5% para 10,5%) no último mês e meio, “abre espaço [para a queda da Selic]”. Mas, recalcitrante como é, a tendência é, no máximo, ensaiar um faz-de-conta, isto é, promover uma redução insignificante da Selic e seguir resistindo a uma derrubada mais substancial dessa taxa.

E a emissão de moeda não poderia também ser utilizada no investimento público? Claro que sim. Keynes já demonstrou que, caso a economia esteja com capacidade ociosa, pode ser emitida moeda para realizar investimento público, o que ensejaria o aumento da produção, e não dos preços.

Como fonte de financiamento, pode-se recorrer também à revogação de parte da desoneração tributária, que o ministro Haddad estima em R$ 600 bilhões por ano (mais precisamente, levantamento meticuloso do Ministério do Planejamento calculou a cifra de R$ 581 bilhões para 2022), e ele pretende recuperar R$ 150 bilhões para recompor o orçamento. Há dois anos atrás, quando estimou o montante de R$ 457 bilhões, levantamento realizado pela Anafisco concluiu que só seria justificável econômica e socialmente o valor de R$ 141 bilhões, podendo, portanto, ser recuperados R$ 316 bilhões.

Podem ainda ser obtidos recursos de uma reforma tributária que, conforme promete Lula, ponha o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Isso significa cobrar imposto do rico, que, por exemplo, não paga imposto sobre distribuição de lucros e dividendos, e isentar o pobre, que, além da pesada carga de imposto sobre o consumo, ainda é vítima de um escorchante imposto de renda. Uma reforma do IR teria que torná-lo mais progressivo, pois, regressivo como é, taxa mais pesadamente os que estão na base da pirâmide.

Retomada do investimento público

Lula prometeu isentar de IR até o limite de ganho de R$ 5.000 por mês: até aqui, isentou até R$ 2.640. Mas o Presidente anunciou, em sua primeira “Conversa com o Presidente”, que até o final do governo chegará aos R$ 5.000.  

Além disso, por estratégia política, conforme declaração do secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, o governo optou por desdobrar a reforma tributária em duas fases: primeiro, fazer a reforma da estrutura de consumo e produção para depois aprovar a reforma do IR.

Enquanto isso, a equipe de Haddad está escarafunchando a estrutura tributária para descobrir áreas que deveriam pagar imposto, mas, por algum artifício legal ou ilegal, deixam de fazê-lo, envolvendo a elisão fiscal e a sonegação. É justo fazer esse esforço, mas a ele deve se somar o objetivo de juntar recursos para o investimento, em lugar de servir para cobrir o déficit público, ou seja, pagar juros.   

A renda petroleira, assim como a da mineração e a hidráulica, constitui fonte fundamental de recursos para o investimento. Um bom exemplo foi dado pela Noruega, que, ao descobrir petróleo na década de 1970 e destinar a maior parte da receita aos cofres públicos e, por conseguinte, ao investimento e ao bem-estar social, levou o pais a conquistar o maior IDH do mundo. 

Essas fontes de receita são suficientes para financiar a retomada do investimento público nos níveis necessários para realizar a reconstrução nacional e abrir espaço para a retomada do desenvolvimento. O problema é que têm servido para alimentar a renda da oligarquia financeira, enriquecer os já ricos beneficiários tanto da isenção fiscal quanto de uma estrutura de imposto regressiva, incrementar o lucro extraordinário das empresas monopolistas, alimentar o capital estrangeiro especulativo que invade o país. O nó górdio que tem de ser desatado para desmontar essa estrutura financeiro-especulativa e começar a construir uma economia produtiva são as elevadas taxas de juros.

Rede de empresas estatais

Essa flexibilização do marco fiscal será suficiente para deslanchar e sustentar a reconstrução nacional e a deflagração do desenvolvimento, dado o nível de destruição de que nosso país foi vítima no período recente?

Uma primeira resposta a essa questão é que as limitações contidas na lei restringem a capacidade do orçamento federal de aplicar recursos num ousado projeto de desenvolvimento.  A proposta formulada pela equipe da Fazenda, ao comprometer-se a gerar superávit “primário” a partir de 2025, estabilizando a relação dívida/PIB em 2026 em torno de 76%, impunha certos limites ao investimento público.

Para o atingimento dessas metas, o conjunto da despesa pública, incluindo o investimento, só poderia crescer, no máximo, a 70% do crescimento real da receita, limitando-se ainda a um crescimento real máximo de 2,5% ao ano. Registre-se que, nos dois outros governos de Lula, a despesa pública cresceu, em média, em termos reais, a 5,2% ao ano. Além disso, o eventual excedente do superávit “primário” não será integralmente destinado ao investimento, mas apenas 70% dele; além do que estaria limitado por um valor máximo de R$ 25 bilhões por ano, que o relator converteu em 0,25% do PIB.

A peça construída pelo relator na Câmara, deputado Claudio Cajado, exacerbou ainda mais esses limites (por exemplo, ao baixar o nível inicial do investimento de R$ 78 bilhões para R$ 65 bilhões), além de criar sanções em caso de descumprimento das metas, podendo, inclusive, comprometer a administração pública e penalizar o servidor público. O relator foi mais exigente do que o próprio “mercado”, que já havia “precificado” a permanência de déficit durante os quatro anos de governo Lula.

Mas o ingresso no Tesouro dos recursos obtidos das fontes citadas terminará inundando-o de recursos que não caberão nesses limites. Situação semelhante ocorreu com os rígidos limites do teto de gastos. Em algum momento, essas novas regras serão superadas pelo choque de realidade, que teima em cobrar seu preço quando menos se espera. E a economia brasileira tomará seu rumo, que é o de desenvolver esse imenso potencial que abriga em seu território.

Além disso, o investimento público não se limita aos recursos do orçamento da administração direta da União. O processo de reconstrução nacional contará também com uma rede de empresas estatais, que deve ser reconstruída a partir da remontagem da Petrobras (além de haver sido esquartejada e vendido áreas importantes, como o refino e a distribuição, vinha distribuindo quase o total de seu lucro para os acionistas, em que se destacam “investidores” estrangeiros, deixando de fazer os investimentos indispensáveis)  e da recuperação da Eletrobrás (veja o escândalo: no apagar das luzes, Bolsonaro/Guedes “privatizaram” a Eletrobrás, mantendo 43% das ações nas mãos do governo, mas com direito a voto no máximo de 10%; a Advocacia Geral da União já acionou a Justiça para corrigir essa falcatrua). A rede de empresas estatais possibilitará a reconstrução de setores da economia que foram dizimados: é o caso da indústria naval.

Também cumprirá um papel destacado o financiamento público, devendo para isso ser recuperado o papel do BNDES e de outros bancos públicos, como o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste, a Caixa Econômica e a Financiadora de Estudos e Projetos (cujo orçamento já foi recomposto), no investimento na atividade produtiva.

O BNDES, que, no governo Bolsonaro, devolveu toneladas de dinheiro ao Tesouro Nacional, em lugar de receber aportes, como nos governos anteriores de Lula, para financiar a atividade produtiva, já está sendo reorganizado para voltar a cumprir esse seu papel histórico. Em seminário conjunto entre o banco e a CEPAL, Mercadante garantiu que o BNDES voltará a ser o banco da indústria, da infraestrutura e dos demais setores estratégicos.

São Paulo, 15 de junho de 2023

Fundação João Mangabeira

Fundação Leonel Brizola/Alberto Pasqualini

Fundação Maurício Grabois

Fundação Perseu Abramo

Fundação Rede Brasil Sustentável

Fundação Verde Herbert Daniel

Instituto Claudio Campos

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