Aprovação de PEC do Hino no RS escancara racismo estrutural e histórico

Para Bruna Rodrigues, deputada estadual do PCdoB/RS, “medo de mudar o trecho racista fala mais sobre o racismo estrutural do que sobre respeito às tradições”

Bruna Rodrigues durante sessão que aprovou PEC do Hino. Foto: ALRS

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul deu mais um passo rumo ao atraso com a aprovação em primeiro turno, nesta terça-feira (11), de uma proposta de emenda à Constituição que proíbe mudanças em símbolos do estado, como o hino. Também foi aprovada emenda estabelecendo que esse tipo de alteração deve ser submetida a referendo popular. 

Mas, ao contrário do que pode parecer, a proposta nada tem de democrática e situa-se no campo da reação conservadora à atuação de movimentos que lutam contra o racismo e que, há anos, questionam um trecho do hino de teor preconceituoso que diz: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Embora seja uma bandeira legítima e histórica, o debate sobre o hino não foi pautado pela bancada negra, a primeira da história da Assembleia do RS, formada pelas deputadas Bruna Rodrigues (PCdoB), Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSol).

A PEC 295/2023 foi apresentada no final de março pelo deputado estadual Rodrigo Lorenzoni (PL) — filho do ex-ministro de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni —, com o apoio de outros 19 parlamentares. Após a votação ser adiada duas vezes, a matéria foi submetida ao plenário ontem e teve 38 votos favoráveis e 13 contrários. O texto estabelece que símbolos do estado — como bandeira, brasão e o hino — “são protegidos e imutáveis em sua integralidade”. 

Na mesma sessão, a maioria dos deputados também aprovou emenda apresentada pelo cantor tradicionalista Luiz Marenco (PDT), que prevê a realização de referendos para viabilizar mudanças desse tipo. 

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“Ainda há mais um turno para votação da PEC do Hino, que deve acontecer no segundo semestre. Até lá, queremos intensificar e ampliar o debate sobre porque os símbolos do estado não devem ser imutáveis, e porque o medo de mudar o trecho racista fala muito mais sobre esse racismo estrutural do que sobre respeito às tradições”, disse a deputada Bruna Rodrigues, em entrevista ao Portal Vermelho

Confirma abaixo os principais trechos da conversa, na qual a parlamentar explica as origens do questionamento ao hino, a reação de setores retrógrados, sobretudo o bolsonarismo, à atuação negra na política e os próximos passos da luta no parlamento gaúcho. 

Luta de décadas

“Primeiramente, acredito que é importante a gente trazer para nosso debate uma pequena linha do tempo acerca do debate do movimento negro. E para isso, a gente precisa voltar à década de 1970, quando a organização da luta antirracista do Rio Grande do Sul se dava, de forma organizada, dentro dos Clubes Sociais Negros — como o Satélite Prontidão e o Floresta Aurora, espaços que reuniram figuras importantes como o poeta Oliveira Silveira”. 

“Foi dessa época que nasceu, por exemplo, o Dia da Consciência Negra e o debate acerca do trecho racista do Hino Rio Grandense. O acúmulo que se tem sobre a estrofe ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’ vem dessa época, e desde então os fóruns das entidades do movimento negro no RS são permeados por essa discussão”. 

Frutos da luta

“Quase 50 anos depois, Porto Alegre assiste a um fato histórico: a eleição de cinco parlamentares negros forjados nas lutas populares e antirracistas — ou seja, conhecedoras e conhecedores do debate que esse setor do movimento social trava desde os tempos da ditadura militar. Como membro dessa Bancada Negra da Câmara Municipal de Porto Alegre, lembro-me até hoje de conversarmos sobre qual seria a nossa postura em relação à execução do Hino Rio Grandense — afinal, essa era uma chegada coletiva no parlamento da capital gaúcha de todas e todos que lutam contra o racismo em Porto Alegre”. 

“E concluímos que devíamos adotar uma posição de protesto. Quando começou a execução do hino durante nossa posse, em janeiro de 2021, nós cinco (Bruna Rodrigues, Daiana Santos, hoje deputada federal do PCdoB, Laura Sito, do PT, Karen Santos e Matheus Gomes, do PSol) decidimos permanecer sentados. Foi essa postura, lá em 2021, que acendeu para determinados setores da sociedade esse acúmulo histórico do movimento negro”. 

Reação conservadora 

“Desde então, setores conservadores da política e do movimento tradicionalista gaúcho começaram a nos acusar de querer deturpar os símbolos do nosso estado. A reação conservadora veio também dentro da Câmara, com a aprovação de uma resolução que prevê a obrigatoriedade de se permanecer em posição de respeito, de pé, durante a execução dos hinos nacional e rio-grandense”. 

“E a Assembleia Legislativa também começa, ainda que por meio da emenda votada ontem, do deputado Luiz Marenco, a mobilizar esses setores conservadores”. 

Negros no parlamento

Pessoas contrárias à PEC do Hino dão as costas ao deputado Lorenzoni em sinal de protesto. Foto: ALRS

“Por outro lado, a ascensão da luta antirracista levou essa bancada negra a se multiplicar pelos parlamentos. Chegamos na Câmara dos Deputados com três deputadas federais negras pelo estado (Daiana Santos, do PCdoB; Denise Pessoa e Reginete Bispo, do PT) e também na ALRS que, além de mim, também passou a contar com Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSol), sendo eu e Laura as primeiras deputadas negras da história do parlamento gaúcho”.  

“O que foi motivo de festa do povo gaúcho também foi um sinal de alerta ao conservadorismo do estado — afinal, os mesmos que protestaram contra o hino na Câmara Municipal agora fazem isso também na Assembleia”. 

PEC do Hino

“A PEC 295/2023, conhecida como PEC do Hino, foi protocolada pelo deputado Rodrigo Lorenzoni (PL) no final de março. Essa foi a sinalização desse conservadorismo de que iria brigar pela permanência do trecho racista. Foi a partir dessa proposição que o debate acerca do hino voltaria à cena pública. Faço questão de destacar isso porque, por mais que esse seja um debate histórico do movimento negro gaúcho, não foi a Bancada Negra quem o pautou dentro da ALRS. Foi uma reação desses setores conservadores que trouxe para cá, a partir da PEC, a discussão sobre a imutabilidade do hino”. 

“Nós queremos sim poder travar o debate sobre o trecho racista. Mas nós temos total consciência de que temos muitas questões urgentes ao povo gaúcho. A fome ainda é uma realidade, a vaga na creche precisa estar no centro da defesa de uma vida digna, educação é um tema urgente…Ao mesmo tempo, nós não podemos nos silenciar quando um tema como esse, que trata sobre a representação simbólica do povo preto no nosso estado  — e que, diga-se de passagem, reforça materialmente qual a prioridade dada sobre a produção de políticas públicas ao povo — é imposto a nós”. 

Reorganização do bolsonarismo no RS

“Acredito que existam, pelo menos, três símbolos distintos dessa aprovação e que merecem a nossa atenção. O primeiro diz respeito à necessidade da reorganização do bolsonarismo no nosso estado. Por mais que não seja possível dizer que essa ala perdeu força no estado, podemos dizer que perderam a coesão da atuação política. A derrota do bolsonarismo para o governo do estado (representada pela candidatura de Onyx Lorenzoni) dispersou esse setor, e a pauta do hino foi um instrumento de reorganização desse campo político”. 

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Racismo e pacto da branquitude

“Um segundo elemento diz respeito a como isso foi uma resposta à chegada da Bancada Negra ao parlamento gaúcho. A gente sabe o quanto a nossa presença num espaço que nunca antes foi ocupado por mais de uma pessoa preta ao mesmo tempo incomoda a quem sempre deteve o poder político. Fomos acusados de segregar racialmente a Assembleia, de dividir o povo gaúcho, e na verdade tudo o que dissemos foi que não aceitaríamos ser retratados daquela forma pelo Hino Rio-grandense”. 

“E, falando em racismo, o terceiro elemento diz respeito ao pacto narcísico da branquitude, que não falha. Vejamos: o deputado proponente da PEC do Hino sistematicamente promove discursos contra o governo do Estado e a sua base na Assembleia. Do outro lado, o governador (Eduardo Leite, do PSDB) reconhece que o Hino ‘tem trecho que machuca parte da população’. Mas isso pouco importou para que o governo, representado pela sua base na ALRS — e que inclusive retirou quórum duas vezes por não ter acordo com a pauta — e a ala bolsonarista, entusiasta da PEC, pactuassem entre si a aprovação dessa matéria. No mínimo isso mostra que contra nós vale tudo!”. 

Próximos passos

“Ainda há mais um turno para votação da PEC do Hino, que deve acontecer no segundo semestre. Até lá, queremos intensificar e ampliar o debate sobre porque os símbolos do estado não devem ser imutáveis, e porque o medo de mudar o trecho racista fala muito mais sobre esse racismo estrutural do que sobre respeito às tradições”. 

“O hino do nosso estado já sofreu três alterações, uma delas inclusive ocorreu quando foi suprimido da canção o trecho “Entre nós, reviva Atenas/Para assombro dos tiranos/Sejamos gregos na glória/E na virtude, romanos” porque o povo não se identificava com o trecho e deixava de cantar. Ou seja, é mesmo por respeitar a tradição que querem aprovar uma PEC que torna o hino imutável?”.