República de Artsakh: Como uma revolução colorida terminou em derrota

“Dezenas de milhares de armênios estão abandonando a região. Vamos tentar entender, em linhas gerais, o que levou a este desfecho”.

Bandeira da República de Artsakh

No dia 1º de janeiro de 2024 a República de Nagorno-Karabakh (também conhecida como República de Artsakh) deixará de existir, fruto da derrota que sofreu na guerra com o Azerbaijão. A decisão foi oficializada por decreto assinado pelo presidente da região separatista, Samvel Shahramanyan, nesta quinta-feira (28). Segundo o documento, todos os órgãos governamentais e instituições do enclave de Nagorno-Karabakh devem ser dissolvidos. O decreto determinou “dissolver todas as instituições e organizações estatais sob sua subordinação departamental até 1º de janeiro de 2024, e a República de Nagorno-Karabakh (Artsakh) deixará de existir“. Dezenas de milhares de armênios estão abandonando a região, embora o governo do Azerbaijão faça proclamações sobre a garantia dos direitos da etnia armênia e diga que não incentiva a imigração. Vamos tentar entender, em linhas gerais, o que levou a este desfecho. Nagorno-Karabakh é uma região montanhosa remota na transcaucásia, com esmagadora maioria étnica armênia, mas em território reconhecido internacionalmente como parte integrante do Azerbaijão. Quando Armênia e Azerbaijão eram repúblicas soviéticas, o conflito étnico era administrado de forma eficiente, com os armênios da região desfrutando de autonomia e proteção de sua língua e tradições. Poucos meses depois da fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (em dezembro de 1922), Nagorno-Karabakh recebeu, em 1923, o status de região autônoma dentro da República Socialista Soviética do Azerbaijão. Com o desmantelamento da URSS o conflito entre armênios e azeris explode e, durante uma guerra na década de 1990, os armênios conseguem uma vitória militar e fundam a República de Artsakh, em 2 de setembro de 1991. Moscou equilibrava-se para não se indispor com qualquer dos lados, mas era inequívoco que seu apoio, discreto mas efetivo, era para os armênios de Artsakh. Mesmo assim, um acordo de paz foi mediado pela Rússia e impediu a escalada do conflito, sem, porém, resolvê-lo de forma estável. Nenhuma nação da ONU reconheceu a autoproclamada república (nem mesmo a Armênia). No entanto, para a Armênia, Nagorno-Karabakh é, por diversos motivos, uma questão vital para sua identidade nacional. O país enviava armas e voluntários para lutar contra o Azerbaijão, que por sua vez considerava inegociável recuperar a integralidade de seu território reconhecido internacionalmente. Com constantes escaramuças entre os dois contendores, a situação no entanto estava estabilizada até que, na Armênia, uma revolução colorida tomou o poder.

A “revolução” colorida começa

Desde 2008 o presidente armênio era Serj Sargsyan, nascido em Nagorno-Karabakh, ex-membro das Forças Armadas Soviéticas, que tentava equilibrar a amizade com a Rússia com uma aproximação com o Ocidente. Moscou apoiava Sargsyan sem tolher seus movimentos. Como aponta Gabriel Rodrigues Peixoto, em um artigo acadêmico sobre Nagorno-Karabkh, em maio de 2009 a Armênia se aproximou da UE para lançar, com outros Estados do Leste Europeu, a Eastern Partnership (EaP – Parceria Oriental) cujo objetivo declarado era criar “as condições necessárias para acelerar a associação política e aprofundar a integração econômica entre a UE e os países parceiros interessados”. Gabriel Peixoto relata que “em 2011, durante discurso proferido na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o presidente Serj Sargsyan afirmava que: ‘[o] povo da Armênia fez sua escolha histórica e irreversível. (…) Para nós, é um regresso à civilização e ao reino cultural europeu, ao qual pertencemos e onde estivemos sempre presentes’.” A Federação Russa fez então dois movimentos importantes: passou a oferecer diversos incentivos para que os países do EaP se aproximassem da recém fundada União Aduaneira Euroasiática (EACU) e reforçou sua parceria militar com o Azerbaijão. A Armênia entendeu o recado e, na prática, abandonou o EaP. Contudo, em 2015, sob o impacto do “Maidan Ucraniano” de 2014, começaram protestos de massa na Armênia com caráter anti-russo. Em 2016, o exército azeri recupera parte do território perdido na década de 1990 na região de Nagorno-Karabakh (8 km, segundo os armênios, 20 km, segundo os azeris) e os manifestantes culpam a Rússia pela perda, apesar de a “República de Artsakh” depender quase exclusivamente das armas fornecidas pela Rússia para sua defesa.

A “revolução” colorida triunfa na Armênia

Nikol Pashinyan, atual primeiro-ministro da Armênia, comandando uma manifestação

As manifestações anti-russas ganham força e intensidade. O indiano M.K. Bhadrakumar, colaborador do site Asia Times, descreveu assim os acontecimentos: “Todas as características clássicas de uma revolução colorida são já visíveis neste levantamento político. Um homem de meia-idade chamado Nikol Pashinyan surgiu de lugar nenhum para liderar a campanha em favor da mudança de regime. Ele prometeu proteger direitos humanos, assim como combater com severidade a corrupção desenfreada e o compadrio. A mídia ocidental entusiasticamente transformou Pashinyan numa figura de culto. Ele começou a deixar crescer uma barba grisalha três semanas atrás. Envergando uma camiseta camuflada, sua face fotogênica sob um boné estilo militar instantaneamente provoca uma comparação com Che Guevara nos cartazes em Yerevan (capital da Armênia)”. Em 2018 Nikol Pashinyan é eleito primeiro-ministro. Serj Sargsyan, o antigo mandatário, é traído pelo próprio partido que vota em peso no novo chefe de governo saído da “revolução”. Desde então, Nikol Pashinyan foi cada vez mais aproximando a Armênia dos EUA e da União Europeia. Em 19 de setembro último o exército do Azerbaijão lança uma ofensiva. Na segunda-feira (25), Yuri Kim, secretária de Estado adjunta dos EUA para Assuntos Europeus e Eurasiáticos, foi para Yerevan para “afirmar o apoio dos EUA à soberania, independência, integridade territorial e democracia da Armênia, e abordar as necessidades humanitárias decorrentes da recente violência em Nagorno-Karabakh“. O apoio dos EUA adiantou pouco e as forças de Nagorno-Karabakh, que resistiam há 32 anos, capitularam totalmente, em uma derrota estratégica para a nação armênia e uma grande vitória nacional para o Azerbaijão, lembrando uma frase atribuída a Henry Kissinger: “Ser inimigo dos EUA é perigoso, ser amigo é fatal”.

“Quer o leitor escrever um livro ‘in-folio’, da grossura de um missal, em caracteres microscópicos? Escreva a história dos abusos judiciários e policiais que se dão cada ano neste nosso abençoado país”. Machado de Assis, 1864 (Obs.: Este 29 de setembro marca os 115 anos da morte do “bruxo do Cosme Velho“).

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