Mundo árabe se desilude com hipocrisia das potências e apoio a Israel

Os protestos generalizados em todo o mundo árabe sinalizam uma percepção crescente das intenções neocoloniais dos EUA e outros aliados israelenses.

Manifestantes se reuniram em frente à embaixada francesa na capital da Tunísia, Túnis, em 18 de outubro, para expressar indignação e repulsa pelo atentado a bomba em um hospital em Gaza

A indignação já era generalizada em todo o mundo árabe devido ao ataque israelense a Gaza, quando o bombardeio do Hospital Árabe al-Ahli , que matou mais de 400 pessoas, elevou a revolta a um novo patamar. Reportagem da Aljazira trás uma visão desiludida de como a opinião pública na Tunísia, está se voltando contra os EUA e a Europa próxima.

As fortes manifestações expressam desconfiança crescente contra a França, um velho aliado da Tunísia, mas também com toda a influência cultural do Ocidente no país. O reflexo disso no financiamento de ONGs já tem efeitos danosos, com ataques aos prédios e indignação até mesmo entre seus ativistas pagos por europeus. As pessoas preferem se informar por órgãos como Rússia Today, do que pela mídia europeia e local tradicional.

Esta crescente percepção observada nas manifestações por todo o mundo árabe e muçulmano, sinaliza que o “Ocidente”, representado pelos EUA e Europa, se tornou incapaz de reconhecer a violência desumana que está sendo aplicada em Gaza, 24 horas por dia, e que remonta a anos atrás. Uma insensibilidade e desumanização dos palestinos, justificada pelo apoio obstinado destas potências a Israel.

Em Beirute, Túnis e Cairo, multidões enfrentaram gás lacrimogéneo e canhões de água enquanto protestavam contra o que os tunisinos chamavam de “aliados dos sionistas”. A embaixada dos EUA no Cairo alertou sobre o “sentimento anti-EUA” enquanto os manifestantes se reuniam.

À medida que a ira popular tomava conta, multidões nas ruas manifestavam a sua rejeição da política externa ocidental e das suas tentativas de projetar a sua influência – ou poder brando (soft power).

O soft power ocidental na região assume diferentes formas, todas destinadas a predispor as pessoas para o Ocidente através de centros culturais, financiando a sociedade civil, sensibilização educacional, organizando eventos e incentivando o consumo de produtos culturais do ocidente.

À medida que os locais de poder mundial mudam e países como a China, a Índia e a Rússia competem pela influência com as presenças tradicionais da Europa e dos EUA, o soft power torna-se tão importante como a cooperação em segurança e o poder militar.

E à medida que cresce a raiva face ao apoio inabalável a Israel enquanto este bombardeia Gaza, ativistas em toda a região rejeitam-no, apontando para a hipocrisia ocidental em favorecer as vidas israelenses em detrimento das suas próprias.

Um manifestante segura uma placa manuscrita que diz: "Assassino de Macron. França, dégages! França terrorista".
Um manifestante em frente à embaixada francesa em Túnis segura uma placa que diz: “Macron é um assassino. França, saia! França terrorista! 

‘Crianças árabes não importam’

Muitos tunisianos vêem a atual presença do Ocidente no seu país como uma extensão do legado da colonização. Um legado que agora se prolonga e se expressa de forma explícita pelo conflito entre Israel e os territórios palestinos.

A retórica dos EUA e da Europa de que a luta pela liberdade, pela democracia e por todos os tipos de direitos é uma luta comum se desconstrói diante do fato de que as comunidades árabes e muçulmanas e as crianças não importam.

Israel tem relações diplomáticas tanto dentro do mundo árabe como fora dele, mas poucas são tão fortes como o seu vínculo com os EUA, que lhe fornece US$ 3,3 bilhões em ajuda militar todos os anos.

Em 18 de outubro, o presidente dos EUA, Joe Biden, visitou Israel para mostrar o seu apoio ao governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Sentado em frente a Netanyahu durante uma aparição pública em Tel Aviv, Biden disse-lhe: “Com base no que vi, parece que [o ataque ao Hospital al-Ahli] foi feito pela outra equipe, não por você”.

Netanyahu agradeceu-lhe pelo seu “apoio inequívoco”.

Um manifestante em Túnis segura uma placa feita à mão que diz: “O mundo não será destruído por aqueles que praticam o mal, mas por aqueles que os observam sem fazer nada”.
Um manifestante em Túnis denuncia inação após um atentado a bomba em um hospital em Gaza

Gala Riani, chefe de inteligência estratégica da agência de segurança S-RM, disse que a demonstração pública de apoio de Biden a Israel é apenas a mais recente de uma série de políticas que tornaram as pessoas mais cautelosas com os avanços do soft power ocidental.

A cautela, salientou ela, começou já na invasão do Iraque, há 20 anos, e no afastamento do antigo presidente dos EUA, Barack Obama, do Oriente Médio.

Isso não significa que o seu poder brando esteja completamente neutralizado. “Os EUA continuam a ter um certo elemento de ‘atração’ cultural para a região”, disse Riani.

Fora Ocidente!

Na Tunísia, tal como em grande parte do MENA (Médio Oriente e Norte da África), a influência ocidental está sofrendo resistência. Na Tunísia, a influente ONG anticorrupção I Watch anunciou que não aceitaria mais financiamento dos EUA devido ao seu apoio a Israel. Noutras partes do país do Norte da África, uma proposta de lei que limita a liberdade das ONG de agirem de forma independente está recebendo um novo impulso à medida que se espalha pela sociedade a percepção de que muitas das ONG locais do país são, na verdade, cavalos de Tróia da influência ocidental e dos padrões duplos (um peso, duas medidas).

Um tunisino empregado por uma ONG europeia falou da sua frustração com o apoio do governo doador a Israel. O edifício da ONG em Túnis foi vandalizado por manifestantes e o funcionário disse que compreende a raiva das pessoas que atacam o edifício.

A agência, disse o funcionário, supostamente demitiu todo o seu pessoal em Ramallah após o início das hostilidades. Segundo o funcionário, a medida confronta a opinião da maioria dos ativistas da ONG. No entanto, a organização financiada por um país europeu não explicita uma posição pública sobre o assunto.

Ao mesmo tempo, os anunciantes do canal de notícias Russia Today aumentaram desde que o Hamas invadiu Israel no início de outubro, possivelmente porque os concorrentes internacionais parecem não dialogar com o público árabe, além de silenciar o ponto de vista palestino.

“Penso que será muito difícil para o Ocidente se recuperar disto”, disse o ensaísta e comentador tunisino Hatem Nafti.

“É decepcionante para aqueles de nós que se preocupam com coisas como a democracia liberal e os direitos humanos ver essas causas minadas desta forma”, continuou Nafti, apontando como a Europa e as ações dos EUA em Israel tornaram quase impossível argumentar contra a situação da região. o argumento dos autocratas e ditadores de que a verdadeira preocupação do Ocidente com a democracia e os direitos se limitava aos brancos.

Os ativistas tunisianos denunciam votações no parlamento que prejudicam ONGs e lideranças que criticam o apoio dos EUA a Israel, sob a liderança do governo de Kais Saied.

Toda família tunisiana tem pelo menos um membro morando na Europa, o que contribui para formar uma opinião naqueles países que confronta a narrativa da mídia europeia. Essas pessoas percebem como seus governos ocidentais tratam os próprios árabes do Norte da África de forma desproporcional.

Joost Hiltermann, diretor do programa MENA do International Crisis Group, um grupo de reflexão, disse que o soft power europeu está comprometido. São manifestações que vão além do MENA, ao se expressarem em outras regiões da África com golpes militares mobilizados a partir de uma narrativa de desconfiança da presença francesa naqueles países (Níger, Gabão, Mali, Guiné, Sudão, Burkina Faso), acompanhada de simpatias pela Rússia de Vladimir Putin.

“A influência da Europa no Oriente Médio, já limitada, pode muito bem diminuir ainda mais à medida que as pessoas vêem o país pondo de lado os próprios valores que professa defender e procura exportar”, disse ele, antes do atentado ao hospital.

Ele apontou alguns políticos europeus que declararam apoio a Israel no início da guerra, com poucas menções à luta palestina. Incluem figuras como a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que sublinhou o “direito de Israel a defender-se” sem comentar as vidas palestinas perdidas.

“A decisão da Europa de declarar solidariedade com o seu aliado Israel, mas sem instá-lo a exercer contenção no seu ataque militar a Gaza, consistente com as suas obrigações ao abrigo do direito humanitário internacional, pode muito bem ter um preço elevado”, disse Hiltermann.

Com informações da Aljazira

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