Samuel Pinheiro Guimarães (1939-2024), o diplomata que os EUA odiavam

Embaixador e ex-ministro do governo Lula morreu nesta segunda-feira (29), aos 84 anos. Os conservadores o julgavam rebelde demais. A esquerda admirava sua resistência ao imperialismo

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A história da nociva influência dos Estados Unidos na América Latina passa pela colaboração não apenas de governantes subalternos da região – mas também de embaixadores e diplomatas. Daí a irritação que o empresário e diplomata Clifford Sobel manifestava diuturnamente com a política externa “altiva e ativa” dos primeiros governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Embaixador dos Estados Unidos no Brasil de 2006 a 2009, Sobel foi desmascarado por não poucos vazamentos do WikiLeaks, que vieram à tona em 2010. Em telegramas a seu país, ele reclamava de uma suposta postura “antiamericana” do Itamaraty. O principal alvo de sua choradeira era Samuel Pinheiro Guimarães.

Quando Lula indicou Pinheiro Guimarães para Ministério de Relações Exteriores (MRE), seu currículo era conhecido. Afastado de diversos cargos diplomáticos por contrariar o interesse pró-EUA dos governos brasileiros, o professor e embaixador brasileiro simbolizava o rumo que Lula queria dar à política externa brasileira.

Por sete anos, com Celso Amorim como ministro e Pinheiro Guimarães como secretário-geral, o Brasil promoveu uma reviravolta geopolítica em favor do Sul e, especialmente, da América Latina. Segundo Amorim, cabia ao País “definir uma diferença de atitude e consciência do povo brasileiro de mudar seu destino”.

Além de liderarem o esforço para inviabilizar a Alca (Área de Livre-Comércio das Américas), os dois projetaram a construção de novos organismos multilaterais. Um deles, a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), instituída em 2010, ousou deixar de fora os EUA, contrapondo-se à OEA (Organização dos Estados Americanos). Era o auge da crescente integração regional.

Os conservadores o julgavam rebelde demais. A esquerda admirava sua resistência ao imperialismo. Um dos telegramas “secretos” que o Wikileaks revelou, datado de janeiro de 2008, mostra que Pinheiro Guimarães incomodava os americanófilos brasileiros, como o então ministro da Defesa, Nelson Jobim.

Conforme o relato de Clifford Sobel, Jobim lhe teria dito que Pinheiro Guimarães “odeia os EUA e trabalha para criar problemas na relação”. Confrontado, o secretário-geral respondeu: “Amo o Brasil e não odeio nenhum país”. Na realidade, os EUA é que odeiam contestadores do tipo.

Em 2009, Pinheiro Guimarães trocou de pasta e virou ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Uma de suas missões era elaborar o projeto Brasil 2022 – um programa com propostas ousadas que o País deveria visar até o ano do bicentenário da Independência. O Brasil ali vislumbrado seria um exemplo de dinamismo econômico e soberania.

Não faltavam metas ambiciosas: dobrar os gastos públicos com o SUS (Sistema Único de Saúde); reduzir o consumo de combustível fóssil em 40%; zerar o déficit habitacional; construir ao menos uma praça esportiva em cada município; tombar 100% dos monumentos históricos; garantir igualdade racial na cúpula dos Três Poderes.

A operação Lava Jato, o golpe de 2016, os governos ultraliberais de Michel Temer e Jair Bolsonaro – tudo isso afastou o Brasil do destino traçado por Pinheiro Guimarães. Antes desses retrocessos, o embaixador foi alto-representante geral do Mercosul por dois anos. Professor por toda a vida, estava lecionando no Instituto Rio Branco, ligado ao MRE.

Autor de 20 obras, Pinheiro Guimarães é o tema de um livro sobre seu legado, de autoria do historiador Sergio Lamarão – o lançamento está previsto para este ano. O embaixador morreu na manhã desta segunda-feira (29), aos 84 anos, antes da publicação. Um trecho do prefácio escrito pelo economista Paulo Nogueira Batista Jr. dá mostra da perda que o Brasil acaba de ter:

“Samuel é um desses brasileiros que ainda não receberam o reconhecimento que merecem. Trata-se de um dos maiores diplomatas da sua geração, talvez o maior. Mas como, pode-se perguntar, se ele não foi ministro das Relações Exteriores, nem embaixador em Washington ou outros postos prestigiados do chamado circuito Elizabeth Arden? Ora, ora, isso lá tem importância fundamental? Além de ser um excepcional servidor público, Samuel construiu e constrói uma vasta obra intelectual. Não é um simples burocrata, como são muitos dos seus colegas, nem um simples contador de histórias, como eu, mas um pensador, um pensador do Brasil e das relações internacionais.”

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