Segurança pública deve ser pensada como um direito social

Conferência diz que é preciso mudar o foco da segurança pública para envolver todos os entes federativos, reduzir homicídios e encarceramento e garantir direitos

Especialistas debatem segurança pública. Foto: Cuca Nakasone

A constituição de um sistema de segurança pública que seja concebido a partir do direito social e que seja capaz de dar respostas às necessidades do país foi um dos temas debatidos na primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada pela Associação Nacional de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC), nesta sexta-feira (24), na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. 

O primeiro painel teve como centro o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e o papel dos entes federados. O antropólogo, cientista político e ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luís Eduardo Soares, abriu o ciclo de palestras, fazendo um contraponto em relação ao discurso que se cristalizou na sociedade de que a segurança pública é uma agenda da direita, ao mesmo tempo em que esse segmento político conduziu tal área, na maior parte do tempo ao longo da história, de forma desastrosa. 

“Recentemente, tem sido reiterado que o campo das esquerdas, progressista, democrático, não tem discurso, não tem proposta e por isso a direita, a extrema direita e os fascistas impõem a agenda (da segurança pública). Fico perplexo com isso porque, por outro lado, a sociedade brasileira reconhece que a segurança pública no Brasil é um desastre. E quem produziu essa tragédia, ao longo do tempo, foram justamente esses setores”, apontou. 

Segundo ele, essa tragédia levou o Brasil a ter uma enorme população carcerária, majoritariamente formada por pobres e negros; execuções extrajudiciais e um verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres nas periferias e territórios vulneráveis, bem como na irracionalidade e desfuncionalidade dos atores e instituições envolvidos. 

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Soares argumentou que o alto número de homicídios dolosos no país — de 47,5 mil pessoas apenas em 2022, com quase 77% de vítimas negras, segundo do Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — é inaceitável, mas foi sendo naturalizado pela opinião pública em geral por envolver, sobretudo, a população negra. 

“Estamos falando de questões que têm a ver com racismo estrutural, com as classes sociais no Brasil e suas expressões territoriais. Se não fosse assim, a sociedade civil já teria se rebelado e não só secretários e comandantes teriam sucumbido, mas governos teriam caído”. 

Ele chamou atenção, ainda, para o fato de que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e a que cresce mais rapidamente. De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o país tem 852 mil pessoas cumprindo pena, das quais 650 mil estão presas em celas físicas. A grande maioria, 68%, é de negros, segundo o FBSP.

“O subgrupo que explica essa explosão demográfica no sistema penitenciário é aquele formado pelos que estão lá por acusação ou aguardando julgamento de, ou cumprindo a pena por, tráfico de substâncias ilícitas. Já passaram de 30% e é o subgrupo que mais cresce e de maneira veloz”, explica. 

Nesse conjunto, a maioria é de pequenos varejistas do comércio de substância ilícita. E, considerando os dados disponíveis, Soares diz que eles, em geral, são presos sem armas, sem ter praticado ato de violência e sem apresentar vínculos reconhecidos, orgânicos, com organizações criminosas. 

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“Mas essa política suicida, absurda, racista e classista tratará de resolver essa não vinculação com o crime organizado”, diz. Isso porque no Brasil a Lei de Execuções Penais (LEP) não é devidamente aplicada em boa parte dos casos, de maneira que nem sempre os detentos são separados de acordo com a sua periculosidade. 

Além disso, os presídios são comandados, internamente, por facções do crime organizado. “Então, quando um sujeito chega para cumprir a sua pena, precisa garantir, primeiro, a sua sobrevivência, depois, um mínimo de dignidade e, assim, vai ter de negociar com quem manda”, pontua Soares. 

Por consequência, o preço dessa segurança será a lealdade a essa facção, inclusive quando essa pessoa deixar a prisão. “Muitas vezes se fala de ‘universidade do crime’, com a ideia de que há uma espécie de imantação recíproca, de contaminação por valores perversos, de socialização do mal. E não é disso que se trata. Se trata de vida e de um negócio em que se troca a sobrevivência pelo vínculo”, salienta. 

Com esse tipo de política, explica, a sociedade está encarcerando “centenas de milhares de pessoas, de jovens não violentos, não criminosos, condenados não a cinco anos de reclusão, mas a uma vida no crime”. Portanto, conclui, “estamos perdendo gerações e atingindo também as suas famílias, que são submetidas a essa dinâmica desastrosa”. 

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De acordo com o antropólogo, isso acontece porque há uma combinação perversa entre o modelo institucional policial e a política criminal, nesse caso específico, a Lei de Drogas. “A polícia mais numerosa e que está presente em todo o Brasil é a militar. Ela é cobrada por todos para produzir e entende como produção a prisão; assim, ela se devota a encarcerar. Entretanto, é proibida, institucionalmente, de investigar”, afirma. 

Nesse sentido, o que lhe resta fazer é “render em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de flagrante delito? Ele são os principais? Não. É aí que entra essa Lei de Drogas, absolutamente irracional, que criminaliza jovens pobres varejistas. A PM, buscando prender em flagrante, recorrerá a essa ferramenta para lançar a rede e capturar aqueles que operam ostensivamente”. 

Por outro lado, acrescenta, quem trabalha no atacado e participa dos bilhões de dólares do tráfico internacional de cocaína “não são os alvos de uma polícia que, por definição, não pode investigar”.

Crime globalizado

Foto: Cuca Nakasone

Lilian Cintra de Melo, da Secretaria Nacional de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, destacou a proposta defendida nesta semana pelo ministro Ricardo Lewandowski de haver uma reforma constitucional para que o Susp seja um verdadeiro “SUS da segurança pública”. 

Uma das justificativas de Lewandowski para a medida é que educação, saúde e segurança são os serviços públicos essenciais e, portanto, essa mudança seria responsável por melhorias operacionais e de qualidade do serviço prestado à população.

Nesse sentido, Lilian, diz que é preciso “dar efetividade ao Susp, ver como transformá-lo num sistema de observância obrigatória. Esse é um caminho em que a União precisa ter força de coordenação para que a gente consiga implementar”. 

Ao traçar um panorama sobre a violência em âmbito mundial e como o Brasil se insere nesse contexto, Lilian lembrou que, em 2021, 52 pessoas foram assassinadas, por hora, em todo planeta, o que configura um índice de homicídio de 5,8 por 100 mil habitantes, de acordo com o Global Study of Homicide, da ONU. Ao todo, foram 458 mil homicídios intencionais registrados no mundo naquele ano, dos quais 40% foram cometidos com armas de fogo. 

Os dados desse relatório, diz, “ilustram um cenário de crise aguda, considerando principalmente o continente americano. Nas Américas, o índice era de 15 homicídios para cada 100 mil habitantes, no continente africano, era uma escala muito próxima e em outros continentes, temos índices mais favoráveis, como 2,9 na Oceania, 2,3 na Ásia e também na Europa. Essa diferença é extremamente marcante”, destaca. 

Além disso, aponta, dados de 2017 da ONU “já ilustravam um cenário de degradação na América Latina em comparação a outras partes do mundo e já se descrevia um incremento no encarceramento em todas as Américas. A do Sul chegou a ter 260 aprisionados por 100 mil habitantes, enquanto o resto do mundo apresentava uma queda ou estabilidade da população carcerária. Na Europa Ocidental, chegou a 130 por 100 mil habitantes”. 

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Nesse cenário, e considerando a realidade brasileira, Lilian avalia que “existe um aumento consentâneo da criminalidade e do encarceramento, ou seja, há uma retroalimentação que a gente precisa pensar com cuidado para delinear esse sistema de segurança pública”. 

Ela destaca que “o incremento do encarceramento não nos revela uma diminuição na criminalidade, muito pelo contrário. A gravidade dessa situação é muito bem ilustrada com o reconhecimento do estado de coisa inconstitucional, apontado pelo STF, no sistema carcerário brasileiro”. 

Segurança como direito social

Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reforçou que “talvez o mais importante movimento que tenhamos de fazer é deslocar o debate da segurança pública de um tema exclusivamente penal e criminal para fazer um debate sobre a segurança pública como um direito social”. 

Ele explicou que o processo constituinte de 1988 colocou a questão da segurança pública sob três diferentes aspectos: no artigo 6º, está colocada sob o prisma das políticas sociais universais e no 5º, no âmbito da cidadania; porém, no artigo 144, a questão acaba sendo mimetizada conforme a arquitetura constitucional de 1969. “Ou seja, acabou ficando como direitos antagônicos na mesma carta constitucional, com diferentes grupos de pressão em cada uma dessas áreas”. 

Por isso, em referência ao posicionamento de Lewandowski já apontado, Lima avalia como um importante passo o fato de um ministro de Estado “endereçar o problema no sentido de disciplinar a segurança como um direito social”. 

Com isso, seria possível mudar a interferência negativa da segurança pública na vida das pessoas. Ele citou como exemplo dessa interferência a forma como a polícia age no Rio de Janeiro. “Numa operação, a PM sobe o morro e para a vida de 70 mil pessoas; para escola, para posto de saúde e as pessoas não podem ir trabalhar. Se vamos pensar a segurança como um direito social, é preciso conceber outra forma de fazer a polícia agir”, considerando a necessidade de se combater o crime organizado e de assegurar o respeito à população.  

Em um segundo painel, o evento tratou ainda das estratégias para o enfrentamento da dinâmica do crime organizado, tema ministrado pelos professores Pierpaolo Cruz Bottini, do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da USP, e Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV).

A conferência contou com as participações dos coordenadores da ADJC nacional, Aldo Arantes, e de São Paulo, José Carlos Pires, além do presidente da Fundação Maurício Grabois, Walter Sorrentino. O evento teve o apoio da FMG, da Ouvidoria da PM-SP, SASP, Sintect-SP, Centro Acadêmico XI de Agosto, Direitos Já e AGM.