Edital de câmeras corporais da PM-SP traz retrocesso que põe sistema em risco

Ouvidor da Polícia diz ao Vermelho que as mudanças vão no sentido oposto dos avanços do Programa Olho vivo, que é modelo ao poupar vidas de policiais e reduzir a letalidade das abordagens

Uso de câmeras corporais nos uniformes de policiais da Polícia Rodoviária Federal. Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

O governo de São Paulo lançou nesta quarta-feira (22) um edital para a contratação de 12 mil novas câmeras corporais para a Polícia Militar. Conforme o documento, a gravação de vídeos pelo equipamento deverá ser realizada de forma intencional, deixando a cargo dos policiais a decisão de registrar ou não uma ocorrência, o que desvirtua o sentido do programa, conforme especialistas.

Na tarde de quinta-feira (23), a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que o acionamento das câmeras será obrigatório. Contudo, na prática, a mudança pode dificultar investigações de atos de violência policial, já que a decisão sobre ligar ou não o equipamento ficará a critério dos agentes.

Especialistas alertam que a ausência de gravação contínua pode aumentar o uso da força de forma indiscriminada e sem controle; dificultar a produção de provas para investigações; diminuir a proteção dos próprios policiais que possam estar em situações de risco ou ter sua conduta questionada.

Em declaração ao Portal Vermelho, Claudio Aparecido da Silva, ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, expressou preocupação com as mudanças propostas no edital para as câmeras corporais. Ele afirmou que a extinção da gravação ininterrupta e a redução do período de armazenamento dos vídeos de 365 para 30 dias representam um grande retrocesso.

“As modificações propostas no edital vão na direção contrária dos avanços do Programa Olho Vivo, que tem servido de modelo para o Brasil e diversos países do mundo, além de ter poupado vidas de policiais em recordes históricos, reduzido a letalidade policial, especialmente no público de crianças e adolescentes, além de melhorar a qualidade das evidências, cooperando com a economicidade processual como um todo.”, disse ele, alertando que o governo está ideologizando a tecnologia.

Alterações no sistema de gravação

Atualmente, há 10.125 câmeras em operação no estado, com gravações divididas em duas categorias: de rotina e intencionais. As gravações de rotina registram todo o turno do policial sem necessidade de acionamento, enquanto as gravações intencionais são ativadas pelos policiais e guardadas por um ano.

O novo edital menciona apenas gravações intencionais, onde o acionamento para captura de imagens poderá ser feito de forma remota pelo Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) ou pelo próprio policial, com transmissão ao vivo para a central.

Posição da Secretaria da Segurança Pública

A SSP afirmou que avaliações indicaram problemas de autonomia de bateria nos equipamentos de gravação ininterrupta e altos custos de armazenamento. Segundo a secretaria, essas condições inviabilizavam a expansão do sistema. A nota completa da SSP destacou:

“As avaliações apontaram a maior incidência de problemas de autonomia de bateria nos equipamentos de gravação ininterrupta, bem como a elevação dos custos de armazenamento, vez que parte expressiva do material captado não é aproveitada. Tais condições inviabilizavam a expansão do sistema.”

Silva criticou a justificativa de melhorias tecnológicas e economia apresentada pelo governo, argumentando que estudos realizados pelas mais relevantes instituições do Brasil e do mundo atestam o avanço civilizatório representado pela adoção das COPs nos modelos atuais, além do foco no que interessa, ao final das contas: vidas são salvas com o uso pleno e transparente dessa tecnologia.

“Portanto é urgente que estes dados e benefícios sejam amplamente conhecidos por toda a população e, com ela e suas representações legítimas, discutidos em profundidade. Esta Ouvidoria entende que a vida – de cidadãos, policiais e demais agentes – é o foco maior de toda a ação da segurança pública e que não pode ser colocada em risco a partir de medidas obscuras e parciais”, afirma.

Defesa do governador

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), defendeu o acionamento remoto das novas câmeras corporais, afirmando que trará mais “governança” às gravações das ocorrências policiais:

“Você tem a possibilidade de retroagir no tempo. Então, se houver um estampido, o Copom pode acionar a câmera com o tempo retroativo. Você tem uma governança muito melhor do que vai ser gravado, tem um compliance [conformidade com as normas] maior”, afirmou o governador.

Impacto nas Investigações

Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, vê com preocupação a falta de clareza sobre as formas de gravação das novas câmeras corporais. Ele afirma que a gravação ininterrupta reduz significativamente o uso da força e facilita a fiscalização do trabalho dos policiais.

“Quando a câmera não tem a discricionariedade do policial, ou seja, quando ela grava todo o turno, há uma redução muito grande do uso da força. E isso ocorre por vários motivos: pelo policial atuar dentro da legalidade e pela pessoa que está sendo filmada não escalar a situação”, explicou Edler.

Histórico e Controvérsias

De acordo com a SSP, a licitação deve gerar uma economia entre 30% a 50% em relação ao contrato anterior. A expectativa é que o custo das novas câmeras caia para cerca de R$ 500 cada, comparado aos R$ 1 mil dos equipamentos atuais.

Desde a implantação do programa “Olho Vivo” em julho de 2020, as câmeras corporais têm sido elogiadas por reduzir a letalidade policial. Em 2023, uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas com a USP demonstrou que batalhões com câmeras corporais tiveram uma redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenção policial.

No entanto, a gestão Tarcísio de Freitas tem enfrentado críticas por esvaziar investimentos no programa. Em outubro de 2023, o governador decidiu cortar R$ 15 milhões da verba destinada ao programa, justificando a medida com a queda na arrecadação.

O ouvidor da Polícia observa que o atual governo do Estado de São Paulo “tem se pronunciado em manifestações claudicantes, com idas e vindas, ora na condenação total do sistema, ora em sua aparente defesa”. Desta forma, coloca em dúvida qual seja a real posição do governo sobre a implantação e uso das COPs na segurança pública na atualidade em todo o Brasil.

A Ouvidoria também avalia que, ao contrário do que diz a SSP sobre o vídeo de rotina, “tem, sim, muita utilidade”. Para Cláudio Silva, o acionamento a critério do agente, a redução do tempo de guarda e a exigência de habilitação técnica para que as empresas participem do certame de concorrência de apenas 4% do objeto licitado, são “graves retrocessos que colocam todo o sistema em risco”.

Claudio Aparecido da Silva ressaltou que a Ouvidoria entende que a vida – de cidadãos, policiais e demais agentes – é o foco maior de toda a ação da segurança pública e que não pode ser colocada em risco a partir de medidas obscuras e parciais. “Estudos realizados pelas maiores instituições do Brasil e do mundo atestam o avanço civilizatório representado pela adoção das COPs nos modelos atuais, além do foco no que interessa, ao final das contas: vidas são salvas com o uso pleno e transparente dessa tecnologia,” concluiu ele.

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