João do Rio é homenageado na Festa Literária de Paraty 2024

O jornalista e escritor registrou o cotidiano da elite e do povo carioca e as transformações da cidade, na virada do século XX, por seu olhar astuto.

João do Rio é o homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty 2024

A 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) terá como homenageado o autor João do Rio, pseudônimo do jornalista e escritor Paulo Barreto (1881-1921), um dos mais importantes nomes da literatura carioca do século XX, em suas primeiras décadas. A celebração será realizada de 9 a 13 de outubro de 2024.

João do Rio é reconhecido como um dos maiores cronistas do Brasil, famoso por sua habilidade em fundir literatura e jornalismo, criando um estilo inovador que mesclava ficção e realidade. Aos 29 anos, ingressou na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 26.

“Muito se diz que a crônica, como ela se deu no Brasil, é um gênero totalmente brasileiro. Vem um pouco da tradição do ensaio, claro, mas aqui ganhou pitadas de humor, de observação sagaz. João do Rio, como um dos pioneiros, foi além: registrou a história de uma cidade que se transformava, e não é exagero dizer que ele fez uma etnografia no início do século”, explica Ana Lima, curadora da Flip.

Desde 2019, com Euclides da Cunha, a Flip não homenageava um autor masculino. Em 2020, a escolha por Elizabeth Bishop foi cancelada, e em 2021, o evento destacou um tema. As últimas homenageadas foram Maria Firmina dos Reis em 2022 e Pagu em 2023.

Vida e Legado

Cronista, romancista, ensaísta, contista, dramaturgo e conferencista, João do Rio trabalhou toda a sua vida em jornais e revistas, sendo um pioneiro como repórter. Sua obra é marcada pela observação atenta das ruas e do povo, refletindo sobre o progresso e as contradições urbanas da época. “João do Rio não separou jornalismo de literatura. Sua busca por transformar o ofício em grande arte é um convite a pensarmos no fazer literário em seu campo expandido”, diz Mauro Munhoz, diretor artístico da Flip.

João do Rio desempenhou um papel crucial ao documentar a vida urbana do Rio de Janeiro, especialmente durante um período de expansão desordenada da então capital federal. “Ainda hoje, o crescimento predatório faz parte da realidade de diversas cidades brasileiras, como Paraty. É com essa sensibilidade etnográfica, presente na literatura de João do Rio, que convidamos moradores e visitantes a estar no território que abriga a festa”, comenta Munhoz.

Um Personagem Multidimensional

João do Rio, filho de pai branco e mãe negra, era um personagem controverso e multifacetado. Fascinado por Paris e, ao mesmo tempo, amante das vielas do Rio de Janeiro, ele explorava a cidade dividida entre a fome de progresso e suas raízes. Sua morte precoce, aos 39 anos, vítima de um ataque cardíaco, não impediu que ele deixasse um legado robusto: 25 livros e mais de 2.500 textos publicados.

“João do Rio era e continua sendo uma figura contraditória. Por um lado, era fascinado por Paris; por outro, subia os morros do Rio de Janeiro com muito gosto. Ainda que tenha morrido famoso – seu enterro arrastou multidões –, permaneceu quase esquecido por mais de um século. A homenagem da Flip quer destacar essas contradições, justamente por ajudarem a explicar o Brasil”, completa Ana Lima.

Contribuições Culturais

João do Rio foi um cronista arguto da Belle Époque carioca, descrevendo salões e recepções da elite, e também um observador atento das manifestações culturais populares. Ele desbravou diversas áreas do conhecimento, desde as religiões de matriz africana até a tradução e divulgação das obras de Oscar Wilde, desafiando preconceitos e especulações sobre sua sexualidade. Vestido como um dândi, ele nunca passou despercebido.

Sua homenagem na Flip 2024 não só celebra seu impacto na literatura e no jornalismo, mas também convida a uma reflexão sobre a relevância de seu trabalho na compreensão das transformações urbanas e sociais do Brasil.

A fascinante vida e época de João do Rio

Em seu depoimento, o biógrafo João Carlos Rodrigues, autor de “João do Rio: uma Biografia”, pinta um retrato vibrante e complexo do Rio de Janeiro no período em que o escritor viveu e trabalhou. O Rio de Janeiro daquela época era bem menor do que conhecemos hoje, estendendo-se da Praça da Bandeira até o Largo do Machado, com bairros como São Cristóvão ainda abrigando o Imperador. A cidade era marcada por chácaras e pequenas propriedades que, com o tempo, foram loteadas e transformadas em áreas urbanas.

A população e a sociedade

O Rio de Janeiro do final do século XIX e início do século XX era uma cidade com uma população diversificada. Metade da população era composta por pessoas livres, enquanto a outra metade consistia de imigrantes e escravizados. Com a abolição da escravatura em 1888, muitos libertos já habitavam a cidade, tendo conquistado sua liberdade através de diversos meios, como as leis do sexagenário e do ventre livre, ou comprando sua própria liberdade. A cidade começou a receber um número crescente de imigrantes que chegavam ao porto na Praça 15, buscando novas oportunidades.

A infraestrutura da cidade era precária, especialmente nas áreas dos cortiços, que abrigavam ex-escravizados e imigrantes sem recursos. Esses cortiços eram insalubres, com pouca higiene e superlotação. Algumas hospedarias eram tão lotadas que as pessoas dormiam sentadas, sustentadas por cordas que, ao amanhecer, eram cortadas para que todos acordassem. Esse tipo de acomodação rudimentar era conhecido como hospedarias “marca-barbante”.

A Pequena África

Um dos locais mais emblemáticos mencionados por Rodrigues é a Pequena África, uma área rica em cultura afro-brasileira, onde a avó de João do Rio, Amália Caldeira, uma mulher de origem negra e gaúcha, viveu. João do Rio cresceu no centro da cidade, numa família que ascendeu socialmente graças à educação e ao trabalho do pai, um professor positivista do Rio Grande do Sul. A família de João do Rio era intelectualmente ativa, convivendo com figuras proeminentes como José do Patrocínio, um importante jornalista negro.

João do Rio era um observador incansável da vida urbana, documentando a diversidade cultural e social da cidade em suas crônicas. Ele frequentava diversos ambientes, desde os cortiços até os salões da elite. Em seu livro “A Alma Encantadora das Ruas”, publicado em 1908, ele capturou a essência da cidade em transformação, descrevendo profissões, costumes e a vida cotidiana de seus habitantes.

O Candomblé e as Religiões do Rio

Um dos aspectos mais fascinantes de seu trabalho foi sua investigação sobre as religiões afro-brasileiras. Em “As Religiões no Rio”, ele descreveu detalhadamente as práticas do candomblé, entre outras religiões, revelando um lado da cidade que muitos preferiam ignorar ou marginalizar. Sua obra ajudou a mudar a percepção pública sobre essas práticas, mostrando respeito e seriedade em suas descrições.

João do Rio também foi um dos primeiros a documentar o surgimento do samba e do choro, gêneros musicais que se tornariam emblemáticos da cultura carioca. Ele frequentava as rodas de samba e as casas das tias baianas, figuras centrais na preservação e promoção dessas tradições musicais. Sua atenção a esses detalhes culturais contribuiu significativamente para o reconhecimento e valorização dessas manifestações artísticas.

Um pioneiro da reportagem

João do Rio foi pioneiro em muitas áreas do jornalismo e da literatura brasileira. Ele foi o primeiro a explorar profundamente as ruas e a vida cotidiana do Rio de Janeiro, trazendo à tona histórias e personagens que compõem a rica tapeçaria da cidade. Seu legado perdura, oferecendo um olhar único sobre uma época crucial na formação da identidade cultural do Brasil.

João Carlos Rodrigues destaca que João do Rio, apesar de enfrentar preconceitos devido à sua origem mestiça e homossexualidade, nunca deixou de ser um defensor ardente da diversidade cultural da cidade. Sua obra permanece um testemunho vital da vida urbana carioca no início do século XX, um período de intensa transformação social e cultural.

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