Lei do ‘notório saber’ não se aplica a policiais lecionando

A especialista em Educação, Madalena Peixoto, questiona nova resolução do governo Tarcísio, em SP, em que militares darão aulas em áreas com professores graduados para tal.

Avança projeto para escolas cívico-militares contratarem militares inativos das Forças Armadas para atuarem como professores. Foto: Reprodução/RRTV

São Paulo está no centro de uma controvérsia educacional com a recente resolução do governo estadual que permite que policiais militares da reserva ministrem aulas de política e ética nas escolas cívico-militares. Este movimento, parte do “Projeto Valores”, tem gerado debates, especialmente em torno do uso do argumento do “notório saber”.

Assinada pelo secretário-executivo da Educação, Vinícius Neiva, e pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, a resolução prevê aulas semanais sobre política, ética e “valores cidadãos”. Os conteúdos incluem princípios como civismo, honestidade, respeito e os direitos e deveres do cidadão, visando o exercício consciente da cidadania.

O notório saber

Madalena Guasco Peixoto, diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP e secretária-geral da Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino), questiona a proposta, apontando a contradição central: o uso inadequado do conceito de “notório saber”. Segundo Peixoto, a legislação permite que especialistas sem formação acadêmica específica, mas com vasto conhecimento prático, lecionem em áreas onde não existem cursos de graduação formais. Exemplos disso incluem disciplinas técnicas ou artesanais, como marcenaria.

“Sociologia, política e ética são áreas com cursos de graduação específicos. A lei do ‘notório saber’ não se aplica aqui, pois existem professores qualificados para essas disciplinas na rede”, afirmou Madalena.

A inadequação dos policiais como professores

Ela esclareceu que, apesar das alegações do governo, a legislação vigente não sustenta a prática de policiais ministrando disciplinas como política e ética. E argumenta que não há justificativa para que policiais, cuja formação é centrada na aplicação da lei e muitas vezes carece de enfoque em direitos humanos, ministrem disciplinas que requerem profundo conhecimento acadêmico e pedagógico. Ela destaca que tanto a sociologia quanto a filosofia são áreas bem definidas que abrangem política e ética, e que já possuem professores devidamente qualificados.

“Que ética e que política um policial vai ensinar? A formação deles não os qualifica para esses temas e, além disso, temos professores de sociologia e filosofia capacitados para isso”, questionou Peixoto.

Peixoto também criticou o modelo de escolas civis-militares, afirmando que ele contraria os princípios de autonomia e pluralidade que a educação deve promover. Segundo ela, este modelo é autoritário e não oferece um ambiente democrático e inclusivo para os alunos.

“Numa escola civil-militar, não existe democracia nem escolha. Existe autoridade e autoritarismo. Educação pressupõe questionamento e liberdade de ideias, o que não se coaduna com o modelo militarizado”, argumentou.

A resolução também é criticada por violar a autonomia escolar e desrespeitar o currículo aprovado, assim como as bases curriculares nacionais. Peixoto ressalta que a inclusão de tais disciplinas deve ser discutida e aprovada pela comunidade escolar, mantendo-se dentro dos parâmetros estabelecidos por educadores qualificados.

“Isso fere a autonomia das escolas e o currículo estabelecido. A educação deve promover o questionamento e a liberdade de ideias, algo que o modelo militarizado não permite”, argumentou.

Motivações ocultas

A educadora alerta para as possíveis motivações financeiras e ideológicas por trás da proposta, sugerindo que convênios deste tipo podem beneficiar associações de policiais militares financeiramente e promover uma doutrinação nas escolas.

“Estes convênios são uma forma de privatização que canaliza recursos para associações de PMs e promovem uma doutrinação ideológica”, afirmou.

Madalena conclui que a proposta do governo é infundada e prejudicial, violando princípios básicos da educação e não encontrando amparo na legislação vigente sobre o notório saber. Ela defende que a luta pela inclusão de disciplinas como filosofia e sociologia no ensino médio deve continuar, garantindo que sejam ministradas por profissionais qualificados.

“Devemos entrar com uma representação contra essa proposta. Ela fere a autonomia das escolas e o currículo aprovado, além de desrespeitar o verdadeiro conceito de notório saber”, finalizou.

Reação política

O PT e o PSOL também se posicionaram contra a medida. O PT solicitou a suspensão cautelar da resolução, alegando riscos sociais e econômicos graves e argumentando que a medida ameaça a ordem democrática e o Estado de Direito. Já o PSOL criticou a desvalorização dos educadores e argumentou que a lei invade a competência da União para legislar sobre educação.

“Os danos sociais são irreparáveis e as consequências políticas colocam em risco a democracia”, declarou o PT. O PSOL, por sua vez, enfatizou que “esta é uma clara desvalorização da categoria de educadores”.

Matriz curricular formativa

Em um contexto mais amplo, o Ministério da Justiça está revisando a matriz curricular das forças de segurança, com um foco renovado em direitos humanos e na redução da letalidade policial. Embora positiva, essa atualização não justifica a inclusão de policiais como professores de disciplinas que demandam formação acadêmica específica.

A proposta do governo de São Paulo de incluir policiais militares da reserva como professores em escolas cívico-militares é controversa, com o argumento do “notório saber” sendo a principal contradição. A medida é vista como inadequada e prejudicial, violando princípios educacionais básicos e levantando sérias preocupações sobre suas reais motivações e impactos na qualidade da educação.

“Precisamos de professores qualificados para ensinar ética e política, não de policiais que não possuem a formação adequada para essas áreas”, concluiu a sindicalista.

Autor