Comissão aprova PEC que acaba com aborto legal e põe vidas em risco
Direita volta a pautar fim da interrupção da gravidez garantido em lei. Iniciativa pune especialmente vítimas de estupro — em sua maioria, crianças e adolescentes
Publicado 28/11/2024 17:17 | Editado 29/11/2024 07:41
Setores conservadores e de extrema-direita voltaram a investir contra os direitos das brasileiras poucos meses após o “PL do Estuprador” sair da agenda da Câmara. Nesta quarta-feira (27), o tema foi ressuscitado na Comissão de Constituição e Justiça da Casa, que aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) proibindo o aborto até mesmo nas situações hoje permitidas em lei — nos casos de risco para a gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia.
A PEC 164/12 — proposta pelos ex-deputados Eduardo Cunha (RJ) e João Campos (GO) e relatado por Chris Tonietto (PL-RJ) — passou no colegiado com 35 votos a favor e 15 contrários.
Agora, a matéria segue para análise de uma comissão especial e, depois, será votada no Plenário da Câmara. Para ser aprovado, o texto precisará da anuência de pelo menos 308 parlamentares, em dois turnos.
Durante a sessão que aprovou a proposta, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), foi enfática: “Nós não estamos aqui debatendo a ampliação do direito ao aborto, não estamos aqui discutindo o aborto em qualquer situação. O que está em debate aqui é o direito à vida, e o direito à vida também de uma gestante de alto risco, de uma criança que não pode ser mãe, principalmente vítima de estupro. Criança não é mãe, e estuprador não é pai.”
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A deputada destacou ainda que a proposta vai contra o desejo da maioria da população brasileira: “As pesquisas de opinião todas são amplamente favoráveis ao aborto legal no caso de estupro e no caso de risco de vida da gestante. Esse é o debate central. Não está em debate ampliar direitos ao aborto, mas sim garantir o que já está previsto no Código Penal desde 1940.”
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) também reagiu de maneira contundente: “É uma crueldade sem limites em que as vidas de crianças e mulheres estupradas viram alvos da ideologia medieval do bolsonarismo. Tenho orgulho de ter votado não! Vamos derrotar essa aberração na Comissão Especial, no Plenário e, principalmente, nas ruas de todo o país”.
A PEC é uma nova tentativa da extrema-direita de acabar com direitos estabelecidos há décadas e fundamentais para garantir a vida, a dignidade e a saúde das brasileiras, tal qual ocorreu com o Projeto de Lei 1904/24.
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Apresentado por outro deputado extremista de direita, Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ), a matéria propõe equiparar a pena para a interrupção da gestação acima de 22 semanas à de homicídio, com 20 anos de prisão, mesmo para vítimas de estupro.
A aprovação do regime de urgência para tramitação do PL, em junho, resultou numa ampla mobilização popular, nas ruas e nas redes, contrária à proposta. Diante da repercussão negativa, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), propôs a criação, neste segundo semestre, de uma comissão para debater o tema, o que ainda não ocorreu.
Mobilização feminina
Presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM), Vanja Andreia Santos apontou a gravidade da proposta e a afronta que representa debater este tema justamente no período em que os movimentos feministas estão mobilizados pelos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, que teve início no dia 20 de novembro e se estende até 10 de dezembro.
Vanja classificou a sessão desta quarta-feira como um “circo de horrores” e lamentou o fato desse ataque aos direitos conquistados pelas mulheres vir de duas deputadas, a relatora e a presidente da CCJ, Caroline de Toni (PL-SC), ambas de extrema-direita. “São mulheres que não conseguem lançar um olhar solidário e de empatia à situação de tantas outras que enfrentam os mais variados tipos de violência”, destacou. Para ela, ao contrário do que dizem seus defensores, essa PEC “não tem compromisso nenhum com a vida, isso não existe, é balela”.
Com o tema de volta à agenda parlamentar, Vanja diz que devem ser retomadas as mobilizações, como ocorreu no meio do ano, quando esteve em pauta o PL do Estuprador. “Vamos nos mobilizar em todos os lugares em que nós atuamos — e quando eu falo nós, eu não falo apenas da UBM, mas do movimento de mulheres como um todo, das diversas entidades e fóruns de mulheres — para barrar essa proposta porque ela é realmente um grande retrocesso”.
Cultura do estupro
Segundo dados do Anuário 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada seis minutos, um estupro acontece no Brasil, totalizando cerca de 84 mil casos. O aumento em 2023 em relação a 2022 foi de 6,5% e, entre 2011 e 2023, houve uma explosão de 91% no número de estupros.
Do total ocorrido no ano passado, 76% das vítimas eram vulneráveis e 61% tinham até 13 anos de idade. Ou seja, muitas das vítimas de estupro são meninas que, segundo as propostas da extrema-direita, são obrigadas a arcar com uma gravidez resultante de uma dupla violência: por ter sido à força e contra uma pessoa indefesa.
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Tais propostas, portanto, só vêm a piorar um quadro que já é terrível. De acordo com informações do governo federal, cerca de 380 mil partos foram realizados no Brasil em 2020 por mães com até 19 anos. No caso de meninas com até 14 anos, em 2022 houve mais de 14 mil gestações.
E, segundo levantamento feito pelo The Intercept Brasil no ano passado, entre 2015 e 2020, menos de 4% das meninas de 10 a 14 anos vítimas de estupro tiveram acesso ao aborto legal. “Ao todo, foram 362 procedimentos em crianças e adolescentes frente a mais de 132 mil estupros nessa faixa etária. A estimativa é de que aproximadamente 9,2 mil deles tenham resultado em gravidez”, diz a reportagem.
Ao jornal O Globo, o ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco declarou, quando do debate sobre o PL do Estuprador, que “cerca de 80% dos estupros são contra crianças e adolescentes que muitas vezes nem sabem o que é gravidez. São violentadas por pessoas em quem elas confiam, próximas, como pai, padrasto, tio, avô, e nem têm noção do que está acontecendo. Meninas de 10, 11 anos, indefesas, que têm medo das ameaças e da culpa”.