Gravidez infantil expõe falhas do Estado e abandono de meninas

Especialistas alertam para omissão institucional: 14 mil meninas deram à luz em 2023, mas só 154 acessaram o aborto legal previsto em casos de estupro.

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Quase 14 mil meninas entre 10 e 14 anos se tornaram mães no Brasil em 2023. Dessas, apenas 154 conseguiram acesso ao aborto legal, embora todas fossem vítimas de estupro e tivessem direito à interrupção da gestação garantido por lei. Os dados foram apresentados pela obstetra Ida Peréa Monteiro, presidente da Associação de Obstetrícia de Rondônia, durante o Congresso de Ginecologia e Obstetrícia, realizado na última semana no Rio de Janeiro.

“Uma menina não engravida, ela é engravidada. Nós não podemos imputar a ela essa responsabilidade. E a gente tem que se referir a esses casos como gravidez infantil, gravidez de criança”, afirmou Ida, chamando atenção para o que considera um apagamento da violência sofrida por essas meninas.

A legislação brasileira é clara: relações sexuais com menores de 14 anos são consideradas estupro presumido, ou seja, o consentimento não é legalmente reconhecido. Apesar disso, apenas 1,1% das meninas que engravidaram nessa faixa etária em 2023 conseguiram realizar um aborto legal — direito previsto pela Constituição em casos de violência sexual.

Para Ida, os números refletem um fracasso sistêmico. “É uma tragédia que revela um fracasso coletivo e tem consequências graves, a interrupção da trajetória educacional, o comprometimento do desenvolvimento físico e emocional, a reprodução do ciclo de pobreza e exclusão social e o maior risco de complicações obstétricas e de mortalidade materna e infantil”, disse a médica.

Desde 2017, a notificação de qualquer gestação em meninas de até 14 anos é obrigatória ao Ministério da Saúde e às autoridades de segurança. No entanto, segundo a especialista, a maior parte dessas crianças não é informada de que pode legalmente interromper a gestação, tampouco recebe acolhimento adequado nos serviços de saúde.

Um dos obstáculos mais críticos, segundo os especialistas, é a baixa oferta de unidades habilitadas para realizar o procedimento. “Hoje são menos de 100 hospitais em todo o país que fazem aborto legal”, destacou Ida.

Negação ativa de direitos

O médico Olímpio Barbosa de Morais Filho, diretor do hospital Cisam, em Recife — referência nacional no atendimento a vítimas de violência sexual — denuncia que há sabotagem ativa do direito ao aborto legal por parte de profissionais que se opõem ao procedimento.

“A objeção de consciência é relativa, não é absoluta. E é o nosso papel, mesmo quando você tem objeção de consciência, informar a pessoa sobre os seus direitos. Porque ela tem direito à saúde e você escolheu se preocupar com a saúde de terceiros. Provavelmente, se fosse oferecido o aborto legal, a grande maioria dessas meninas teria expressado esse desejo. Ou muitas vezes, elas até expressam, mas as portas são fechadas”, afirmou o obstetra.

Morais destaca que o direito à interrupção da gravidez é da vítima, e não da família ou dos profissionais envolvidos. “Se a decisão da família é conflitante com a decisão da menina, a gente precisa buscar a decisão judicial para suprir esse consentimento através do Ministério Público, da Defensoria Pública, porque quanto mais tempo demora, mais você está submetendo aquela menina a sofrimento”.

O médico ficou nacionalmente conhecido em 2020, ao acolher no Cisam uma menina de 10 anos grávida de um agressor, após o caso ser negado em seu estado de origem. O episódio gerou repercussão nacional e acirrou os ataques contra defensores do aborto legal.

Desde então, projetos de lei têm buscado limitar o acesso à interrupção da gravidez, como a proposta que equipara aborto após 22 semanas ao crime de homicídio — apelidada por organizações sociais de “PL do Estupro”. Morais alerta: “Essa limitação prejudicaria especialmente as crianças e adolescentes vítimas de violência”.

Consequências fatais

A omissão do Estado diante dessas meninas não se traduz apenas em sofrimento psicológico. Também custa vidas. Entre 2019 e 2023, 51 meninas entre 10 e 14 anos morreram por complicações da gestação — eclampsia, infecções generalizadas ou abortos clandestinos. A razão de morte materna nessa faixa etária é de cerca de 50 por 100 mil nascidos vivos, quase o dobro da registrada entre mulheres de 20 a 24 anos.

“A mortalidade materna infantil é um desfecho extremo da violência sexual e da negligência institucional. Somos nós falhando como sociedade. Nós temos que proteger nossas meninas para que elas possam crescer, estudar e prosperar”, conclui Ida.

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com agências

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