Minoria de propriedades concentra mais de 80% do desmatamento no Brasil

Relatório do MapBiomas revela que megaimóveis rurais são os principais responsáveis pela destruição ambiental, desafiando políticas públicas e pressionando o setor agropecuário a mudar de rumo

Operação de fiscalização do Ibama em 2018 (Foto: Fernando Augusto/Ibama)

O Relatório Anual do Desmatamento (RAD) de 2024, lançado pelo projeto MapBiomas Alerta, traz dados que indicam uma mudança significativa na dinâmica do desmatamento no Brasil, mas também revela uma polêmica persistência. Pela primeira vez desde 2019, houve redução do desmatamento em todos os biomas brasileiros — Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal — e até mesmo em áreas urbanas. No entanto, menos de 1% dos imóveis rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) foram responsáveis por 81,4% dos alertas de desmatamento validados no Brasil em 2024.

A revelação do relatório MapBiomas Alerta, divulgado em 15 de maio, expõe o grau de concentração da destruição ambiental e desafia a narrativa dominante de que o desmatamento é amplamente distribuído entre pequenos produtores ou comunidades tradicionais. Latifúndios concentrados nas mãos de empresários poderosos são os que persistem nas práticas ilegais e danosas, confiando na impunidade e dificuldades de fiscalização.

O CAR, ferramenta de autodeclaração obrigatória para propriedades rurais, deveria ajudar no planejamento ambiental, registrando áreas de preservação e uso sustentável. Mas, na prática, tornou-se um sistema vulnerável a fraudes e omissões. A sobreposição entre os alertas de desmatamento e registros no CAR mostra que 88,7% da área desmatada no ano passado ocorreu em propriedades cadastradas — muitas delas sem autorização ou em desconformidade com a lei.

Agropecuária é a principal causa da perda de vegetação nativa

Mapa dos alertas de desmatamento no Brasil em 2024.

Entre 2019 e 2024, mais de 97% da perda de vegetação nativa no Brasil teve relação direta com a pressão da agropecuária. O dado inclui expansão de pastagens, cultivo de grãos como soja e milho, além de atividades ilegais. O Cerrado, por exemplo, registrou 83,7% do desmatamento em 2024 associado ao avanço agrícola, mesmo com uma queda de 75,5% em relação ao ano anterior.

“A maioria dos produtores já entendeu que é possível aumentar a produtividade sem desmatar. O problema está concentrado em uma minoria resistente a abandonar práticas nocivas”, afirma Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas. Ele ressalta que essa concentração de impactos dificulta a responsabilização e prejudica os esforços de conservação do setor como um todo.

Reincidência e impunidade marcam atuação de desmatadores

O relatório também aponta que 46,3% das propriedades com alertas em 2024 já haviam desmatado em anos anteriores. Além disso, 3,5% desses imóveis apresentaram registros de desmatamento em todos os últimos seis anos — um retrato de impunidade e falha na fiscalização. Essa reincidência indica que as penalidades existentes não estão surtindo efeito, e que os mecanismos de controle ambiental ainda são ineficientes frente às grandes operações rurais.

A concentração dos alertas em poucos imóveis favorece, por outro lado, a adoção de medidas seletivas de controle e sanção. Políticas públicas mais rigorosas poderiam bloquear o acesso ao crédito rural e aos mercados nacionais e internacionais dessas propriedades reincidentes, sem penalizar produtores comprometidos com práticas sustentáveis.

Falta de transparência dificulta fiscalização eficaz

Atualmente, apenas 17 estados e o governo federal disponibilizam dados de autorizações para supressão de vegetação em formatos acessíveis. Estados como Alagoas, Santa Catarina e Rio Grande do Norte sequer publicam essas informações, criando “zonas cegas” no controle ambiental. Isso compromete a integração entre os dados do CAR, os sistemas de monitoramento remoto e as bases de fiscalização, como aponta o relatório.

A falta de padronização dificulta a fiscalização, o controle social e a tomada de decisão por parte de instituições financeiras e governos.

  • Apenas 17 estados + Governo Federal disponibilizam dados em formatos adequados para análise geoespacial.
  • Dez estados (AC, AL, MA, MS, PE, RJ, RN, RR, SC e SE) não publicam essas bases em plataformas públicas acessíveis.
  • Em alguns casos, os dados existem, mas são difíceis de processar, carecem de atualização ou não contêm coordenadas geográficas.

A crítica ao modelo atual de autodeclaração é crescente. Especialistas defendem que o CAR passe por auditorias independentes e que sua integração com outros sistemas de controle seja obrigatória e automatizada, para aumentar a confiabilidade das informações e reduzir a margem para irregularidades.

Consequências econômicas e pressão internacional

Para Rosa, os dados do levantamento ganham relevância diante da nova regulamentação de importação de commodities da União Europeia, que visa a proibir a compra de produtos provenientes de áreas florestais desmatadas após 31 de dezembro de 2020, mesmo que o desmatamento tenha ocorrido legalmente. 

Cerca de 310 mil imóveis rurais — 4% do total com CAR — podem ser afetados por barreiras comerciais da União Europeia, que exige rastreabilidade livre de desmatamento para importar produtos agrícolas. A concentração de alertas em menos de 1% das propriedades facilita a aplicação de sanções direcionadas, evitando punições generalizadas à cadeia produtiva.

“A União Europeia quer diferenciar os produtores. Se o país estabelece um bom sistema de controle, e o Brasil tem capacidade para fazer isso, a tendência é que o acesso ao mercado seja facilitado. Este é um diferencial nosso em relação a outros países”, afirma o coordenador técnico. Para Rosa, a mudança não deve ser lida como um risco para a agropecuária, mas como uma forma de dar transparência à cadeia produtiva.

O MapBiomas também lançou uma metodologia para que instituições financeiras utilizem seus dados na análise de risco ambiental ao conceder crédito rural. Isso pode representar uma virada no financiamento do agronegócio, tornando o histórico ambiental uma variável-chave para acesso a linhas de financiamento.

Redução histórica: quase um terço a menos de desmatamento em cinco anos

Segundo o RAD 2024, o Brasil desmatou 153.886 hectares em 2024, contra 231.434 hectares em 2023, representando uma redução de 33,5%. Esse é o menor valor registrado desde o início da série histórica do MapBiomas Alerta, em 2019.

A Amazônia e o Cerrado concentraram 82,9% de todo o desmatamento registrado em 2024. Mesmo com redução nos índices, esses biomas seguem como os mais pressionados. No Pantanal, a média de área desmatada por evento chegou a 117 hectares — a maior do país —, indicando o peso de grandes operações de pecuária. Já na Mata Atlântica, 32,6% do desmatamento ocorreu em áreas urbanas, exigindo políticas específicas de ordenamento territorial.

O relatório destaca que proteger biomas estratégicos é essencial não apenas para a biodiversidade, mas também para o clima global. A degradação contínua desses ecossistemas compromete a regulação hídrica, a estabilidade do regime de chuvas e a própria resiliência da agricultura brasileira.

Densidade de área desmatada no Brasil em 2019, 2020, 2021, 2022, 2023 e 2024. a) Mapa de calor por área desmatada; b) Mapa de calor por evento de desmatamento.

Reduzir o desmatamento é possível, mas exige políticas integradas

O RAD 2024 representa um passo importante no entendimento do problema e na formulação de políticas públicas eficazes. A redução do desmatamento em todos os biomas demonstra que é possível frear a degradação ambiental com ações coordenadas entre governo, sociedade civil, setor produtivo e comunidade científica.

No entanto, os números também expõem fragilidades no sistema de fiscalização, na gestão de bases de dados ambientais e na luta contra a ilegalidade. Para consolidar os avanços, será necessário:

  • Ampliar investimentos em monitoramento remoto e inteligência ambiental
  • Fortalecer os órgãos de controle e aumentar a transparência dos dados
  • Combater com rigor os grandes responsáveis pelo desmatamento ilegal
  • Promover políticas de regularização fundiária aliadas à preservação ambiental

Como afirma o relatório, “a cada ano, avançamos na consolidação de um raio-x mais completo sobre o desmatamento no Brasil. Mas o desafio permanece: transformar dados em decisões e garantir que o país construa um futuro com menos desmatamento e mais esperança.”

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