Com militares no banco dos réus, Ana Penido analisa a militarização da política
Pesquisadora aborda, em entrevista ao programa desta quinta-feira (19), os impactos do julgamento de generais, a formação dos oficiais, a tutela política e a justiça militar
Publicado 19/06/2025 18:00 | Editado 19/06/2025 17:08

No Entrelinhas Vermelhas desta quinta-feira (19), a cientista social e pesquisadora Ana Penido fez uma análise contundente sobre o momento inédito da história brasileira: generais sendo julgados na Justiça comum por participação em tentativa de golpe. Para ela, trata-se de um marco simbólico que rompe com o padrão histórico de impunidade reservado às altas patentes das Forças Armadas.
“A anistia sempre foi seletiva. Quando a tentativa de golpe veio da direita, houve impunidade. Quando veio da esquerda ou de militares de baixa patente, houve punição”, afirmou.
Segundo Ana, o julgamento de militares em tribunais civis representa uma quebra de lógica, já que a Justiça Militar, com seus próprios sistemas de educação, inteligência e julgamento, tradicionalmente atua como uma instância paralela — muitas vezes favorecendo seus membros. Ainda assim, ela alerta para as limitações do processo: “Há cumplicidades, conversas informais e penas brandas. Mesmo condenados, muitos cumprem pena em ambientes militares”.
Assista à íntegra da entrevista:
Cultura de casta e sentimento de superioridade
Ana Penido é autora do recém-lançado Como se faz um militar, que analisa a formação na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) entre 1995 e 2012. No programa, ela destacou o isolamento cultural dos militares em relação à sociedade civil, o que alimenta o sentimento de tutela sobre a política nacional.
“O militar vive em um universo fechado. Só começa a interagir com civis aos 50 anos, nas escolas de guerra. Isso reforça uma lógica de superioridade e a ideia de que eles sabem governar melhor.”
Segundo Ana, esse distanciamento fomenta uma visão distorcida sobre o papel das Forças Armadas, cuja função deveria ser a defesa nacional e não a intervenção política. A pesquisadora também abordou o “etos bélico” que passou a ser valorizado nos últimos anos, com a militarização de gestões públicas e o uso simbólico de camuflagens, sigilo e ordem rígida.
A Justiça Militar: autonomia e opacidade
Respondendo a uma pergunta da jornalista Larissa Gould, Ana explicou que a Justiça Militar tem duas instâncias e atua com grande autonomia. “Ela julga tanto civis quanto militares em casos que envolvem a instituição. Mas o mesmo crime pode ter penas diferentes dependendo de quem o comete”, observou.
O problema, segundo a pesquisadora, é a falta de transparência e de estudos sistemáticos sobre seu funcionamento. Em muitos casos, não há sequer um processo formal: um soldado atrasado pode ser punido diretamente por seu superior. “É um sistema fechado e autorreferente.”
Bolsonaro e o carisma da indisciplina
Questionada sobre a adesão de militares ao bolsonarismo, Ana destacou que a figura de Jair Bolsonaro, embora marcada pela indisciplina no Exército, exerce um tipo de liderança que falta em muitos oficiais.
“Bolsonaro assumiu riscos, fez o que os outros não fizeram. Enquanto generais se omitiam, ele dava a cara a tapa. Isso atraiu segmentos militares, além de setores do Judiciário, da mídia e da sociedade civil.”
Mesmo com histórico de punições na caserna, Bolsonaro foi progressivamente readmitido nos círculos de poder militar, refletindo a convergência de interesses autoritários e a dificuldade de ruptura dentro das Forças Armadas.
A importância de estudar os militares
Ana compartilhou o motivo de seu interesse pelo tema. A contradição entre o passado de Dilma Rousseff e José Serra na resistência à ditadura e a homenagem prestada por cadetes da AMAN ao general Médici em pleno século XXI a intrigou.
“Os jovens da minha idade que estavam na AMAN tinham uma leitura completamente oposta da nossa história. Isso me levou a querer entender como são formados.”
O livro Como se faz um militar não é introdutório, mas oferece uma chave para entender a formação intelectual e emocional dos futuros oficiais. Ana defende que mais jovens — sobretudo da esquerda — se dediquem ao tema.
“Não existe democracia consolidada sem compreender o papel dos militares. Precisamos encarar o tema com seriedade e tratá-lo como política pública, com participação popular.”
A entrevista com Ana Penido reforça a urgência de debater o papel das Forças Armadas no regime democrático e no futuro institucional do Brasil.