Relatório denuncia dispersão forçada, violações e políticas repressivas na “cracolândia”
Documento apresentado por GTI coordenado pela antropóloga Amanda Amparo propõe abordagem humanizada, transversal e denuncia “higienização social” na região central de São Paulo
Publicado 28/06/2025 10:09 | Editado 28/06/2025 10:38

Foi apresentado na noite desta sexta-feira (27), no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, o relatório final do Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI) sobre a região conhecida como “cracolândia”, fruto de meses de escutas e visitas de campo entre 2023 e 2024. O relatório faz um amplo diagnóstico da atual situação na região da Luz e propõe diretrizes concretas e humanizadas para a construção de políticas públicas voltadas às pessoas em situação de vulnerabilidade social e usuárias de substâncias psicoativas.
“A iniciativa mais ampla já feita sobre o tema”, resume a antropóloga e assessora Amanda Amparo, coordenadora da elaboração do relatório. O documento consolida informações obtidas ao longo de sete reuniões realizadas na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal com moradores, comerciantes, usuários, servidores da ponta, pesquisadores e gestores públicos. O Grupo de Trabalho foi conduzido pelo deputado estadual Eduardo Suplicy e pela vereadora Luna Zarattini (ambos do PT).
Cracolândia espalhada: o preço da repressão
O documento denuncia que a atual política da prefeitura de São Paulo e do governo estadual desestruturou o “fluxo” da cracolândia, mas não solucionou os problemas estruturais — apenas os espalhou por outros pontos da cidade. “A dispersão não é solução. É, na verdade, multiplicação do problema”, afirma Amanda Amparo.
Vias como a Avenida Duque de Caxias, Rua dos Gusmões, Rua Helvétia e até a Praça da República passaram a concentrar usuários em busca de abrigo, formando novas “cenas de uso”. Segundo o promotor de Justiça Arthur Pinto Filho, membro do GTI e observador da região há mais de uma década, “o que se está fazendo ali é criar um inferno em vida”.
O relatório também denuncia a prática de internações forçadas, com tempo médio de 15 a 20 dias, como medida paliativa ineficaz. “Essa política violenta não leva à reintegração social. Apenas rotula e remove, sem garantir direitos”, conclui o promotor.
Racismo estrutural como eixo da exclusão
Outro ponto central do relatório é a constatação de que o racismo estrutural é determinante para a conformação histórica da cracolândia. A maioria da população afetada é negra, com trajetória marcada por exclusão, repressão, ausência de moradia e acesso precário à saúde, educação e trabalho. A recomendação é que o combate ao racismo institucional seja incorporado como eixo transversal em todas as políticas públicas para o território.
“Não estamos falando apenas de uso de substâncias. Estamos falando de corpos vulnerabilizados pelo Estado, pelas políticas, pela história”, diz Amanda.
Violência cotidiana e “limpeza” institucional
O relatório também traz denúncias de violência sistemática praticada por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) durante ações de “limpeza” diária na Rua dos Protestantes, epicentro da cena até recentemente. Usuários relataram agressões, rasgos de notas de dinheiro e tortura psicológica.
A antropóloga Roberta Costa, da Craco Resiste, denuncia que o cercamento da região e a “limpeza” são práticas que humilham e invisibilizam. “É a institucionalização da tortura diária contra pessoas já profundamente fragilizadas”, afirma.
Apesar disso, a Prefeitura de São Paulo, em nota, defendeu que as ações da GCM são “pautadas pelo respeito e pela dignidade da pessoa humana”.
MP acionado por suspeita de higienização
O esvaziamento repentino da região nas últimas semanas motivou Suplicy e Luna a acionarem o Ministério Público de São Paulo. Eles pedem investigação sobre denúncias de remoções forçadas e transporte de usuários para bairros periféricos ou até municípios vizinhos, como Guarulhos, muitas vezes em vans e sob pagamento com notas de R$ 100, segundo relatos.
Em nota, a prefeitura de Guarulhos confirmou que está apurando a chegada de pessoas vindas da capital sem articulação prévia.
Políticas que ignoram o vínculo e falham na transversalidade
O relatório sustenta que a fragmentação das políticas públicas é um dos maiores entraves à reintegração dos usuários. “A moradia é central. Sem casa, não há tratamento, não há saúde possível”, diz Amanda. O documento recomenda políticas integradas entre saúde, assistência, habitação e justiça, com foco em redução de danos — não repressão.
O Programa Redenção, da prefeitura, é criticado por adotar a lógica de internações em comunidades terapêuticas, sem enfrentar os fatores estruturais da exclusão.
Dados da prefeitura e contestação dos pesquisadores
A gestão municipal afirma que houve uma redução de 73% na média de pessoas na Rua dos Protestantes entre janeiro e dezembro de 2024, com mais de 18 mil encaminhamentos para serviços sociais. Mas Amanda Amparo alerta: “Redução no local não significa melhora nas condições de vida. Onde estão essas pessoas? Em que condições?”
A prefeitura informa ainda que usa drones e câmeras com reconhecimento facial para monitorar a região, além de realizar duas limpezas diárias. O uso de grades, segundo denúncias, transformou os usuários em “cenas de zoológico humano”.
Caminho proposto: cuidado, vínculo e dignidade
O GTI propõe que o relatório seja adotado como ferramenta de transformação política e sirva como modelo replicável para outras cidades enfrentando situações semelhantes. A aposta é no vínculo, na escuta, na transversalidade e na dignidade. “Não existe tratamento eficaz sem respeito à história e à humanidade dessas pessoas”, conclui Amanda Amparo.
Em contraposição à lógica punitivista e de remoção forçada, o relatório defende um caminho civilizatório, nas palavras do promotor Arthur Pinto Filho. “É hora de romper com a barbárie travestida de política pública.”