Proibição contra Hugo Calderano expõe ameaça a eventos internacionais nos EUA
Ao proibir atletas como o mesa-tenista, a burocracia migratória cada vez mais arbitrária do país ameaça a realização de eventos como a Copa do Mundo de 2026 ou a agenda da ONU sediada em Nova York
Publicado 03/07/2025 23:20

Quando o brasileiro Hugo Calderano, número 3 do ranking mundial de tênis de mesa, anunciou que estava fora do WTT Grand Smash em Las Vegas por causa de entraves burocráticos para entrar nos Estados Unidos, o impacto foi sentido muito além das quadras. A ausência de um dos maiores nomes do esporte na atualidade não foi por lesão, falta de preparo ou recusa – foi resultado direto de uma política migratória que se torna, a cada dia, mais opaca, arbitrária e excludente, inclusive para atletas de elite.
Com cidadania portuguesa, Calderano poderia entrar nos EUA por meio do programa de isenção de visto (ESTA). Mas foi informado, após contato com a Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP), que sua entrada estava vetada por ter visitado Cuba em 2023, para disputar o Campeonato Pan-Americano, um evento oficial do calendário olímpico.
O que parece um detalhe técnico esconde uma engrenagem política altamente seletiva e punitiva, que criminaliza trajetórias legítimas, profissionais e, em muitos casos, diplomáticas. Calderano, assim como outros atletas, pesquisadores e defensores de direitos humanos, tornou-se vítima de um sistema migratório que opera por suposições políticas disfarçadas de segurança nacional.
A política da exceção: Cuba como pretexto, exclusão como prática
A regra que impediu a entrada de Calderano foi implantada em janeiro de 2021, e reforçada durante a gestão Biden, que manteve Cuba na lista de países “patrocinadores do terrorismo”, ao lado de Irã, Coreia do Norte e Síria. Qualquer estrangeiro que tenha passado por esses países desde essa data perde automaticamente o direito ao ESTA, mesmo que a viagem tenha sido para fins humanitários, acadêmicos ou esportivos.
A política é tão inflexível quanto contraditória: os EUA mantém relações comerciais com países que violam sistematicamente direitos humanos, como a Arábia Saudita, mas sancionam rigidamente quem teve qualquer vínculo com Cuba, mesmo que de caráter esportivo oficial.
No caso de Calderano, a proibição não levou em conta o contexto da viagem, a ausência de vínculo político com o regime cubano ou sua atuação como embaixador do esporte mundial. Pior: mesmo com o apoio da Associação de Tênis de Mesa dos EUA e do Comitê Olímpico e Paralímpico dos EUA, o atleta não conseguiu sequer uma entrevista emergencial para o visto regular.
O custo da paranoia: eventos internacionais sob risco
A rigidez das fronteiras americanas está se tornando uma ameaça direta à realização de grandes eventos internacionais. Com a Copa do Mundo de 2026 e os Jogos Olímpicos de Los Angeles em 2028 no horizonte, a incapacidade do país em garantir regras claras, rápidas e previsíveis de entrada levanta dúvidas legítimas sobre se os EUA estão preparados para ser anfitriões globais.
O próprio vice-presidente JD Vance, durante coletiva sobre a Copa, ironizou sobre a deportação de torcedores que ficarem além do tempo permitido, sugerindo uma atmosfera de ameaça e desconfiança contra estrangeiros.
“Teremos visitantes de quase 100 países. Queremos que eles venham…”, disse Vance. “Mas quando o tempo acabar, eles terão que ir para casa, caso contrário, terão que falar com a secretária [de Segurança Interna] Noem.” Essa é Kristi Noem, a mulher que atirou em seu próprio cachorro. Não é alguém com quem você queira conversar quando ela está de mau humor”. Isso não é só um problema de relações públicas – é um obstáculo à diplomacia cultural, científica e esportiva.
Do esporte à ciência: uma fronteira que filtra ideologias
Calderano não está sozinho. Pesquisadores, estudantes e defensores de direitos humanos têm relatado interrogatórios políticos, busca de celulares, cancelamento de vistos e deportações sumárias. Casos como o da pesquisadora russa Kseniia Petrova, detida sem justificativa em fevereiro, ou do advogado libanês-americano Amir Makled, revistado e questionado sobre seus contatos pessoais, revelam que a fronteira americana se tornou um campo de coleta de dados e vigilância ideológica.
O YouTuber Hasan Piker, cidadão americano, foi detido por horas ao retornar da França. Segundo ele, os agentes sabiam quem ele era e questionaram suas opiniões políticas, especialmente sobre o conflito Israel-Palestina.
Mais grave ainda, restrições a países da ONU como Haiti, Irã, Iêmen e Eritreia estão impedindo delegações de participar de reuniões oficiais nas próprias Nações Unidas, sediadas em Nova York. O caso de Abdul-Rahman Koroma, ativista da Serra Leoa impedido de apresentar um documentário sobre deficiência e clima, simboliza o isolamento crescente dos EUA em temas globais.
A diplomacia dos algoritmos: controle sem transparência
A lógica migratória americana se baseia em decretos vagos e interpretações discricionárias, como os Executive Orders 14161 e 14188, que permitem barrar estrangeiros por “ideologia” ou “risco à ordem pública”. A ausência de critérios transparentes e a possibilidade de inspeção de dispositivos eletrônicos criam um sistema de punição prévia sem direito à defesa.
Segundo a ACLU, até mesmo green cards e vistos válidos não protegem os viajantes, que podem ter seus dispositivos confiscados ou sua entrada negada por se recusar a fornecer senhas. O direito à privacidade, nesses casos, é suspenso na “terra de ninguém” entre o desembarque e a imigração.
Uma burocracia contra o mundo
O caso de Hugo Calderano escancara mais do que uma falha técnica: revela o quanto a burocracia migratória dos EUA tornou-se um instrumento de exclusão seletiva, travestido de segurança. O país que se pretende liderança global não pode operar sob critérios secretos, ideológicos ou punitivos, especialmente quando se compromete a sediar os maiores eventos esportivos, culturais e acadêmicos do planeta.
Se até um atleta de elite, com cidadania europeia e apoio institucional bilateral, é barrado por visitar Cuba em missão esportiva, o que dizer de estudantes, pesquisadores, artistas e ativistas de países periféricos?
Essa política não isola apenas indivíduos. Isola os Estados Unidos do próprio mundo.