Travestis, trans e lésbicas pedem anistia por violações durante a ditadura militar

Entidades LGBTQIA+ entregam denúncia histórica à Comissão de Anistia e exigem reparações por perseguições sofridas nas décadas de 1960 a 1980, apontando omissão e violência institucionalizadas como políticas de Estado

Manifestação nas escadarias do Theatro Municipal em São Paulo, 13 de junho de 1980 Imagem: Companhia das Letras/Divulgação do livro "Contra a moral e os bons costumes — A ditadura e a repressão à comunidade LGBT", de Renan Quinalha

Pela primeira vez na história do Brasil, travestis, mulheres transexuais e lésbicas podem ser reconhecidas oficialmente como vítimas de perseguição política durante a ditadura civil-militar. A denúncia inédita foi apresentada nesta segunda-feira (7) à Comissão de Anistia pelo movimento LGBTQIA+, por meio da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

O pedido, com base na Lei nº 10.559/2002, que trata da anistia política, reivindica o reconhecimento do Estado como responsável pelas prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e censura sistemática contra essa população, especialmente em operações como a Rondão, Sapatão e Tarântula, realizadas em São Paulo nos anos 1980. A ação também pleiteia indenizações, pedido público de desculpas, criação de um memorial e revisão de legislações repressoras.

A repressão sistemática contra identidades dissidentes

No centro da denúncia estão os efeitos devastadores de uma repressão estruturada para perseguir “subversivos” e “desviantes”, como eram classificados pelo regime militar aqueles que destoavam dos padrões heteronormativos. Com base em extensa documentação histórica, análises jurídicas e relatos de sobreviventes, a Antra e a ABGLT demonstram como o Estado brasileiro perseguiu sistematicamente pessoas LGBTQIA+, especialmente travestis, mulheres trans e lésbicas, durante o regime de 1964 a 1985.

Operações como a “Rondão” – conduzida pelo delegado José Wilson Richetti e oficialmente chamada de “Limpeza” – consistiam em verdadeiras caçadas urbanas. Cerca de 300 a 500 pessoas eram presas por noite sob a justificativa de “vadiagem” ou “atentado aos bons costumes”. Travestis eram alvejadas como alvos preferenciais, muitas vezes submetidas à violência, à tortura e ao exílio social.

Cultura silenciada e corpos censurados

‘Operação Bonecas’ foi realizada em novembro de 1970 no Rio de Janeiro para apreender homossexuais Imagem: Companhia das Letras/Divulgação do livro “Contra a moral e os bons costumes — A ditadura e a repressão à comunidade LGBT”, de Renan Quinalha

O documento entregue à Comissão de Anistia também denuncia o apagamento cultural e econômico imposto à comunidade LGBTQIA+. A escritora Cassandra Rios, com 36 livros proibidos pela censura do regime, e os shows de travestis impedidos de acontecer sem autorização dos órgãos de repressão são alguns exemplos. Também foi citado o livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, banido por conter personagens homossexuais.

Além disso, a denúncia ressalta o papel da imprensa como cúmplice da perseguição. Reportagens que tratavam ações policiais como “limpeza” ajudaram a disseminar o discurso de ódio e associaram pessoas LGBTQIA+ à criminalidade e à aids, intensificando a exclusão e a violência social.

Marcos de resistência e memória viva

A denúncia busca também resgatar a resistência organizada em meio à repressão. Coletivos como o SOMOS (fundado em 1978), o Grupo Gay da Bahia (1980) e a histórica 1ª Marcha Gay (1983), além da imprensa alternativa — como O Lampião da Esquina e Chanacomchana — foram decisivos para a construção de uma identidade política LGBTQIA+ no Brasil.

Outro caso emblemático citado foi o brutal assassinato do diretor Luís Antônio Martinez, irmão de Zé Celso, morto com 107 facadas em 1987. As entidades entendem que o crime teve motivação homofóbica e foi consequência direta do ambiente de hostilidade institucional promovido pelo regime.

“Mais do que acerto de contas com o passado”

Bruna Benevides, presidente da Antra, é autora da denúncia Fernando Frazão/Agência Brasil

“Esta ação é pioneira em países que viveram ditaduras”, declarou Bruna Benevides, presidenta da Antra e autora da denúncia, elaborada em conjunto com estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Ela defende que o pedido não apenas confronta os abusos do passado, mas propõe uma nova lógica de construção de cidadania.

“A anistia pode ser um instrumento de justiça para as travestis presas injustamente. Tem tudo a ver com memória, envelhecimento e o reconhecimento das prisões arbitrárias contra pessoas trans”, afirmou. Para Benevides, o pedido carrega valor simbólico e político no enfrentamento global às agendas antitrans e pode inspirar ações semelhantes em outros países.

O papel do Estado e os nomes por trás da repressão

A denúncia também solicita a retirada de homenagens a figuras associadas à repressão, como o delegado Richetti, que dá nome à 1ª Delegacia Seccional de Polícia Centro de São Paulo. Além disso, são apontados como responsáveis o general Milton Tavares, ex-governadores Paulo Maluf e Paulo Egydio Martins, e autoridades da segurança pública e do DOPS.

Citações de autoridades da época mostram como a repressão era oficializada. Em fala registrada, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid justifica a ação do Estado contra os “desviantes” como proteção à moral da família brasileira diante do “comunismo internacional”.

GT de Memória LGBTQIA+ reforça denúncias

A entrega do pedido de anistia ocorre paralelamente à instalação do Grupo de Trabalho Memória e Verdade das Pessoas LGBTQIA+, ligado ao Ministério dos Direitos Humanos. Coordenado pelo professor Renan Quinalha, o grupo irá sistematizar informações históricas e propor políticas de reparação e não-repetição.

Durante a primeira reunião do GT, realizada em dezembro de 2023, a secretária Symmy Larrat destacou: “Não há justiça social sem entender esses períodos e seu impacto. O que foi vivido por essas pessoas tem que virar política pública, memória e garantia de direitos.”

A Constituição e a dívida histórica

Apesar da redemocratização e dos avanços recentes por decisões judiciais — como o uso do nome social, a união estável homoafetiva e a criminalização da homofobia —, a Constituição de 1988 falhou em reconhecer a diversidade de gênero e orientação sexual, limitando-se a proteger direitos com base no sexo de nascimento. A lacuna constitucional é um dos temas que permeiam a denúncia, ao mostrar que o pacto democrático foi excludente para a comunidade LGBTQIA+.

Caminhos para a reparação

As 21 medidas propostas incluem, além da anistia coletiva, indenizações, um pedido formal de desculpas, criação de espaço de memória, revisão de leis repressivas e políticas públicas que promovam a cidadania plena.

Ao pedir o reconhecimento do Estado como responsável por décadas de violência institucional, a Antra e a ABGLT apontam que não se trata apenas de reescrever a história, mas de garantir que ela não se repita.

“A anistia não é só sobre o passado. É sobre o futuro que queremos construir: um futuro onde nossas vidas estejam no centro das políticas públicas, do respeito e da dignidade”, conclui Bruna Benevides.

Com informações da Agência Brasil

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