“Cocalero”, um excelente filme sobre Evo Morales
O documentário Cocalero — que registra a campanha presidencial de Evo Morales, na Bolívia, em 2005 — mostra-se como o possível ganhador do prêmio máximo do Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata. Co-produção entre Bolívia e Argentina,
Publicado 14/03/2007 14:21
Para o diretor do filme, Alejandro Landes, que nasceu no Brasil, o futuro da Bolívia “está na mestiçagem”. Segundo o cineasta, “Evo é a síntese da mestiçagem da região: é um índio aymará que vira sindicalista e, defendendo o cultivo da coca, enfrenta a luta antidrogas norte-americana e gera uma onda nacionalista que o transforma no presidente do país”.
As palavras do diretor brasileiro — que cresceu no Equador e mora na Argentina — são uma sinopse do excelente documentário. O filme segue Evo durante três meses enquanto ele percorre o país junto com cultivadores de coca para “conscientizar” o povo, já pensando nas eleições presidenciais de dezembro de 2005.
Documentário puro
Cocalero segue o exemplo do brasileiro Entreatos, dirigido pelo documentarista João Moreira Salles, que acompanha o futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante as eleições de 2002. Mais do que isso, o filme de Alejandro Landes recorre ao formato do documentário puro.
O longa se limita ao registro das viagens de campanha de Evo, das suas conversas com os cocaleiros e com Leonilda Zurita, dirigente do partido oficialista Movimento ao Socialismo (MAS). Na época, Zurita se postulava como candidata a suplente no Senado. O destaque das filmagens vai para o modo especial como Evo interagia com o povo nos comícios pelo interior do país.
As viagens começavam às 5 horas, com um café da manhã em um mercado popular de La Paz. Às vezes, a refeição era acompanhada por seu chefe de campanha. Outras vezes, por quem se tornaria o seu vice, o sociólogo Alvaro García Linera, que se mostra como o artífice do governo de Evo, como se pode ver nas imagens rodadas em outubro de 2005.
A raiz de Evo
“A princípio esperava que a narração seguisse linhas raciais e étnicas. Mas, uma vez que comecei a filmar e conheci a estreita relação de Evo com os cocaleiros, apesar do alto grau de organização sindical dos agricultores, o trabalho foi por outro caminho”, relata Landes. “Esse movimento nasce da defesa do cultivo de coca durante a violenta guerra norte-americana contra as drogas — e essa é a raiz política de Morales.”
“O MAS é que cultivou a coca”, confirma Evo, sem eufemismos, durante uma reunião sindical em El Chaparre, zona subtropical do departamento de Cochabamba, no coração da Bolívia. O estilo “cinema-verdade” do filme sobressai nos ricos matizes que coexistem no país, especialmente no universo dos camponeses em que revela que a força de sua luta nasce do laço indissolúvel entre os homens e a terra.
Cocalero foi rodado com câmera na mão, sem iluminação artificial e narração em off. Muitas vezes, é possível ouvir o cineasta quando fala com Evo Morales. Mas esse mundo foi descoberto por acaso por Landes, quando se viu obrigado a parar as filmagens dos bastidores da campanha durante algumas semanas: Evo, de uma hora para outra, acusou a equipe de ser formada por “agentes da CIA”.
“Até hoje não sabemos de onde surgiu essa história e também não nos deram explicações. Nós fomos expulsos, mas Evo se retratou e voltou a ficar distante, igual aos seus seguidores”, recorda Landes, rindo. “Afinal, era uma acusação difícil de desmentir.”
Naturalidade
Cheio de frescor, Cocalero apresenta os fatos com sinceridade e pureza muito pouco vistas nesse formato. O espectador vai descobrindo o homem por trás da figura de Evo, com as suas qualidades e contradições. Pode-se ver um Evo criança assim que escuta em seu carro as canções da campanha e sorri com alegria infantil ao ouvir seu nome — “Evo sim, ianques não, morra o imperialismo”, entoa uma delas.
O líder boliviano se torna brincalhão quando convida as agricultoras a tomar banho no rio para amenizar o calor em El Chaparre. Ou quando desiste de usar em sua campanha uma foto em que sua atual vice-presidente aparece vestida com um chapéu aymará: “Ela fica parecendo uma mulherzinha”.
Também se vêem as incertezas de Evo quando, a poucos dias das eleições, ameaça tomar o poder à força em um programa de televisão, se alguma fraude alterar os resultados das eleições. Mas, na verdade, mostra simplesmente um homem consciente do seu lugar político na América Latina.
“Esse é o eixo do mal. Cuidado, rapaz”, diz Evo ao diretor do filme enquanto mostra uma foto em que está acompanhado de seus colegas Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba.
Os focos do filme
Cocalero se centra nas figuras de Evo e Zurita. Não é só um filme sobre a rebelião camponesa boliviana — mas também um retrato da América Latina. Simboliza a luta das culturas originárias da região, que, por meio da obra de Landes, falam de postergação, desesperança e desejos.
A naturalidade de Evo sentado no bosque, falando em aymará ou quechua com camponeses para contar-lhes propostas, demonstra que o então dirigente sindical cocaleiro não estava consciente de que ali residia o seu maior capital político. “Evo pertence ao universo indígena e também ao mundo dos brancos, por meio de seu papel de sindicalista”, resume Landes.
“Sua decisão de não vestir paletó e gravata nem um traje indígena, mas sim um híbrido entre os dois, não é uma mera decisão estética. É a síntese de sua pessoa e da reforma que pretende levar a cabo em seu país. Se aceitar a mestiçagem, a Bolívia poderá seguir adiante e terá um futuro promissor.” Eis a mensagem mais viva de Cocalero.