Primeiro discurso do papa: extrapolou

Por Bernardo Joffily
Somos um povo hospitaleiro e tolerante. Mas o Santo Padre foi inoportuno quando, assim que pisou no Brasil e na presença dos representantes do Estado brasileiro, pôs-se a “indicar os valores morais” sobre questões como a criminaliz

Joseph Alois Ratzinger, o papa Bento XVI, Sumo Pontífice da Igreja Católica, Bispo e Patriarca de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor do Príncipe dos Apóstolos, Supremo Pontífice, Primaz de Itália, Arcebispo e Metropolita da Província Romana, Soberano do Estado do Vaticano e Servo dos Servos de Deus, está no Brasil. Sua presença, para além das manifestações de devoção como a supermissa no Estádio do Pacaembu (São Paulo), avivou mais de uma polêmica na sociedade brasileira.
Idéias conservadoras e controvertidas



Em sua trajetória na hierarquia da Igreja, Ratzinger notabilizou-se por suas manifestações conservadoras sobre temas como aborto, divórcio, uso de preservativos, missas em latim, discriminação de mulheres e homossexuais.



Particularmente depois de 2001, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antes chamada Sacra Congregação da Inquisição Universal, e desde 1908 Sacra Congregação da Romana e Universal Inquisição, ou Santo Ofício), golpeou duramente a Teologia de Libertação. Este movimento renovador com vínculos populares, estava na época fortemente enraizado no Brasil; foi combatido sem piedade.



Ao lado dessas opiniões, debate-se o declínio da hegemonia católica no Brasil, de 75% da população em 1994 para 64% atualmente, segundo noticiou no domingo (6) o instituto Datafolha. A mesma sondagem aponta que muitos brasileiros, e muitos católicos brasileiros, não acompanham o papa em questões como o segundo casamento e o uso da camisinha.



Os assuntos internos da Igreja, e os outros



Respeito o papa, sobretudo em atenção aos que vêem nele o expoente máximo de suas sinceras crenças. Bento XVI foi nazista na juventude, porém proclama-se arrependido e não tenho por que duvidar desse arrependimento. Seus olhos, sobretudo quando sorriem, transmitem-me um quê de mefistofélico, mas deve ser, claro, só um impressão.



Admirei, no discurso de chegada, em especial o português fluente e escorreito, até na pronúncia do “ão” que é a tortura de tantos estrangeiros, mesmo quando poliglotas. Sua cultura e erudição é um dos poucos pontos de consenso em uma pessoa que desperta tantas e tamanhas controvérsias.



Tampouco discutirei como se edifica a portentosa catedral das instituições da Santa Madre Igreja. Eu não pertenceria a uma estrutura organizativa que recusa a todas as mulheres qualquer papel ou poder em seu seio, e se constrói integralmente de cima para baixo. Mas admito que este é um assunto interno da Igreja Católica e seus fiéis. Talvez algum bispo mais ousado se atreva a levantar temas assim na 5ª Conferência Episcopal da América Latina, que o papa abrirá em Aparecida do Norte (SP).



Referência inapropriada e indelicada



Mas, santo padre, assim como respeito as crenças e os assuntos internos das diferentes confissões religiosas, mesmo quando me intrigam, assombram  ou repugnam, sua santidade deve respeitar os debates da cidadania brasileira. Não foi delicada a referência de seu primeiro discurso em nossas terras, na presença do presidente Lula e de autoridades de Estado, a questões que, no Brasil, quem define soberanamente é o povo brasileiro.



Não foi apropriada, santo padre, a sua referência ao “respeito pela vida, desde a sua concepção até o seu natural declínio” – fórmulas que expressam a defesa da criminalização do aborto e da eutanásia. Mais ainda em uma frase que começa com afirmações radicais, peremptórias e irremovíveis, sobre “a alma deste povo,  bem como de toda a América Latina”.



O presidente Lula foi mais delicado, ao silenciar, na solenidade de boas-vindas, sobre esses temas de dissenso. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, cuidou de não fazer diante do papa suas argutas observações sobre o caráter machista da criminalização do aborto (“Infelizmente homem não engravida. Se engravidassem, teriam mudado de posição há muito tempo.”).



“Apenas indicar os valores morais”?



O aborto, santo padre, assim como o caráter laico de nossas escolas públicas, e as campanhas de prevenções da aids que fazemos com sucesso mundialmente reconhecido, são questões que compete ao Brasil e aos brasileiros resolverem. A posição de sua santidade a respeito é bem conhecida. Reafirmá-la, nas circunstâncias, foi inoportuno.



Em seguida, santo padre, seu discurso proclama que “a Igreja quer apenas indicar os valores morais de cada situação e formar os cidadãos”. Apesar do “apenas”, é uma pretensão que extrapola, mais ainda, repito, quando pronunciada na frente de representantes do Estado brasileiro.



Iremos ao referendo e ao debate



Na questão da interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, o debate na sociedade brasileira está aberto. E há indícios de que se encaminha para um referendo onde os eleitores decidirão soberanamente sobre o tema, como vem sugerindo oportunamente Temporão, por razões de saúde pública, desde sua recente posse no ministério.



As pesquisas de opinião pública no Brasil indicam, por enquanto, uma maioria favorável à legislação atual. Esta criminaliza “radicalmente” (para usar uma palavra do discurso papal) quem pratique o aborto, mais até do que na Arábia Saudita (embora as penas criminais sejam brasileiramente ignoradas, sob o olhar que só posso chamar de farisaico dos antiabortistas).



Pois iremos ao debate. Faremos como a América do Norte e a Europa (com exceção apenas da Irlanda e da Polônia, dois países onde é forte a influência do fundamentalismo católico). Faremos como Portugal, que proscreveu a interrupção voluntária da gravidez, no referendo de 1998, e depois mudou de posição e legalizou-o, no referendo de 11 de março passado.



Argumentos não faltam, tanto os de saúde pública como os morais, para que o Brasil saia, neste particular, da Idade Média para a modernidade. É certo que sua santidade a enxerga como  “a escuridão e o abismo da nossa era moderna” (expressão usada na mensagem de Páscoa deste ano), mas muitos de nós, que somos um povo novo, vemos nela esperanças de libertação, e queremos nos mobilizar.



Bento XVI versus João Paulo II



Estas reflexões não obedecem, santo padre, a um anticlericalismo maniqueísta. No pontificado de João Paulo II, apesar de seu conservadorismo predominante, aprendi a valorizar o esforço hercúleo do pontífice, já abatido pelos anos, na tentativa de deter a invasão militar do Iraque. Assim como dei apreço à sua coragem ao viajar a Cuba e condenar o bloqueio norte-americano.



Devo dizer que em seu pontificado, iniciado há mais de dois anos, ainda não achei alguma identidade desse gênero, ainda que pontual. Ouvi “lamentações” sobre a “matança contínua” no Iraque, mas sem nomear quem mata e quem morre. E ouvi sua desastrada proclamação em setembro passado (“A vontade do Deus do Islã não está subordinada à razão”) que provocou uma legítima onda de protestos, não só de muçulmanos mas de todos os quadrantes do humanismo – inclusive de ateus, como eu, que respeitam as crenças dos outros.



Santo padre, aqui no Brasil não temos santos, por enquanto – o primeiro será canonizado sábado, contra 626 italianos, 576 franceses e 102 alemães –, mas somos um povo hospitaleiro e tolerante. Toleramos até discursos de recém-chegados que passam as medidas. Quanto ao aborto, a camisinha, a união gay, o divórcio e similares, não extrapole: no Brasil, somos nós brasileiros que decidimos.