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Alexandre Pilati: O lírico cismado

O vasto e enigmático coração de Drummond é um signo insuperável da poesia em língua portuguesa

Vinte anos atrás, Carlos Drummond de Andrade nos deixava. Sua obra lírica, sempre viva desde 1930, permanece como pedra no caminho de quem lê, estuda e produz poesia no Brasil. São quase cem anos de influências e enigmas que uma obra consciente e longeva fez brotar. Há quem fale de um certo padrão-Drummond, que reveste os olhos de críticos, leitores e poetas. Uma sombra literária que (negue-se ou confirme-se) seria inescapável.


 


 


Talvez isso se deva ao fato de a obra de Drummond possuir, nos termos da história de nosso sistema literário, uma importância somente comparável à equação literária de Machado de Assis: moderna, nacional e negativa. Sobre esse tripé, a obra de Machado consolidou a formação da literatura brasileira. Também sobre ele, Drummond construiu um estatuto lírico capaz de resgatar, do meio da festa modernista, um olhar abrangente, tenso, inquieto e torto sobre as coisas do mundo, do Brasil e da poesia. O mineiro, com o tino rápido para a sintonia do lirismo com o real foi capaz de criar versos que viraram ditos de rua, quando a norma modernista rezava exatamente o contrário. Quem já não disse: “e agora, José?”. Sua voz lírica é, portanto, algo que viceja, pelo dinamismo e pela abrangência: sendo de um, é de todos; sendo única, é muitas.


 


 


A crítica tornou a questão sobre o estatuto do eu lírico drummondiano a busca central dos estudos sobre sua obra poética. Afonso Romano de Sant´ana foi o primeiro a obter uma visão abrangente do eu lírico de Drummond, carimbando-lhe definitivamente o rótulo da gaucherie. Em Drummond: gauche no tempo (Record, 1992), Sant´ana dá cores cósmicas, existencialistas e cosmopolitas ao torto lírico mineiro. Entretanto, a gaucherie de Drummond tem uma materialidade muito característica das pedregosas estradas de Minas, nas quais o eu incurioso recusa, nada mais nada menos, que a oferta da Máquina do Mundo. Isso foi o que mostrou Antonio Candido no seu “Inquietudes na poesia de Drummond” (Vários escritos, Duas Cidades, 1995). Para Candido, o eu drummondiano inquieta-se pelo fato de que, quando fala do mundo, ocorre-lhe que seria melhor falar do eu; quando fala do eu, sente remorso, porque seria melhor falar do mundo. Nesse hiato de frustração, estaria toda a força de uma poética vigorosa. Mais recentemente, Davi Arrigucci Jr. estruturou uma visão sólida e abrangente do eu lírico drummondiano, conferindo-lhe a característica meditativa. Em Coração Partido (CosacNaify, 2002), Arrigucci Jr. observa a postura sentimental e reflexiva do poeta. Antes de falar de si ou do mundo, segundo ele, o poeta estaria preocupado com a postura de reflexão desiludida e incômoda diante do mundo.


 


Acredito que um conceito capaz de ampliar a percepção sobre o lirismo de Drummond, reunindo matizes de muitas das análises que tanto já avançaram nesse sentido, seja o de “cisma”. O poeta de Itabira é um lírico “cismado”. Isso é o que lhe dá um grão de instabilidade e desconfiança e injeta profundamente o Brasil nos músculos da poética. Cisma significa devaneio, sonho, fantasia, absorção em pensamentos. Também pode significar preocupação ou inquietação. Se atentarmos para o uso popular da palavra, acharemos, entre os seus significados, a indicação de capricho, teima, obstinação. A cisma é, pois, um conceito que carrega o entrave. É isso que, para além de qualquer conteúdo evidente ou arquitetura poética, permanece como valor literário perene na poética de Drummond. Sua lírica é um sistema de entraves.


 


Tal sistema de entraves aparece condensado, por exemplo, na postura do personagem do inesquecível poema Itabira: “Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. É desse eu lírico caramujo (tímido, recolhido, reticente, oblíquo) que saem os ditos de maior vigor e negatividade da história do nosso Modernismo. Um eu caramujo que nem por isso deixa de soltar contra o leitor os cachorros da violência e do mau humor: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”. Aí está, talvez, a razão do fascínio que Drummond exerce ainda hoje sobre nós: em sua poesia não há concessões; trata-se de uma lírica armada até os dentes com a força dos problemas reais. Nada nela é fácil ou agradável.


 


 


A força dos versos de Drummond está, por exemplo, figurada em “Confidência do itabirano”, poema capaz de explicar o percurso do capital num terreno periférico, sem descuidar-se também da reflexão sobre a literatura e sobre o íntimo da subjetividade provinciana, inadequada à situação de urbanidade: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ hoje sou funcionário público/ Itabira é apenas uma fotografia na parede/ mas como dói!”. A postura cismada do eu, nesse e em tantos outros poemas, impele-o à confidência, ao tom da conversa ao pé do ouvido, capaz de abrandar (no poeta e no leitor) certo sentimento de culpa e um bom tanto de dor. Uma dor lírica que é gerada também pela descrença na poesia e pela incerteza da enunciação poética. Seria o caso de fazer uma leitura mais atenta e mesquinha de sua obra para contar com precisão as vezes em que aparece nos poemas a expressão “não sei” (e seus correlatos), como no enigmático desfecho um tanto kitsch de “Morte do leiteiro”: “escorre uma coisa espessa/ que é leite, sangue, não sei (…) formando um terceiro tom a que chamamos aurora.”


 


Além de tudo isso, povoa a cisma drummondiana uma coleção de fantasmas, parentes mortos, coisas sem préstimo, que contam a origem de entraves pessoais e públicos, ao revelarem a origem do clã dos Andrades e as raízes de um patriarcalismo que vige, muito embora o país tenha modernizado o verniz das suas relações sociais. Assim, a lírica de Drummond carrega, em livros tão distintos quanto Claro Enigma e os da série Boitempo, o beijo dos antepassados mortos, que reluz insuperável, como em “Os bens e o sangue”: “Face a face/ te contemplamos, e é o teu primeiro/ e úmido beijo em nossa boca de barro e sarro”.


 


Sarro é o resíduo que fica, o que não se lava, o que não se esvai, muito embora o tempo passe. A lírica de Drummond, cheia de cismas, impasses, entraves, fantasmas que não nos deixam, é certamente algo que não passa. É um coração moderno, nacional e negativo que ainda bate desafiadoramente para cada um que se proponha a enfrentar a poesia em língua portuguesa. Um coração mais vasto que o mundo e do tamanho exato de cada um de nós.