Américo Córdula: “As pessoas começam a ter orgulho de ser diferentes”

A discussão sobre diversidade cultural está solta no mundo. Tendo como base a Convenção da Unesco, que prega a proteção e a promoção das múltiplas expressões culturais, o Brasil como signatário do documento, inclui na política ações que podem resultar num

O Brasil é acusado de ser um país sem identidade cultural, e as razões alegadas vão desde a sua origem, passando pela questão da ditadura militar. Como resgatar ou criar nas pessoas o sentimento de pertença em relação ao Brasil?


 


A questão da valorização das nossas identidades, que são múltiplas, têm uma importância muito grande na nossa formação. Hoje, passamos por um momento muito propício, dentro do atual Governo, para o entendimento da cultura popular, cuja produção vem dos excluídos ou desprovidos, que formam as camadas mais pobres da sociedade. E a discussão sobre diversidade cultural acontece no mundo todo.


 


Quais são os reflexos dessa discussão no Brasil?


 


A gente percebe que, dentro do Brasil, começam a surgir diretrizes para a construção de uma política pública voltada para a diversidade cultural. Embora não esteja ainda consolidada, está sendo construída a partir de processo participativo. E a sociedade está demandando essas necessidades que devem ser atendidas pelo Estado.


 


O senhor poderia citar algum exemplo dessa articulação?


 


A idéia de valorização da diversidade cultural está permitindo que o Ceará se preocupe em trazer os índios de volta, há pouco tempo, eram inexistentes. Isso porque eles se negavam, uma vez que no Estado era proibido dizer que pertencia a alguma etnia. As pessoas começam a ter orgulho de ser diferentes.


 


O senhor citou o trabalho de reconhecimento dos povos indígenas. O que está sendo feito em relação aos negros?


 


O governo está fazendo um trabalho de reconhecimento dos assentamentos quilombolas. São segmentos que, desde o tempo da escravidão, vêm se movimentando e se constituindo em comunidades autônomas dentro das suas regiões, e que também o Estado só começa a perceber agora. A gente precisa realizar ações dentro da área da educação, porque a história social que foi ensinada não reflete o que aconteceu e o que acontece.


 


Como a escola poderia contribuir para reverter essa situação, já que a história oficial não mostra os conflitos que aconteceram nos bastidores da colonização?


 


Estamos começando agora. O Ministério da Cultura (Minc) tem uma parceria com o Ministério da Educação (Mec), mas muito tem que ser feito. Não em termos de nossa história recente, mas pelo respeito em relação às diferenças. A diversidade cultural não passa só pela questão de gênero, sexual, etária. A Convenção da Unesco, que trata sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, da qual o Brasil é signatário, entre 64 países do mundo, tem o propósito de atingir todos os segmentos: ciganos, idosos e portadores de necessidades especiais.


 


Como o senhor analisa, tomando a Convenção da Unesco como parâmetro, intervenções feitas no patrimônio público de algumas áreas de cidades brasileiras, que tentam retirar as populações locais, principalmente, as marginalizadas? Isso desrespeita a Convenção da Unesco?


 


Com certeza. Hoje desenvolvemos uma política para o movimento GLTB que inclui gays, lésbicas, travestis, e parte desse segmentos são de profissionais do sexo. Existem editais voltados para estes segmentos, porque essas pessoas são tão cidadãs quanto outras que têm um trabalho que possa ser considerado mais digno. O importante é levar em consideração o respeito a essas pessoas, que acabam sendo desalojados e indo para outros locais mais precários e continuam sendo desrespeitadas. O preconceito é o que mais agride, além dos problemas sociais.


 


Podemos considerar que está mudando um pouco o eixo das discussões em torno das políticas culturais no País, e com isso, reforçando a questão do respeito às identidades…


 


O que está mudando, além do Governo proporcionar uma sensibilidade maior para as políticas públicas de cultura popular, incluindo as populações marginalizadas como, por exemplo, a população GLBTT, é possibilitar às pessoas perceberem que a cultura que elas praticam também está sendo valorizada. A Convenção prega a promoção e o respeito ao outro, à diversidade.


 


Isso muda a forma de pensar a cultura?


 


Até há alguns anos, os estados nacionais tinham a visão de que o mundo era formado por países e que a diversidade era entre países. Agora, percebe-se que dentro de cada país existe uma diversidade. Não é necessário que fale a mesma língua. Estamos começando uma campanha para conscientizar o brasileiro que aqui existem cerca de 180 línguas dos povos indígenas. A diferença é uma riqueza, isso faz com que haja maior aceitação do outro.


 


É uma visão nova o trabalho da diversidade cultural no Brasil. O que precisa para que ela tenha continuidade em outros governos?


 


Este trabalho está começando e precisa ter um fortalecimento dentro do Estado para que se torne uma política de governo. É preciso uma conscientização do Congresso Nacional, no sentido de efetivar leis, estatutos e a própria Constituição, que já prevê a questão da diversidade, mas que se torne algo permanente.


 


O senhor acha que essas ações contribuem para melhorar a auto-estima do brasileiro?


 


A grande questão hoje da Convenção da Unesco é fazer com que as pessoas tenham orgulho da forma como cada uma se veste ou come. Isso é uma luta contra a homogeneização que vem ocorrendo com a globalização.


 


O que a Secretaria pode fazer no sentido de criar um novo tipo de relação entre as diferentes manifestações culturais produzidas Brasil afora?


 


O governo não pode ditar regras. As pessoas têm liberdade para escolher o que querem comer ou vestir. O que vai acontecer, aos poucos, é as pessoas perceberem o valor da sua própria cultura.


 


Como é possível traçar um projeto cultural levando em consideração a valorização das identidades num mundo globalizado que prega o multiculturalismo?


 


A Convenção é um projeto internacional, portanto, não é só o Brasil que está pensando em valorizar a diversidade. É uma questão bastante complexa, mas que está no mundo. Hoje, percebe-se que a globalização, que, no primeiro momento parecia que iria homogeneizar, também suscita reações fortes de nacionalismo. Às vezes, até fortalece a diversidade. Não vamos ser iguais. Ao respeitar o diferente é possível construir uma cultura de paz.


 


As novas tecnologias ajudam na difusão da diversidade cultural?


 


A cultura digital é uma importante ferramenta para difundir e aproximar as culturas, ou seja, unir o local e o mundo. A internet, por ser uma via mais barata e democrática, permite este acesso. Para isso deve haver uma política de inclusão digital. No momento, quase 20% da população brasileira é incluída digitalmente.


 


O senhor diz que a Convenção da Unesco preconiza o intercâmbio entre o global e o local. Como anda a relação entre os irmãos da América do Sul?


 


Precisamos fortalecer as nossas relações culturais com os países da América do Sul que também passaram por um processo de colonização semelhante ao nosso. Temos uma estratégia dentro do Ministério para a realização de ações culturais bilaterais. É importante que a América do Sul se fortaleça como um bloco, se não o Brasil fica sozinho nessa luta. A Europa, por exemplo, entrou em bloco, com 17 países na Convenção da Unesco e está fortalecida.


 


Hoje, as manifestações culturais são produtos como outro qualquer, e dentro do mundo globalizado, essa diferença virou também um filão de mercado. Há também o interesse econômico na cultura e na divulgação dessa diversidade…


 


Existe por trás disso todo um jogo político, porque há também interesses, já que outros mercados são potencializados. O sistema capitalista se aproveita de todas as formas e não vai ter prejuízo. A gente precisa pensar tudo isso no âmbito de uma economia da cultura, por isso é preciso estabelecer indicadores. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está fazendo um trabalho nesse sentido e estamos construindo indicadores econômicos da cultura. Por que o Brasil não pode desenvolver sua indústria cultural?


 


Existem recursos suficientes para realizar todos os projetos previstos?


 


Os recursos são baixíssimos, e contamos com apenas 0,6% do orçamento da União. Todas essas ações são pequenas, mas acabam influenciando simbolicamente. Precisamos da atenção do Congresso Nacional para a aprovação da PEC 150 que propõe aumentar para 2% o percentual do orçamento da União para o Ministério da Cultura; 1,5% para as secretarias estaduais; e 1% para as secretarias municipais.


 


O senhor fala sobre a importância da convivência com as diferenças no sentido da aceitação do outro. É possível estender o preceito para a arte?


 


Uma das nossas ações é com o ´Hip-Hop´, e vamos realizar de 26 a 28 de outubro, em Campina Grande, o ´Rap-Rep´. Mistura os ´rappers´ do ´Hip-Hop´ com os repentistas da tradição. Um dos temas a ser discutido é a utilização do ´Hip-Hop´ na questão da inclusão social e da educação. Mesmo tendo surgido nas classes marginalizadas, a força do ´Rap´ é grande entre os jovens. É um movimento de contestação e de resistência, sendo utilizado em projetos sociais, principalmente recuperando jovens perdidos por problemas de violência e droga. O ´Hip-Hop´ não deve ser compreendido como um simples modismo norte-americano, na verdade, ele tem bases fortes na cultura brasileira.


 


Fonte: DN