Caravana ´Os Sertões´: Tropicália sempre viva
Confirmada a temporada do Teatro Oficina em Quixeramobim, o líder do grupo, José Celso Martinez Corrêa, veio conhecer seu palco-cidade. De 14 a 18 de novembro próximo, os cinco fragmentos da adaptação da companhia paulista a partir do clássico “Os Sertões
Publicado 29/09/2007 09:13 | Editado 04/03/2020 16:37
Tal Caetano, ele organiza o movimento. Ele orienta o carnaval. Como um parangolé de Oiticica, José Celso Martinez Corrêa, um simples e radiante Zé, não se observa ou assiste de qualquer forma. Zé se experimenta. Só. Parafraseando um quarto tropicalista, o hoje ministro Gilberto Gil — que, lindamente, lembrou Vinícius, comentando que o poetinha vivia no cerne do afeto — assim também o é o mito Zé Celso. Lider do referencial Teatro Oficina, de São Paulo, companhia que chega aos 50 anos em 2008, o encenador veio ao Ceará para fazer os últimos ajustes da temporada de sua adaptação de “Os Sertões”, marcada para novembro próximo na cidade de Quixeramobim, terra natal do santo-guerreiro das páginas de Euclides da Cunha.
Intérprete do cearense Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), Zé Celso encantara-se com o Conselheiro de Canudos ainda meninote, quando ainda vivia com a família em Araraquara. Aos 70 anos, o fundador do Teatro Oficina tem fresca a lembrança do pai, chegando em casa com o volume de Euclides da Cunha. Tinha capa dura, em veludo azul, com o famoso título em letras douradas. Caleidoscópio proto-pós-modernista, Zé Celso é um quebra-cabeça de influências e referências. Sua arte é cria da carnavalização de Oswald de Andrade. Sua composição de tipos remete à narrativa de Euclides. Seu teatro bebe em Shakespeare na medida em que se faz enquanto poema ilimitado.
No cerne do afeto
Na última terça-feira, enfim, Zé Celso teve a oportunidade de cruzar os primeiros caminhos do beato Conselheiro, uma das matrizes do que chama de Revolição (em síntese, o ato de voltar a querer). A expedição rumo ao coração cearense estava marcada para as 11h30 da manhã. Três noites sem dormir, por conta das apresentações de “Os Sertões” no Recife, e Zé perdeu o horário. Já eram quase duas da tarde quando ele apareceu no ponto de partida. Um instante mais. Antes de seguir ao sertão, quis se refrescar no mar. O céu, o sol e as ondas pareciam fazer reverência ao simbólico senhor dos palcos. A luz de Zé Celso é tanta que o universo procura fazer jus à sua presença. A esta altura, o repórter objetivo e imparcial já havia saído de cena. Então, eu segurava a camiseta e os óculos do diretor.
A derradeira passagem de Zé pelo Ceará tinha sido em 1992, quando da retomada do Teatro Oficina, com “As Boas”, de Genet. Antes disso, em 1972, veio aqui como um dos trechos da viagem feita pela companhia pelas veredas do Brasil. O Oficina sofria as dores da ditadura militar. Pós-AI5, o grupo buscou acalento fora dos grandes centros, onde, supostamente, a repressão era mais amena. Em Fortaleza, a trupe arrebatou corações e mentes com a turnê dos espetáculos “Pequenos Burgueses”, “O Rei da Vela” e “Galileu Galilei”. Foi um momento decisivo para o Ceará. Tal agora, 35 anos depois.
Enquanto os pneus comiam o asfalto, Zé Celso se deslumbrava com o Ceará de dentro. A bem dizer, um menino. Tudo perguntava. E muito. A cada resposta, um comentário de apêndice. Nas beiras de Canindé, o sol praticamente se fazia auréola ao gigante São Francisco. Foram muitos os cliques. O cair da tarde potencializou a belezura sertaneja. O cinzento da seca, fez Zé lembrar do exílio na Europa. Saudade estranha. Daí, pediu para abrir os vidros do carro. Não queria mais o friozinho do ar-condicionado. Queria o calor do sertão. O cenário e suas gentes andarilhas fascinavam o veterano.
Em Quixadá, quase aplaudiu os monólitos. A pedra da Galinha Choca, então, era aguardada intensamente. “Parece um Rio de Janeiro seco”, disse. Por esses quandos também, deu por falta de Thiago Arrais, diretor cearense responsável pela articulação local da temporada cearense de “Os Sertões”. “Ele vem em novembro?”, perguntou. A resposta afirmativa foi recebida com alegria. Não por menos. De parelha com a moçada do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural de Quixeramobim (Iphanaq), Arrais agarrou em momento de loas ao Conselheiro cearense com unhas e dentes.
Fato é que, depois de muito empenho, é certa a vinda de “Os Sertões” ao berço do beato. A produção iniciada em 2000 percorre agora o Brasil pela primeira vez. Suas dimensões grandiosas — quase 30 horas de duração no somatório dos cinco fragmentos e os mais de 100 artistas e técnicos envolvidos — dificultam a saída do Teatro Oficina de São Paulo. Com patrocínio da Petrobras, “Os Sertões” passou por Salvador e Recife e chega ao Rio de Janeiro. De lá, vem ao corajoso e afoito Ceará. Num investimento de R$ 400 mil, a Prefeitura de Quixeramobim, em parceria com o Governo do Estado, assumiu o desafio de mostrar aos seus a saga de Antônio Vicente traduzida pela mente inventiva de Zé Celso.
Já era noite quando da chegada de Zé Celso a Quixeramobim. Ao entrar na cidade, pediu silêncio. Queria ouvir aquele pedaço de chão. O primeiro impacto? “É igualzinho a Araraquara, onde nasci”. Zé estava em casa. Literalmente. Ao entrar no endereço primeiro de Antônio Vicente, não controlou a performance. Como Conselheiro, gritou pela mãe. Na Igreja de Santo Antônio, procurou Brasilina Laurentina, esposa-algoz do profeta. Em sua versão, Zé contraria as leituras oficiais e a tem como sua eterna amante. O encantou foi profundo. Por quê? “Ele nasceu ali. Casou ali. Foi embora por ali. Mas nunca saiu de Quixeramobim”, sintetizou. Como um lago despertado pelo arremessar de uma pedra, Zé Celso dilatou-se diante do cenário real onde vivera o Conselheiro.
Olhava a tudo e a todos com a atenção extremada. Quixeramobim respondeu também de forma muito delicada. A moçada do Iphanaq, ONG despertada pelo movimento local de recuperação da imagem de Antônio Conselheiro entre os seus conterrâneos, foi descortinando a cidade ao ilustre visitante. Zé fez-se surpreso ao saber, por exemplo, que o poeta Manuel Bandeira se aninhou ali por um tempo. A ponte do trem sobre o Rio Quixeramobim também o deslumbrou. Cada passo, uma descoberta. Cada passo, um sorriso. Cada passo, um convite. Aos 70 anos, Zé vive uma ansiedade adolescente. “Não imagino como vão ser essas apresentações aqui em Quixeramobim. Vai ser um momento muito intenso, tenho certeza. O Ceará não poderia ficar de fora dessa temporada. Vai ser um momento definitivo. É antes e depois”, confessa. Será.
Como “Os Sertões”, enfim, chega ao Ceará
Projeto do diretor cearense Thiago Arrais, colaborador do Teatro Oficina no processo de montagem de ´Os Sertões´, a temporada local foi reforçada quando do encontro de Arrais com os membros do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural de Quixeramobim (Iphanaq).
Orçada em R$ 400 mil, a vinda de ´Os Sertões´ ao Ceará está sendo bancada em sua maior parte pela Prefeitura de Quixeramobim. A Secretaria da Cultura do Estado (Secult) entra como parceira da iniciativa, que também conta com apoio do deputado estadual Cirilo Pimenta.
Ao todo, a equipe do Teatro Oficina é composta por 75 artistas. Para completar o elenco necessário à montagem de ´Os Sertões´, será feita uma seleção local, principalmente voltada para crianças e adolescentes. Antes disso, porém, haverá oficinas sobre a saga de Canudos.
No Ceará, o Teatro Oficina faz morada no intervalo de 14 a 18 de novembro. A cidade de Quixeramobim, além das apresentações de ´Os Sertões´, montará uma série de atividades paralelas em homenagem à memória de Antônio Conselheiro, como exposições, seminários e mostras de filmes.
A expectativa da organização da Caravana ´Os Sertões´ no Ceará é atrair um público diário de 1400 pessoas. Vale destacar: desse total, a metade dos ingressos está destinada à população local. Para atender à demanda, está sendo preparada no município uma rede de hospedagem.
A meta do Teatro Oficina é concluir essa primeira etapa da circulação de ´Os Sertões´, saindo de Quixeramobim rumo à cidade de Canudos, na Bahia.
Fonte: Magela Lima, de Quixeramobim, ao Diário do Nordeste