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Ignacio Ramonet: “Sarkozy, lições para as esquerdas”

Passam as semanas e segue na França a incrível fascinação midiática pelo presidente Nicolas Sarkozy. Uma admiração fora do normal, reverenciosa, estática, obsequiosa, obscena. Neste país de revoluções e insurgências, que se dispõe a celebrar o 40º anivers

No âmbito internacional, só poderia se comparar à atmosfera de domesticação calorosa que a Itália conheceu nos anos de Sua Emittenza Berlusconi (dono de grande parte das comunicações de massas) ou com a época da vil rendição jornalística, nos Estados Unidos, posterior aos atentados de 11 de setembro de 2001.



O singular do caso francês é que nem Sarkozy é dono dos meios de comunicação (seus amigos, sim), nem o país padeceu a agressão do terrorismo. Daí que as direitas européias contemplem seu êxito com inveja e se perguntem quais são suas receitas ideológicas para triunfar.



Sarkozy foi eleito presidente no último dia 6 de maio, diante da candidata socialista Ségolène Royal. O inegável talento político demonstrado no curso da campanha, essa mistura de voluntarismo, autoridade, personalização, provocação, nacionalismo e liberalismo, conjugado com uma oratória brilhante e um astuto manejo das comunicações, lhe permitiram, graças também ao apoio maciço dos poderes midiático e econômico, se impor com manifesta nitidez.



Sarkozy sabe que os grandes meios de comunicação constituem hoje o principal aparelho ideológico do sistema. E não ignora que a nova hierarquia de poderes instaurada pela globalização coloca no alto, como poder principal, o poder financeiro seguido pelo poder midiático, mercenário do anterior. Essa parceria domina o poder político. Um poder que, em nossas democracias de opinião, só se conquista com o consentimento cúmplice dos dois primeiros.



Sarkozy obteve sua vitória com uma taxa de participação muito elevada (83,97%) e contradizendo a lei que se vem verificando em quase toda a Europa, segundo a qual uma maioria política que termina um mandato é derrotada na eleição seguinte. Temendo essa fatalidade, ele prometeu uma ruptura com a linha de seu predecessor, Jacques Chirac. Mas as primeiras medidas sociais e econômicas propostas (supressão do mapa escolar, modificação do contrato de trabalho e do direito de greve, redução de impostos para os muito ricos, diminuição da proteção social, adiamento da idade de aposentadoria) dão um significado muito reacionácio a essa pretendida ruptura.



O que mais assombrou foi a desenvoltura intelectual com a que Sarkozy estabeleceu a nova fronteira que separa agora a direita da esquerda. Alguns analistas se perguntavam se essa linha fora movida sob o ímpeto da globalização neoliberal. Sarkozy acabou com a discussão. E mediante a composição de seu governo, demonstrou que o perímetro da direita inclui agora boa parte do Partido Socialista, principalmente sua ala social-liberal.



Isso explica que tenha obtido a adesão a seu programa neoliberal de importantes responsáveis das esquerdas. No novo gabinete, vários membros vêm da esquerda, como Bernard Kouchner, Eric Besson, Jean-Pierre Jouyet, Martin Hirsch, Fadela Amara. Também atraiu personalidades socialistas de primeiro plano (Jack Lang, Hubert Védrine, Jacques Attali, Michel Rocard) para que elaborassem informes que lhe fossem convenientes. Sem falar dos antigos intelectuais mitterrandistas (André Glucksmann, Pascal Bruckner, Georges-Marc Bénamou), convertidos agora em aduladores do poder.



Tudo isso não faz senão refletir a direitização da sociedade francesa. Uma direitização paradoxal, já que o sofrimento social não deixou de aumentar, assim como as lutas persistem em um mundo trabalhista muito golpeado pela precarização e a terceirização, além das desnacionalizações e o desemprego.



Por isso, o sarkozismo constitui um tipo de populismo francês que aspira a reunir em seu seio a todas as direitas, dos gaullistas aos sociais-liberais, seduzindo-os mediante uma ilusão de movimento e de abertura qualificados de modernos ou de progressistas, e cuja principal fonte de inspiração ideológica é o modelo republicano neoconservador dos Estados Unidos.



O fracasso da esquerda foi, sobretudo, uma derrota intelectual. O feito de não ter produzido, por imobilismo e por negligência, uma renovada teoria política para construir um país mais justo, quando todas as estruturas da sociedade foram transformadas nos últimos 15 anos, terminou por resultar suicida.



A esquerda parece ter perdido a batalha das idéias. Porque sua experiência governamental a levou a bloquear salários, fechar fábricas, eliminar empregos, liquidar as quebras industriais e privatizar parte do setor público.



Em toda a Europa, as esquerdas padecem uma atração fatal por medidas que são geneticamente de direita: desmantelar os regimes de proteção social, denunciar a sociedade do bem-estar, acusar a grande parte dos pobres de não ser mais do que um parasita que impede aos demais de avançar mais rápido. Pensando e atuando assim, as esquerdas fazem a cama para as direitas, pois aceitam uma missão histórica contrária à sua essência: adaptar as sociedade à globalização, modernizá-la às custas dos assalariadas. Essa é a origem de sua atual debilidade intelectual. Uma situação da qual só sairá respaldando as questões fundamentais. E se propondo uma nova fundação. 



* Ignacio Ramonet é diretor de redação do Le Monde Diplomatique.



Tradução de Fernando Damasceno



Fonte: TeleSur