Ex-vice de Chávez analisa lições do referendo
O que aconteceu no 2D (como os venezuelanos batizaram o 2 de dezembro, dia do referendo constitucional) presta-se a todo tipo de interpretações. Foi uma vitória do “Não” que mais parece derrota e uma derrota do “Sim” que mais parece vitória. Mas,
Publicado 11/12/2007 21:01
O resultado eleitoral desse dia constitui uma lição para todos. Para o governo e para a oposição; para chavistas e antichavistas; para os que votaram e para os que se abstiveram.
Lição sem exclusão
A diferença entre o voto “Não” e o voto “Sim” confirma de maneira contundente o que é óbvio para qualquer um: a divisão dos venezuelanos, similar, certamente, à que existe na região.
O reconhecimento desta realidade que emerge do último ato eleitoral conduz a uma conclusão elementar: as duas metades estão irredutíveis, por enquanto, mas uma necessita da outra. São como as asas de um pássaro: se falta uma, não há vôo.
Na matemática, há uma derrota de Chávez, como propositor da reforma, e uma vitória dos adversários da proposta. Mas… cuidado! Na política não é assim. O chavismo não pôde ultrapassar os míticos 50%, e a oposição a duras penas o conseguiu. É compreensível que a oposição cante vitória. E se compreende que o chavismo, no fundo, não se sinta derrotado.
O diálogo é o mandato que surge do 2D
O que se coloca então? Administrar esta realidade. Que as forças em luta se admitam e se respeitem. Se as duas partes administram com racionalidade a divisão do país – que é patente –, será possível que os grandes acertos do atual governo, assim como suas falhas, sejam reconhecidos e corrigidos civilizadamente, assim como os erros de uma oposição que até agora se empenhou em negar tudo e desconhecer o mandato constitucional.
Em minha opinião, o diálogo é um mandato que surge do ato eleitoral do 2D. Diálogo não para conchavos, ou para gestar acordos de cúpula. Diálogo que nada tem a ver com as lavações de roupa de quem tem idéia fixa. É pertinente especificá-lo porque a tese do diálogo tem adversários poderosos de um e outro lado.
Porém, se o resultado eleitoral tem algo positivo, é que Chávez, assim como a oposição, estão obrigados a refletir a partir da mensagem dos eleitores, expressa em dois blocos com algarismos similares. O governo tem que avaliar o que é a oposição agora; e a oposição tem que fazer o mesmo em relação ao governo. O governo tem que se dispor a deixar de lado preconceitos e admitir que há uma metade do país que o enfrenta; deve portanto facilitar as coisas para que ela continue a fazê-lo pela via democrática. Não se deve esquecer que uma das características do processo bolivariano que propõe o socialismo do século 21 – o que Chávez mais enfatiza – é que ele se dá em paz e através de eleições. Neste contexto os bolivarianos tiveram 11 vitórias em 12 processos eleitorais, um autêntico recorde, que obriga o reconhecimento de outras opções promovidas dentro da Constituição.
Ao mesmo tempo, a oposição tem que jogar a fundo a cartada democrática. Sem ambigüidades, com lealdade. Desfazer-se da suspeita que sobre ela recai.
Fazer isto significa renunciar à aventura. Se o governo reconhece na oposição democrática um interlocutor e lhe dá o tratamento que se costuma dar em um sistema plural, a oposição faz outro tanto e respeita as regras do jogo. Um e outro fator se beneficiam. Mas ganha sobretudo o país, que é o que importa.
O tratamento apropriado do 2D pode conduzir a algo fundamental em uma sociedade democrática, e a nossa assim é: confiança recíproca. Se o governo desconfia da oposição e esta do governo – e até agora houve razões para desconfiar da oposição –, é impossível se relacionar.
Neste sentido, o desafio é igual para todos. E tenho a convicção de que ele é o que as maiorias nacionais aspiram. Não para que desapareçam as contradições, o debate, as diferenças que estão na própria essência da política, mas para que se regularizem, sejam assumidas com espírito cívico e sem a intenção de acabar com o adversário, que, afinal, é um compatriota.
Labirinto
Chávez confirmou sua liderança política e também sua liderança ética, que é mais importante. Tudo quanto se dizia de sua condição de autocrata, de tirano, de ditador, esvaziou-se quando o presidente reconheceu um resultado insolitamente apertado. Admitiu com coragem, sem amargura, o veredito popular…
Neste momento ele deixou sem política a oposição, que teve de recuar para uma comemoração discreta…
Convém dizer que porta-vozes da oposição assimilaram a lição. Agiram com serenidade, situando a vitória em sua precária realidade…
Mas os farsantes continuam à solta. São os que, no fundo, se sentiram frustrados com um triunfo que exalta a via eleitoral e joga no lixo a provocação aventureira…
A guerra suja não pára. Os laboratórios continuam maquinando. Recomendação: não baixar a guarda…
É preciso cuidar para que o talibanismo oposicionista não contagie o chavismo. Alguns adotam uma atitude destrutiva, sem refletir sobre o que ocorreu, nem conhecer o árduo trabalho de dirigentes chavistas, governadores, prefeitos, parlamentares, ministros…
“Toda a história do colonialismo numa frase”
Não resisto à tentação de reproduzir dois parágrafos do artigo do escritor argentino José Pablo Feinmann, no diário Página 12, de Buenos Aires, intitulado A voz do amo, e escrito a partir do prólogo de Sartre ao livro Os condenados da Terra, de Fannon. Cito:
“Um rei, num dia destes, perdeu as estribeiras na Cúpula Ibero-Americana que se realizou no Chile. Tinha diante de si um presidente latino-americano, escurinho ainda por cima, com traços indígenas e sabendo falar com brilho. O rei, sabe-se, é o anacrônico Juan Carlos da Espanha. O presidente é o polêmico Hugo Chávez… Há que dizer que, quanto ao verbo, Chávez o maneja infinitamente melhor que o rei.
Quem só foi capaz de uma birra inadequada, de uma ira monárquica em terra de selvagens: 'Por que não te calas?' Toda a história do colonialismo grita nesta frase. Chega de usar o verbo, tu, filho de índios, descendente de escravos; é um rei europeu que o ordena.”
Feinmann arremata: “Em sua última contracapa, a revista Barcelona exibe uma foto do rei Juan Carlos de Bourbon, de sua esposa, Sofia, e, junto deles, um genocida argentino, o general Jorge Rafael Videla. O rei espanhol e sua esposa o visitaram, o respaldaram com sua presença e não disseram que se calasse. Talvez porque Videla falasse pouco, talvez por outros motivos. Fosse como fosse, emprestaram-lhe o prestígio de uma monarquia européia, fortalecendo-o. Os editores de Barcelona publicaram a foto e uma frase, 'Por que não te calas?', dirigida ao rei Juan Carlos. Se ele agora ordena que Chávez cale, por que calou-se perante Videla? Não a mais o que agregar.”
Autêntica estupidez, a invasão da Hebraica (no dia do referendo o clube judaico de Caracas foi invadido e revistado por policiais, que nada encontraram de irregular). Quem a autorizou? Alem de constituir uma tropelia, é um ato que provoca reações pessoais e políticas desnecessárias…
O presidente Chávez teria podido, sem mencionar a palavra, referir-se à famosa exclamação do general Cambronne em Waterloo.
* Jornalista, vice-presidente da Venezuela no primeiro mandato de Chávez (de 2002 a 2007); http://www.rebelion.org; intertítulos do Vermelho