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Lecio Morais: proposta tributária avança, mas ainda é limitada

Neste primeiro artigo de uma série de quatro textos, o economista Lecio Morais, assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados, avalia aspectos da proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Lula. Segundo Lecio, no geral, a ref

por Lecio Morais*


 


A Proposta de Emenda à Constituição da reforma tributária encaminhada pelo Governo Lula em fevereiro tem objetivos relativamente limitados, mas podem implicar em mudanças político-institucionais significativas a longo prazo. Os objetivos são dois: a simplificação do sistema tributário estadual e federal com a eliminação dos tributos do tipo cumulativo; e a desoneração progressiva da folha de pagamento.


 


A questão da redução da atual carga tributária é apenas prometida como conseqüência da reforma. Onde pode acontecer a redução de tributos permanece em aberto, exceto quanto `a determinação expressa de diminuir a contribuição patronal na folha de pagamento.


 


A reforma também não trata da questão que parece ser – do ponto de vista dos mais pobres – o maior problema do nosso sistema: a regressividade dos tributos. O problema do financiamento do Estado brasileiro se baseia mais na tributação indireta, sobre o consumo, que é paga pelos mais pobres, do que nos tributos diretos – pagos sobre a renda e a propriedade.


 


Embora as mudanças nos impostos diretos – imposto de renda e imposto sobre grandes fortunas, por exemplo – possam ser feitas por leis e não por emenda constitucional, a mensagem governamental não se faz acompanhar por nenhum projeto nesse sentido.


 


As grandes alterações da reforma


 


A PEC pretende alcançar os objetivos da reforma por meio de três alterações constitucionais: a transformação dos Impostos sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estaduais em um imposto de responsabilidade conjunta de todos os Estados, ao que se seguirá a unificação da legislação do ICMS em uma lei complementar federal; a fusão das atuais contribuições sociais que financiam o orçamento da Seguridade Social da União em um novo imposto de valor adicionado (o chamado IVA Federal, ou IVA-F)1 – caso do Cofins e PIS – e, no caso da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, pela sua integração ao imposto de renda. Em conseqüência dessa última mudança, as contribuições que incidem de forma cumulativa, total ou parcialmente, na economia nacional deixam de existir (PIS e Cofins). Por outro lado, o financiamento do orçamento da Seguridade Social passa a ser feito mediante a vinculação de 38,8% das receitas dos novos IVA-F e imposto de renda e pelo atual Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); e a desoneração da folha de pagamento, transferindo inicialmente a contribuição do salário-educação para o novo IVA-F. Essa mudança continuará, depois de lograda a aprovação da reforma, pela redução da alíquota da contribuição patronal, que poderá ser compensada pela elevação do IVA-F e de sua parcela vinculada à Seguridade Social e à Previdência Social.


 


O prazo de implantação da reforma será longo. As alterações ocorrerão progressivamente ao longo de seis anos, tendo início após o segundo ano de promulgação da nova emenda constitucional. Todas as mudanças em termos de repartição da receita total dos tributos entre as três esferas de governo ou entre os orçamentos fiscal e de Seguridade Social da União são concebidas para serem neutras; ou seja, não implicam  perdas ou ganhos. Exceto, naturalmente, na redistribuição de receitas do ICMS entre Estados produtores (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Amazonas e outros) e os Estados consumidores (quase todos os demais) que contarão, por isso, com um mecanismo constitucional próprio de compensação: o Fundo de Equalização de Receitas.


 


Os tributos municipais e as regras de repartição de receitas da União com estados (FPE) e municípios (FPM, ITR e IPVA)  permanecem sem alteração, exceto as da participação desses últimos na quarta parte do ICMS do Estado. Nesse caso, a atual regra de que 75% dessa parcela seja distribuída na proporção do ICMS arrecadado em cada Município deverá ser mudada, cabendo à lei complementar fixar o critério. Essa alteração, embora ainda não definida, deve ajudar os pequenos Municípios, exceto aqueles que, apesar de pequenos, não dispõem de grandes unidades industriais que recolhem muito ICMS.


 


As conseqüências político-institucionais


 


A primeira grande conseqüência político-institucional da reforma pretendida é a redução da autonomia tributária dos Estados, que perderão – com a unificação do ICMS – toda sua capacidade de determinar seu autofinanciamento e de exercer papel na política econômica. Haverá uma maior centralização de poder no Legislativo e no Executivo da União, uma tendência já histórica em nosso sistema federativo. Isso pode não incomodar muito os Estados menores e mais fracos, mas para os grandes – como São Paulo – o prejuízo político será considerável. Esse novo ICMS será o objeto do nosso próximo artigo.


 


A segunda conseqüência advém da reformulação da estrutura de financiamento autônoma do orçamento da Seguridade Social, responsável pelos gastos da Previdência Social, da Saúde, da Assistência Social e do seguro-desemprego. A Constituição de 1988 adotou uma concepção inovadora da Seguridade Social, integrando em um orçamento separado as funções básicas de proteção do Estado à vida e à saúde dos cidadãos. Essa concepção também foi responsável por estabelecer um financiamento próprio para essas atividades, adotando múltiplas fontes de arrecadação de recursos. Assim, a Seguridade passou a ser financiada, desde 1988, por contribuições sociais incidentes sobre a folha, sobre o faturamento e sobre os lucros das empresas.


 


A reforma proposta altera essa concepção de financiamento. Das contribuições sociais atuais, permanecerão apenas as contribuições previdenciárias. O restante dos recursos advirá do orçamento fiscal pela vinculação de parte do novo IVA-F, do imposto de renda e do IPI.


 


Embora essa alteração não implique mudança no atual volume de recursos destinados à Seguridade, a extinção de contribuições próprias e a eventual substituição da contribuição patronal por uma maior tributação do IVA-F pode vir a reforçar, no futuro, os argumentos conservadores dos que defendem que o financiamento do regime geral da Previdência Social seja feito apenas pelas contribuições sobre a folha, e não por toda a sociedade. Voltaremos a abordar esse tema no terceiro artigo dessa série.


 


No geral, a reforma proposta acaba indo um pouco mais longe do que se esperava. Sua implementação, mesmo com os problemas apontados, pode trazer mudanças significativa quanto a maior simplicidade dos tributos e maior racionalidade e controle do sistema. O problema da redução da autonomia tributária dos Estados pode ser um preço que a federação tenha de pagar em troca de uma solução para o caos hoje existente nos ICMS estaduais. No entanto,  a eliminação das fontes próprias da Seguridade é um problema político que é necessário resolver. Ainda mais porque, como veremos nos demais artigos, existe solução para manter a concepção original do financiamento da Seguridade, alcançando, ao mesmo tempo, o objetivo de reduzir o número de contribuições sociais e extinguindo as de incidência cumulativa.


 


NOTA:
1: Fundo de Participação dos Estados; Fundo de Participação dos Municípios; Imposto sobre Propriedade Rural (federal); e Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (estadual).



*Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política, especialista em orçamento e planos públicos, e assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.