Construção da Identidade no Trabalho Voluntário (2)
Cleide CARNEIRO
José Jackson Coelho SAMPAIO
Publicado 13/06/2008 18:53 | Editado 04/03/2020 16:36
3. Das transformações societárias e do trabalho voluntário.
O número de pessoas ocupadas no terceiro setor no Brasil cresceu cerca de 30%, entre 1991 e 1995, sendo tal crescimento superior à evolução de 2% no total dos empregos em todo o país, no período. Em 1991, haviam 200 mil organizações registradas como sem fins lucrativos na Receita Federal brasileira, com os setores de educação, saúde e atenção à criança e ao adolescente destacam-se pelo maior número de trabalhadores (Kanitz, 2001).
Crescimento econômico conjugado com aumento da pobreza de vastas camadas da população são os principais elementos para o rompimento do tecido social, provocando desafios e rupturas entre as classes envolvidas. A emergência do terceiro setor vem no bojo da descentralização político-administrativa, da liberalização com privatização da economia e de certa democratização, embora limitada, da sociedade.
No Brasil, a produção de pobreza e miséria destitui grande massa de sujeitos dos direitos e deveres da cidadania, geram violenta concentração de riqueza e vasta desigualdade social, econômica e política. Os grupos sociais voltados para minimizar, sobretudo, a dimensão material da pobreza, têm encontrado grande espaço de atuação, em detrimento daqueles voltados para o desenvolvimento da cidadania e da participação política.
Neste cenário de mudanças econômicas, há uma redefinição do tecido social, o que provoca um diferencial na correlação de forças entre as classes sociais, deste modo modificando projetos sociopolíticos. A sociedade civil elege-se protagonista desse momento histórico, mas, no contexto da vida pública, ocorre sob o signo da fragmentação a reestruturação da vida social, econômica e política. A universalização do mercado apresenta-se como resposta final para a História, obstaculizando respostas com vistas a um projeto social universal integrado, crítico e solidário.
Discutindo identidade do trabalhador e possibilidades do terceiro setor, entendido como um novo ator coletivo, Abreu (1999) argumenta sobre a debilidade característica dos atores em construção, apontando para a gênese desses sujeitos:
Na criação de novos padrões de prática e de reconstrução de fragmentos de uma identidade autônoma, onde os indivíduos e os grupos se constituem em sujeitos desse processo, desenvolvem dentro de si mesmos os fragmentos correspondentes do novo ser sujeito (p:37).
Para esse quadro econômico de exigência e cultural de não legitimação é que o terceiro setor se organiza e se afirma, oferecendo o trabalho voluntário como possibilidade real de construção de identidades. Pode-se perceber uma prática e uma quase vergonha da prática, ambas se negando e se alimentando.
O problema a ser equacionado é a vivência desta contradição, e o que ela pode determinar nos agentes que convivem na construção do cotidiano das instituições. A questão refere-se ao exercício do trabalho em campo historicamente determinado, contraditório interna e externamente, que incorpora a oposição entre os trabalhos remunerado e voluntário, e se utiliza da sedução como arma da ação política.
O homem produz sua própria existência na medida em que constrói a sociedade em que vive com seu trabalho. Este surge, então, como experiência fundamental no processo de construção de sua identidade e como categoria fundamental para explicá-la. Para Leontiev (1978), é impossível estudar identidade na ausência da história, inútil descolar a categoria identidade da categoria atividade, portanto da categoria trabalho.
Conflitos que geram sofrimento psicológico podem ser investigados, com a finalidade de identificação do modo como sujeitos singulares estão construindo modos de apropriação (enfrentamentos com o real) e reapropriação (enfrentamentos com o simbólico) para proteção da ruptura subjetividade/objetividade colocada para todos na vida cotidiana. Usando mecanismos reais ou mágicos, redutores ou deslocadores, contemporâneos, retrospectivos ou prospectivos, os indivíduos restabelecem algum nível do controle existente anteriormente e evitam o labirinto da doença mental (Sampaio, 2001).
O intento é surpreender, em sujeitos dedicados ao trabalho voluntário, as formas de comparecimento deste trabalho: modo de apropriação, tática de inserção primária para futura inserção formal no mercado de trabalho; ou modo de reapropriação, tática de recuperação do valor humano do trabalho, capaz de superar simbolicamente as conseqüências da alienação.
O mercado cria e impõe necessidades que estão de acordo com o mercado, mas não com as necessidades de realização humana do trabalhador. A reestruturação produtiva e tecnológica cria demandas profissionais, que criam novas profissões e novos trabalhadores, tudo isto assumindo um caráter de urgência e a aparência de uma capacidade infinita de absorção de força de trabalho.
Na esperança de realizar sonhos de consumo, de inserção social real e de construção de identidades produtivas, grande contingente de trabalhadores passa a viver o círculo vicioso da busca da realização profissional em cima das ilusões da propaganda. O que se acirra é a ideologização da responsabilidade individual, transferindo para o trabalhador o ônus de decisões nunca suficientemente informadas. E é na fala mesma dos trabalhadores voluntários que o processo é percebido.
Inúmeras novas profissões assomam ao mercado e aparece um sem número de novos cursos seqüenciais, de extensão, de aperfeiçoamento e de especialização, sem que diminuam as taxas de desemprego e de exploração da força de trabalho. Fica cada vez mais perversa a ciranda de postos de trabalho vazios, pois não existem trabalhadores adequados, e de trabalhadores vazios, pois desapareceram postos de trabalho:
Trabalhei três meses numa firma de consultoria, pedi as contas, e perdi muitas coisas porque não suportei ter que pensar em dinheiro, ter aquela visão de que todo mundo é objeto ou sujeito de consumo (Bernardo).
A consciência do trabalho enquanto mercadoria (Marx,1980) aparece de forma explícita e contundente, mesmo antes de estar consolidada a identidade de trabalhador na profissão escolhida: valor de troca e valor de uso, expropriação, uso objetal da força de trabalho, venda de habilidades e valores humanos, o sujeito tornando-se objeto e o objeto subordinando os sujeitos:
Então a diretora me chamou, eu estava crente que era a resposta sobre o contrato de trabalho remunerado com as crianças. Mas ela me disse que o projeto não tinha sido aprovado e que, como eu tinha experiência com adultos, poderia ser contratada para trabalhar dez horas remuneradas, com adultos, e eu aceitei, era o jeito de algum vínculo remunerado. Vou ser sincera, no inicio eu não pensei em fazer trabalho voluntário, cheguei do exterior achando que era a rainha da cocada preta em termos de criança psicótica, que eu facilmente teria trabalho remunerado, inclusive tive professores que disseram para eu não trabalhar como voluntária com crianças psicóticas (Lúcia).
Trabalho voluntário aparece, nitidamente, como lugar de preenchimento de vazio profissional, de chance de contactos profissionais e de continuidade do treinamento, na ausência de trabalho remunerado. Mesmo proporcionando reconhecimento, é um caminho que permanece à espreita, provisório, sendo utilizado na medida da necessidade. Para o trabalhador fica claro que existe certa tensão na imagem do trabalho voluntário, pois parece que seu mais alto prestígio decorre da sua não necessidade. É só quando a pessoa não precisa que ele parece ser mais dignificado. Se precisa, sua militância pode indicar fracasso em carreira profissional remunerada.
Estou trabalhando como voluntária, porque em Fortaleza não tem clínica de atendimento psicológico infantil, então preciso que esta experiência dê certo, seja aprovado pelo poder público e se torne chance de trabalho permanente. Estou gostando muito, mas é um projeto meu, pessoal, diferente de uma pessoa que faz um projeto para sociedade (Lúcia).
Trabalho voluntário assinala um lugar de reencontro com as origens de classe e de gênero, exige comportamento ético e moral na devolução do conhecimento apreendido e um projeto para a sociedade, na disciplina de apreender o trabalho como garantia de provedor, mas também pode ser vivido de modo ambíguo, no enfrentamento da crise entre a necessidade de sobrevivência e a construção de uma supersociabilidade.
Precisei voltar ao voluntariado porque estava perdido, depois de três a quatro anos de loucura eu comecei a retornar às minhas origens, éticas e morais. Tenho uma concepção muito própria do trabalho social, não posso passar quatro ou cinco anos numa faculdade pública e não retornar à comunidade aquilo que eles pagaram para mim (Bernardo).
O trabalho voluntário desaliena do trabalho remunerado ou aliena a afetividade compassiva no cuidado com os excluídos? Se o trabalho voluntário pode caracterizar-se como uma forma mais instituída e impessoal de caridade, de que modo poderá resolver os impasses econômicos, políticos e existenciais vividos por quem os tem como prática?
Trabalho com a noção de cidadania participativa, com um movimento de auto estima, de motivação, de resgate do potencial criador. Essas crianças e adolescentes podem virar futuro marginais, daqui a alguns anos podem me roubar, podem machucar alguém que eu amo. Trabalho muito com a questão do voluntário cidadão e de sua participação no meio social. Quero mostrar que o querer e a boa vontade interessam bastante, mas não é fundamental. O problema é como continuar fazendo tudo isso e ainda cuidar da sobrevivência. (Bernardo)
Projetos inovadores, prestações de serviços a parcelas carentes da comunidade, garantindo participação e defesa de direitos e cidadania, são aspectos básicos pelos quais o terceiro setor se mobiliza, com sustentação financeira pública e/ou privada, através dos convênios com órgãos públicos ou campanhas de arrecadação de fundos junto a instituições filantrópicas e organismo de fomento social. O paradoxo é dado pela sustentação do terceiro setor nos ombros do trabalho voluntário, uma característica brasileira, enquanto a lógica macro-econômica exige comportamento empresarial, demonstração da capacidade de articular objetivos públicos com meios, flexibilidade e desempenho de empresa privada.
O trabalho remunerado me ensinou, me abriu os olhos para a necessidade de mudanças, que nada na vida melhora sem mudanças. O trabalho voluntário me ensinou a ser flexível, não perder oportunidades, e saber que todo ser humano é um livro, cheio de conhecimentos, que cada qual tem tudo para dar pra gente (Bernardo)
As vantagens em ser voluntário estão referidas por esses trabalhadores como oportunidade de aperfeiçoamento profissional e humano, além de um currículo que os torne aceitos no mercado de trabalho remunerado. A qualificação exigida hoje pelo mercado de trabalho é muito alta e a experiência necessária para a obtenção do primeiro emprego pode ser obtida no trabalho voluntário. Exige-se, cada vez mais, trabalhadores capacitados para exercer funções especializadas, embora a oferta de trabalho esteja ainda concentrada nos níveis intermediários, com as funções de apoio.
Quem é voluntário tem hoje maiores vantagens do que quem, por exemplo, não foi voluntário. Mas tem o perigo do trabalho voluntário virar apenas mais um ponto no currículo (Bernardo).
Sempre fiz trabalho voluntário por satisfação pessoal, nunca fiz pra ajudar o próximo, sempre fiz pensando em mim, no meu currículo (Lúcia).
Mas, nem o conjunto dos valores sociais positivos que foram agregados ao trabalho voluntário é capaz de torná-lo imune aos percalços a que está submetido o trabalho remunerado. A lógica econômica do produtivismo, do desempenho voltado para finalidade financeira, da cultura patrimonialista da exploração da força de trabalho, do carreirismo e da competitividade reformula os valores do trabalho voluntário.
O uso do trabalho voluntário varia de acordo com o ator político, o interesse e a disposição geral do espírito da sociedade onde ele estiver inserido. Se o ator for o governo, pode ser uma extensão ou uma substituição de responsabilidades. Se o ator for uma empresa, pode ser contrapartida social para subsídios ganhos. Se o ator for o cliente-usuário, responderá pela satisfação de necessidades não atendidas de qualquer outra forma. Se o ator for o trabalhador, as várias táticas de atividade formativa, seja melhoria de currículo, espera ocupada com treinamento, aquisição de prestígio, serão aliadas a várias táticas de construção da sobrevivência psicológica em condições de realização direta precária.
Os depoimentos transcritos informam sujeitos em luta com suas verdades, construindo uma visão de mundo que inclui a família, a religião, a prática política e o trabalho. Este quadro maior de experiências revela o lugar do trabalho, formador de identidade e propiciador de sobrevivência. Estes jovens trabalhadores de classe média, na vigência de uma crônica crise de empregabilidade, vinculados ao setor de serviços, na fronteira da lógica liberal, do assalariamento e da dedicação a missões generosas, estão sendo capazes de encontrar formas de elaborar a própria história dentro do trabalho voluntário, como tática de educação continuada, de espera das possibilidades de inserção formal no mercado de trabalho e de espaço de militância humana, solidária e cidadã. No trabalho voluntário há uma prática e, pelo menos, uma esperança.
4. Reapropriação, sempre, constante, segundo a necessidade de cada um.
Dentro do trabalho voluntário só boa vontade não resolve, então comecei a me capacitar, hoje eu sei que o trabalho voluntário é muito mais transcendente do que obediência a preceito da religião e se sentir cidadão. No trabalho remunerado faço o meu horário e sobra tempo para o trabalho voluntário, parece que tudo estava se encaminhando para que eu me realizasse pelo trabalho voluntário (Vilma).
O ser humano está exposto cotidianamente a desafios, limitações, agressões e mudanças vitais, de acordo com o processo de construção da relação objetividade/subjetividade, sendo, portanto, impossível estabelecer situação protetora definitiva para o enfrentamento do real, e a postura crítica, de alerta ao antagonismo, resulta em busca constante de significações e compreensão para a vida humana.
Sentirem-se plenos e satisfeitos no exercício do trabalho voluntário não representa superação da contradição inerente ao terceiro setor como um espaço de construção humana, submetido às normas, às ideologias e à estrutura orgânica que também o subordina às vicissitudes do primeiro (público) e do segundo (privado) setores. Trabalho voluntário, portanto, reproduz trabalho alienado, porque inescapavelmente incrustado na esfera político-econômica, e obriga os trabalhadores a buscarem, também nesse espaço de construção do ser humano, novas formas de superarem desafios cotidianos, envolvendo a ação de Estados e Mercados que ditam possibilidades e limites de atendimento das necessidades humanas de proteção e inclusão social. Percebe-se, freqüentemente, o desejo de eliminar todos os conflitos, na construção deste trabalho idealizado.
Tenho uma experiência que é parte da verdade, mas pode ser a verdade inteira e eu tenho muita consciência disso. No estatuto da associação a primeira clausula é não ter caráter religioso, não ter fins lucrativos, nem políticos, porque quando mexe com capital, religião e outros interesses, sectariza e atrapalha, e nós queríamos uma coisa acima de tudo isso (Vilma).
A neutralidade perseguida por segmentos consideráveis do terceiro setor, ou, numa linguagem marxista, o bonapartismo de estar acima das contradições do mundo real, esbarra na dinâmica impressa pela lógica deste mesmo mundo. É possível verificar, na agenda das ONGs, a exigência de qualificação dos trabalhadores para além do esforço usual, a fim de estabelecerem diferença na oferta de serviços à sociedade, candidatando-se assim a desfrutarem de posição privilegiada na disputa com o Estado e o Mercado.
5. Das táticas de reapropriação á satisfação recuperada.
Trabalhadores voluntários em busca da satisfação que o trabalho deve proporcionar não são apenas representantes de um momento particular, mas da singularidade que afeta a todos nós, portadores da essência de ser humano, portanto, portadores da possibilidade de sofrimento psicológico, toda vez que acontecer a ruptura subjetividade/objetividade e as tentativas de ressignificar se mostrarem vãs e insuportáveis. Essas expressões podem advir das promessas e dos ideais não totalmente alcançados, provocando paralisia, bloqueios e dor, mesmo quando aparentemente não houver dor.
O terceiro setor, por meio do trabalho voluntário, vem ampliando seus quadros de funcionários qualificados, com isso aumentando sua capacidade de realização formal e de competição no mercado. A motivação que está levando quadros de excelente qualidade para o setor, normalmente está apontada como de fundo emocional, estético, ético ou religioso; para reparação de perdas significativas e/ou cumprimento de agenda com propósitos de participação em projetos políticos de cidadania. Todos esses motivos podem confluir na busca de uma atuação reparadora, na tentativa de tornar suportável sofrimento psicológico advindo da ruptura subjetividade/objetividade.
Trabalho voluntário é lugar onde a possibilidade de satisfação se coloca de forma quase imediata, sobretudo para quem apresenta história de vida como a de Josimar, pois a questão compulsória do salário, da coisa- mercadoria, não comparece como necessidade primária e sim como sintoma, abrindo espaço para as questões ideológicas em sua função prática de absorver as contradições estruturais e funcionais, possibilitando que a vida seja vivida de modo íntegro.
O exercício da pediatria é muito desgastante, jamais se é visto como profissional capaz de favorecer uma vida sem doença. Nunca gostei do consultório e nunca enganei meu cliente. Sempre digo, depois de um convívio maior, que exerço o consultório para manter minha família. O lado empresarial é muito desgastante, também muito desumano. Se alguém não consegue um bom desempenho tem que ser imediatamente substituído, o que é cruel (Josimar).
6. A reapropriação pela solidariedade.
Com o apoio da classificação de Sampaio (1998; 2001), percebe-se que os sujeitos deste estudo utilizaram-se de vários modos de reapropriação, simultaneamente. Do discurso apresentado emerge um inextrincável meandro de inter-determinações, interdependências e inter-explicações entre as experiências de trabalho voluntário, de compaixão religiosa e de cidadania política, tanto de apropriação primária (apropriação) das relações entre vida e representação da vida, como de apropriação secundária (reapropriação). Mas tudo conflui para a configuração do trabalho voluntário como amplo modo de reapropriação, dimensionando tanto as experiências, como os complexos identitários.
Onde sou menos realizada é no trabalho profissional, deve ser por não fazer o que gosto. Escolhi essa profissão pelo salário que ela me dá, agora vejo que também pelo tempo que ela me deixa livre, para o trabalho voluntário. Trabalho voluntário é como um vício, passa a fazer parte do seu dia a dia, e doar-se se torna tão necessário que faz mal não trabalhar (Vilma).
Tenho certeza que quando temos algo a mais, seja riqueza ou palavra oportuna, temos que doar, é para os outros, mas a obrigação é conosco. Quando sou voluntária eu o faço por mim, atendendo minhas necessidades como gente, como homem próximo da plenitude. Acredito não haver plenitude absoluta, mas estou em busca do homem absoluto (Josimar).
Se os trabalhadores são maduros, relativamente exitosos em carreiras profissionais formais, ao buscarem compensações e significados para superarem o desgaste, o constrangimento, as infelicidades, os inexplicáveis sentimentos de vazio, eles encontram no trabalho voluntário uma alternativa. O processo de compensações, acomodações, reconstrução de significados e objetivos, explicações e justificativas reparadoras, qualifica tal dinâmica como um antídoto eficaz para o mal estar difuso, o sofrimento psicológico decorrente de impasses e dissonâncias, cognitivas e morais. Quanto mais trabalho remunerado, mais aparece a sensação de tornar-se coisa e a necessidade de recuperar a vitalidade, na utopia de integração e de plenitude harmônica.
Mas a análise da auto-imagem destes sujeitos identifica alguns elementos que merecem aprofundamento: workcholics, vaidosos, enganadores e despistadores, colocam problemas novos a serem desvelados. Se a sobrevivência está garantida, se prestígio social foi acumulado, se há garantia de seguros e seguridades para o futuro, o que inquieta estes trabalhadores? A inquietação encontra no trabalho voluntário um antídoto poderoso, então por que ela retorna e novos processos de equilíbrio são convocados e novas desconecções aparecem?
O ser humano está exposto a desafios, limitações, agressões e mudanças vitais, de acordo com o processo de construção da relação objetividade/subjetividade, sendo, portanto, impossível estabelecer situação protetora definitiva para o enfrentamento do real, e a postura crítica, de alerta ao antagonismo, resulta em busca constante de significações e compreensões.
O fato de trabalhadores, individualmente, sentirem-se plenos e satisfeitos no exercício do trabalho voluntário, não representa superação da contradição inerente ao terceiro setor como um espaço de produção econômica, desafiado a camuflar carências estruturais reais, sobretudo nas economias dependentes periféricas, de industrialização retardatária, e endividadas com o sistema financeiro globalizado.
Referências bibliográficas
ABREU, Haroldo. As Novas Configurações do Estado e da Sociedade Civil. Brasília: CFESS/ABEPSS/UnB, 1999.
KANITZ. Relatório de Pesquisa e Estatística: guia da filantropia 2001. http://www.filantropia.org.br/gestão/. Consultoria Kanitz Associados, 2001.
LEONTIEV, Alexei N. Actividad, Conciencia y Personalidad. Buenos Aires: Ciencias del Hombre, 1978.
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
SAMPAIO, José J. C. Trabalho e Sofrimento Psíquico em Petroleiros de Produção: subjetivismo, penosidade e conformismo. Fortaleza: UECE, Tese de Professor Titular, 2001.
Os extratos de entrevista foram extraídos da Tese de Doutorado da Profa. Cleide Carneiro (Percepção de Identidades no Trabalho Voluntário: estratégias de sobrevivência. Franca: FHDSS/UNESP, Tese de Doutorado, Mimeo, 2001).