Bobagem pouca é desgraça!
Welligton Nogueira, fundador da ONG Doutores da Alegria, visitou a Fundação Casa Grande entre os dias 16 e 20 de julho, acompanhado de seu filho Theo. Com intuito de divertir e ensinar, a jornada rendeu uma série reflexões, narradas em entrevista aos repó
Publicado 01/08/2008 16:50 | Editado 04/03/2020 16:36
Qual seu nome, idade e sua profissão?
Meu nome é Welligton Nogueira, tenho 47 anos, e eu escolhi a profissão de palhaço. Na verdade, foi a profissão de palhaço que me escolheu. Por que eu nunca pensei em ser palhaço na minha vida. Até que um dia me convidaram pra ser palhaço em um hospital, e quando eu fiz o trabalho falei: “uau! é isso que eu quero fazer”.
Qual a diferença de trabalhar no hospital e trabalhar em circo, no teatro nas ruas?
Eu acho que o teatro e o circo, hoje, são muito mais fáceis do que você trabalhar dentro do hospital. Porque pra se apresentar em um teatro e no circo você ensaia pra fazer tudo diretinho e a grande surpresa está por conta da platéia. Cada dia é um dia, mas você sabe sempre o que vai fazer. Já no hospital não tem ensaio. Então você não ensaia para a vida real. Você precisa ter muito vivo tudo que se aprende, tudo que sabe, tudo que faz, porque quando encontra com as pessoas no hospital, cada uma delas é um espetáculo, com começo, meio e fim, que é escrito pela criança e pelo palhaço ali naquele momento do encontro. Isso, para mim, é mais difícil, pois vou ter que trabalhar com esse improviso total. A gente nunca sabe o que vai acontecer, mas de uma coisa sabemos: que vamos trabalhar com aquilo que a criança joga pra gente. Então, por exemplo, eu não ensaio uma coisa e apresento pra criança. Eu chego na porta do quarto, olho no olho, me apresento: “Oi. Boa a tarde. Já passou algum besteirologista aqui hoje?”, e daí baseado na resposta que a criança dá é que a gente entra brincando, criando, trabalhando. Por isso eu acho que o hospital exige que você tenha a mesma energia que você tem quando entra no circo ou no palco, mas é preciso direcionar bem ela e deixá-la bem sutil e pequena, por que você está trabalhando no “um a um”.
Como você se sentiu na primeira vez que foi a um hospital e começou fazer palhaçadas com as pessoas que estavam doentes? Qual a reação que você acha que elas tiveram? Foi isso que te levou a continuar essa profissão?
Ah! Essa sua pergunta foi muito boa! Quando eu vi pela primeira vez uma dupla de palhaços trabalhando com as crianças no hospital fiquei chocado, falei: “nossa!”. Primeiro, eu não sabia que os artistas eram tão bons e profissionais, e que um palhaço no hospital causava tanto impacto na vida da criança. Mas também não sabia que uma platéia de uma pessoa podia causar tanto impacto na vida dos artistas, porque no teatro uma platéia de uma pessoa é um fracasso. Só que no hospital uma pessoa é 100% da lotação. Então, eu quando vi aquilo, aquela experiência, falei: “Meu Deus, é muito difícil. Não quero fazer isso. Eu não sei”. Mas uma amiga me estimulou. Me preparei e fui fazer um teste. Quando cheguei lá comecei a trabalhar com Michael Christensen, um palhaço americano, diretor do Big Apple Circus de Nova Iorque que criou esse trabalho. No dia do teste eu ia trabalhar com ele. Ele foi duro, severo, mas na hora de trabalhar ele foi super generoso. Então eu visitei três quartos. Ele falou assim pra mim: “no primeiro quarto eu vou segurar a onda você me apóia. No segundo quarto nós vamos meio a meio, e no terceiro quarto você comanda e eu te apoio”. No terceiro quarto, que era minha vez, eu trabalhei com um moleque, que tinha gesso do peito até as pernas, lá embaixo, e tinha algo parecido com uma roda de bicicleta no meio desse gesso, chamava fração e era ligado a um monte de fios que ficavam puxando os ossos dele. Devia ser uma coisa muito dolorida. Falei assim: “bem, vamos fazer uma operação para deixar tudo melhor”. Eu fiz todas as bobagens que tinha planejado, e no final ele riu, se divertiu, e quando eu estava abrindo a porta do quarto para ir embora, ele gritou: “ei, doutor!”. Olhei pra ele e falei “pois não!”. Ele falou: “eu estou me sentido muito melhor”. Na hora que ele falou isso… Eu não tinha sentido nada igual na minha vida. Tive um arrepio que tomou conta de todo o meu corpo. Agradeci a ele: “muito obrigado pela oportunidade, e eu espero que a gente se veja mais vezes”. Daí fomos embora, fui tirar minha maquiagem. Lembro que quando eu estava tirando a maquiagem falei: “cara, essa é a coisa mais sublime que eu já vivi na minha vida”. Não sabia que com uma bobagem, uma palhaçada, você podia realmente fazer alguém se sentir melhor fisicamente. Eu queria saber se eu tinha passado no teste, e o Michael veio falar comigo: “Parabéns. Bem vindo. Quero convidar você para trabalhar com a gente”. Eu saí chorando do hospital – mas chorando de alegria.
Você disse que foi esta profissão que te escolheu…
Esse trabalho me descobriu. Eu te falo que foi a profissão que veio atrás de mim, porque durante muito tempo eu recebia esse convite pra trabalhar no hospital e eu sempre falava que não. Até o dia que eu fui e vi. Porque eu achava que na verdade trabalhar no hospital não era coisa de artista. Achava que era uma coisa assim, de boa vontade, sabe? Mais ser bonzinho do que ser um profissional, e naquele dia eu vi que realmente, quanto mais profissional, quanto melhor você for, mais forte é a tua conexão com a criança. Vi que aquilo era um trabalho novo, foi assim como uma visão de futuro, e nunca mais parei. Estou aqui até hoje.
Por meio de quais recursos o Doutores da Alegria é bancado? Vocês trabalham voluntariamente no hospital?
O Doutores da Alegria é uma ONG, uma organização sem fins lucrativos, então a gente capta recursos. Hoje temos uma base de mais ou menos 500 doadores, pessoas físicas, que são aquelas que fazem doações mensais ou semestrais, fazemos palestras pra empresas, vendemos nossos livros, fazemos espetáculos. Geramos também 30% com o nosso próprio trabalho. Os artistas são remunerados, pois eles estão exercendo uma profissão. E os hospitais não pagam nada, pois 90% deles são públicos e não é legal receber grana do hospital, porque senão eles te olham como empregado. E quando você aparece lá com o dinheiro, aí te olham de igual pra igual.
Quais os critérios para serem escolhidos os hospitais?
Procuramos hoje ir para hospitais públicos, com no mínimo 50 leitos pediátricos operantes e que sejam em regiões doentes da cidade de São Paulo. E são muitas. Normalmente regiões de periferias, onde há menos opção de lazer e cultura pra as crianças e para os jovens.
Quem inspirou você como palhaço, foi Michael?
Olha, não. Recentemente na minha vida eu me dei conta que eu sempre amei palhaços. Sempre gostei muito de comédia, então eu gostava muito do palhaço Carequinha, do palhaço Arrelias e do Pimentinha. Teve um palhaço brasileiro chamado Torresminho e o parceiro dele Pururuca, e o Torresminho era um dos meus palhaços favoritos. Tinha o Renato Aragão junto com o Dedé Santana, Rogério Cardoso, o desenho do Pica-Pau, o do perna longa, uma comediante americana maravilhosa que eu amava, chamada Lucille Ball, ela fez um seriado chamado I Love Lucy. Tinha também, na minha infância, o Ronald Golias, A Praça da Alegria, o Manuel da Nóbrega, e na adolescência, o Chico Anísio, Jô Soares e comediante americana Carol Burnett, e mais recentemente o Robbins Williams, Regina Case, Luiz Fernando Guimarães. Temos comediantes e palhaços muito bons aqui no Brasil.
E como você está se sentido aqui na Casa Grande?
Eu estou me sentido num pedaço do paraíso aqui na terra, se é que isso é possível. Porque eu gosto de jornadas, e você viaja um dia pra chegar aqui. Saí de casa às 9h da manhã e cheguei em Nova Olinda às 18h. Isso porque não houve nenhum atraso. Foi tudo beleza, sabe? O que eu vi, em primeiro lugar, foi a liberdade das crianças. Parece que quando você entra nessa casa você entra em um portal, onde você já entra brincando. A coisa mais linda é ver as crianças entrando de repente. Vão correndo para alguma coisa que querem fazer e brincar, é muito espontâneo, simples. Isso é maravilhoso. Essa cidade é uma coisa assim… Eu trouxe o meu filho. Lá em São Paulo a gente vive com medo de ser assaltado, com medo de atravessar uma rua, e aqui não, ele anda solto a qualquer hora do dia ou da noite. Tem uma riqueza aqui, justamente nessas coisas simples. E quando eu vejo vocês me entrevistando, me fazendo as perguntas que muitos jornalistas profissionais não me fazem, porque não tem essa sensibilidade, fico falando: “caramba! Que formação incrível que esses moleques estão tendo aqui!”. Quando participo do programa de rádio com a Jordeane, enlouquecida com aqueles moleques, quando vejo o 100 canal, esse teatro, o show de ontem, a Casa Grande e todos vocês é uma inspiração, é um exemplo. É um posto de gasolina, que enche o tanque da gente e dá ânimo motivação, esperança.
E o que você mais gostou aqui durante sua vinda à Nova Olinda?
Sabe caleidoscópio quando você vai girando vê uma imagem mais linda que a outra? É assim que eu estou vendo isso, e não estou sozinho, estou com o meu filho, o Théo. Ele tem nove anos. Então, quando eu o vejo brincando, percebo que ele está curtindo muito isso aqui. Falo sempre para as pessoas: a gente se preocupa tanto em educar as crianças, que esquecemos de aprender com elas. No hospital eu vi muita sabedoria das crianças, eu as via lidarem com a morte e a doença, com uma maturidade maior do que a maioria dos adultos que já vi. Então precisamos prestar atenção nesse publico. E hoje eu estou transformando o Doutores da Alegria numa escola, procuramos ensinar as pessoas a serem palhaços. E estou vendo que para você ensinar um adulto a ser um palhaço, ele tem que desaprender tudo que aprendeu pra ser um adulto, voltando a ser criança. Quando vejo um lugar como a Fundação Casa Grande e a força que vocês têm aqui, não é mais um delírio: existe um lugar onde aprender com a criança e com o jovem é uma realidade.
Uma mensagem sua…
Bobagem pouca é desgraça, portanto divirtam-se!
Fonte: Fundação Casa Grande